Um grupo formado por quatro deputados do Parlamento Europeu (PE) esteve na Câmara Federal na tarde desta segunda-feira (5) para discutir a situação dos povos indígenas no Brasil. A comitiva participou de uma audiência na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), onde ouviu lideranças indígenas e representantes de instituições brasileiras a respeito do panorama das comunidades tradicionais no Brasil.
“Nossa presença aqui não significa nenhuma intromissão ilegítima em assuntos do Estado brasileiro. É bom ressaltar que sempre competirá ao povo do país, através de seus representantes democraticamente eleitos, a resolução dos seus problemas. Mas nós deputados também não podemos virar as costas para um problema que todos nós sabemos que existe, e não é só no Brasil”, afirmou o deputado Francisco Assis, líder da comitiva.
Natural de Portugal, ele destacou a relação do país ibérico com a dizimação da cultura e dos povos indígenas brasileiros. “Nós não podemos nos sentir pessoalmente culpados pela responsabilidade dos nossos antecessores, mas sabemos que existe uma responsabilidade histórica em relação a isso. Nós europeus criamos problemas sérios aos indígenas em todos os cantos do mundo. Historicamente, eles têm sido maltratados em várias zonas do globo, e sabemos que aqui no Brasil esse problema começou com a chegada dos portugueses. Há uma consciência disso e por isso temos uma responsabilidade política”, considerou o líder da missão.
A visita da comitiva ao Brasil se estende até a próxima sexta-feira (9) e inclui também compromissos no Ministério Público Federal (MPF) e no Supremo Tribunal Federal (STF). Para a deputada Janete Capiberibe (PSB-AP), a interlocução de representantes do PE junto aos atores brasileiros pode ajudar a reforçar o diálogo interinstitucional na busca pela garantia de direitos no país.
“Esse é um caso em que não adianta tentarmos segregar nada, porque há uma necessidade de um trabalho coletivo. Vamos aproveitar a visita da comitiva para cobrar o cumprimento das leis nacionais e das convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, por isso a presença deles é muito importante para nós”, avaliou a deputada, em entrevista ao Brasil de Fato.
Direitos
Durante a audiência, a ativista Valéria Paye Katxuyana, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), disse que a entidade cultiva grande preocupação com a questão da terra, que é considerada o elemento central para a garantia dos outros direitos.
“Os nossos territórios nem são nossos. A lei diz que é da União, do Estado, e que nós estamos lá apenas cuidando deles. E agora vivemos uma situação mais grave, porque eles ainda querem nos tirar de lá. Essas pessoas querem ver os indígenas na beira das estradas, acampando onde a soja passa. Há uma ofensiva em todas as instâncias do Estado brasileiro”, criticou a representante, em referência ao atual contexto político.
Ela destacou as investidas da bancada ruralista no Congresso Nacional contra as comunidades. “Nós temos mais de 180 propostas de retiradas de direitos indígenas tramitando atualmente no Legislativo. Vejam que, no texto da Constituição, nós temos apenas dois parágrafos que tratam dos nossos direitos, enquanto nesta Casa há mais de 180 tentativas de retirar esses mesmos direitos. E o pior é que sempre querem decidir tudo por nós, sem nos ouvirem. Muitas vezes, quando se discute uma pauta aqui, nós somos barrados na entrada”, discursou Katxuyana, visivelmente emocionada.
Violência
Na ocasião, o presidente da CDHM, deputado Padre João (PT-MG), destacou para a comitiva a preocupação com as estatísticas que estampam a violência contra o povo indígena. Entre outras coisas, ele citou a média anual de mais de 60 assassinatos no país, que é apontada especialmente como resultado dos processos de luta pela terra.
“Uma violação contra os direitos humanos dos índios afronta não só essas comunidades, mas sim a humanidade em geral”, considerou o deputado.
Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na última década, cerca de 50% dos casos de assassinato foram registrados entre as comunidades da etnia Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, que também tem a maioria dos casos de suicídio indígena no Brasil.
“Eles [os Kaiowás] estão vivendo numa situação-limite de falta de espaço, falta de terras e confinamento. Isso, associado à paralisação das demarcações, tem contribuído para o aumento da violência, que se dá não só na forma de assassinatos, mas também de ataques paramilitares, conflitos internos e suicídios. É um contexto de muita vulnerabilidade sociopolítica”, explicou o secretário-executivo do Cimi, Cléber Buzato.
Mato Grosso do Sul
Por conta da situação mais delicada dos Guarani-Kaiowás, a comitiva europeia irá fazer uma visita às tribos da região. Nos próximos dias os deputados viajam ao Mato Grosso do Sul, onde devem fazer diligências que possam resultar em um diagnóstico mais completo da situação da etnia.
“Nós soubemos que lá o problema se coloca de forma completamente aguda, com números chamativos em termos de violência e queremos ouvir as pessoas, porque certamente elas têm algo concreto a nos dizer sobre a sua situação. (…) Nossa preocupação maior é dar um testemunho de solidariedade com os povos indígenas”, afirmou Francisco Assis.
Ele informou ainda que a comitiva pretende levar a discussão para o Parlamento Europeu. “Se necessário, vamos lançar um movimento para que o PE se solidarize com a luta do povo Guarani-Kaiowá. Eles não estão sozinhos”, disse o líder do grupo.
O Mato Grosso do Sul tem a segunda maior população indígena do Brasil, mas registra um dos piores índices de demarcação de áreas indígenas, com apenas 1,8% de terras reconhecidas.
Hidrelétricas
Um dos assuntos que foram destaque durante os debates na audiência é a preocupação com a construção de hidrelétricas, que tendem a afetar as comunidades tradicionais. Segundo a bióloga Luciana Ferraz, do Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas (Fonasc), são projetados graves danos para comunidades do Mato Grosso, do Pará e de Rondônia.
“A Empresa de Pesquisa Energética está planejando a instalação de 102 hidrelétricas nos rios Juruema, Teles Pires e Tapajós, que pegam esses três estados. Isso afeta diretamente mais de 10 povos indígenas, 9 grupos que estão em isolamento voluntário e mais de 30 comunidades ribeirinhas”, calcula a bióloga.
Ela explica que a problemática arrasta consigo preocupações referentes ao meio ambiente e à posse da terra. “A hidrelétrica afeta a prática de manejo de florestas, porque muitas dessas áreas serão alagadas. Temos ainda um problema fundiário, porque a maioria dessa população tem a posse de fato do terreno, mas não tem nenhum documento que comprove isso. E o processo de licenciamento ambiental ocorre à revelia dessas populações, então, ficam somente os impactos a serem suportados por essas comunidades”, destaca Luciana Ferraz.
Funai
Presente na audiência, o atual presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Agostinho do Nascimento Netto, disse que vem empreendendo esforços no sentido de conseguir um orçamento que possa atender às demandas da pasta.
Em resposta às críticas sobre a demarcação de terras, ele informou que atualmente cerca de 12 processos de reconhecimento fundiário estão em situação de publicação do decreto demarcatório, mas ressaltou que eles ainda estariam com pendências administrativas ou jurídicas, depois das quais o decreto poderá ser publicado.
Edição: José Eduardo Bernardes
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