Imersa numa histórica crise político-econômica, a Venezuela está agora no epicentro de um avantajado conflito diplomático envolvendo os países do Mercosul. Após as últimas convulsões nas relações entre os integrantes do bloco – resultantes especialmente da chegada de Mauricio Macri e Michel Temer ao poder, respectivamente na Argentina e no Brasil –, a crise atingiu o ápice com a suspensão do país no Mercosul, na última quinta-feira (2).
A medida foi interpretada pelas autoridades estatais venezuelanas como uma manobra política orientada para a tentativa de deterioração do governo de Nicolás Maduro. E fez emergirem com mais vigor as diferentes perspectivas de Estado que estão colocadas atualmente nos referidos países. Além disso, evidenciou o debate sobre a própria democracia nas relações diplomáticas.
“Foi um ato de arbitrariedade de um grupo de países governados por gente de duvidosa credibilidade em matéria democrática”, alfineta Saul Ortega, um dos 23 deputados que representam a Venezuela no Parlasur, órgão legislativo do bloco.
O país afirma que a suspensão se deu ao arrepio da lei, ferindo normas internacionais, e tenta agora uma solução diplomática para o impasse. Em entrevista ao Brasil de Fato, Saul Ortega fala sobre essa e outras questões que atravessam o conflito, incluindo a participação da imprensa tradicional no que chamou de “construção de mentiras” sobre o país.
Confira a seguir a entrevista na íntegra.
A Venezuela vive uma situação difícil agora por conta de um conjunto de fatores. Como vocês, deputados do Parlasur, e as demais autoridades venezuelanas receberam a notícia de que os outros países do Mercosul haviam suspendido a participação do país como membro pleno do bloco?
É um ato ilegal e inválido. Mesmo politicamente, é um ato de arbitrariedade de um grupo de países governados por pessoas de credibilidade duvidosa em matéria democrática. Estamos falando até mesmo do presidente Michel Temer, que produziu um golpe e não tem sido reconhecido pela comunidade internacional. A um presidente contestado dificilmente pode ser atribuída competência moral para tomar tais medidas contra um país democrático e contra um governo democraticamente eleito como o da Venezuela.
E [falamos] até mesmo dos outros presidentes... No caso do presidente Cartes [Horacio Cartes, do Paraguai], no seu país surgiu na mídia a ligação dele com o contrabando, enquanto a imprensa colombiana vincula não só com o contrabando, mas também com o tráfico de drogas, então, estamos diante de alguns cavalheiros questionáveis, porque também o seu Macri [Mauricio Macri, da Argentina], lembre-se, foi citado pelos famosos Panama Papers, o que significa que eles são indivíduos ligados ao branqueamento de capitais – negócios escuros, pouco transparentes. Então, esses países, infelizmente, estão nas mãos de mafiosos, que querem impor condições que nosso país não aceita, e me parece que a medida é devido a isso.
Por exemplo, todo mundo sabe que no Brasil o golpe foi para encobrir a corrupção. Cunha [ex-deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ)] já está julgado e o presidente do Senado, Sr. Calheiros [Renan Calheiros, presidente do Senado], vai na mesma direção, o que significa que aqueles que realizaram o golpe contra Dilma estão claramente ligados a questões de corrupção.
Além disso, o ato [a suspensão da Venezuela do Mercosul] é ilegal mesmo. Depois de várias tentativas de aplicar a Carta Democrática, e em seguida, o Protocolo de Ushuaia, como não encontraram nos regulamentos do Mercosul um jeito de justificar o golpe de Estado contra a Venezuela no bloco, foram buscar uma legislação adicional, o Tratado de Viena, relativo a contratos internacionais, que não se aplica, porque o Mercosul não é ainda um dos signatários. Além disso, se você ler esse acordo, ele diz que as negociações das diferenças nos acordos internacionais devem ser por meio de negociação ou mediação, não por meio de um julgamento sumário, que foi o que escolheram. Nosso país não reconhece essa extensão. Nós estamos na presidência do Mercosul e, portanto, vamos lutar no quadro jurídico do bloco para rejeitar essa agressão destes gângsters que agora estão, infelizmente, chefiando as nações e os povos que para nós são queridos.
Esta semana a Venezuela ativou um processo de solução de controvérsias no Mercosul para buscar uma saída para esse impasse. Com o atual contexto de avanço conservador no continente, com consequências diretas na diplomacia, que espaço haveria, na sua avaliação, para um diálogo? O Uruguai, por exemplo, poderia ser um personagem importante nesse sentido?
De fato, o nosso país, está apelando às regras do Mercosul – neste caso, o Protocolo de Olivos, ativando o Centro de Controvérsias. A Venezuela tem agido sempre no âmbito dos regulamentos do Mercosul. Somente os criminosos fora da lei – presidentes Cartes, Michel Temer e Macri – querem subordinar a economia deste continente aos interesses de potências estrangeiras, querem nos levar de volta para os tempos em que estávamos no quintal. Isso é o que eles estão procurando, subordinados a alguns acordos de livre comércio com a Europa e com os Estados Unidos na Aliança do Pacífico.
Uma pergunta: o que fazem esses senhores que vão para um lugar onde ninguém os está esperando? Porque recentemente o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, disse que iria rever e que pretende revogar todos os acordos de livre comércio que prejudicaram interesses americanos. Assim, eles querem ir sobre acordos de livre comércio, onde ninguém os quer, ninguém os está esperando. Enquanto isso, os regulamentos e as políticas do Mercosul, que tem objetivado a unidade e a integração latino-americana, visam precisamente fortalecer os interesses dos nossos povos, dos nossos países, no concerto das nações, que cada dia é mais complexo, mais difícil. Mas somente unidos em uma plataforma política – com CELAC, com a UNASUL, a ALBA e alguns instrumentos de integração econômica e social, como o Petrocaribe, como o novo Mercosul – contribuímos nesse sentido.
Eles querem destruir o Mercosul porque sabem que é importante na consolidação da unidade da América Latina e do Caribe. Esses são apenas peões do imperialismo e lembro que foram os mesmos que desencadearam a Carta Democrática da OEA, ou seja, não acreditem vocês que este é o primeiro golpe que esses golpistas, dissociados e subordinados atentam contra o nosso país. Continuamos no âmbito da relação respeitosa e normativa entre as nações e por isso e que o nosso Ministério das Relações Exteriores ativou o Protocolo de Olivo e solicita que o Tribunal de Disputas aja neste caso, porque esses países têm atuado fora da lei.
Na avaliação da Venezuela, o grande capital teria papel fundamental nesses movimentos de países que agora tentam prejudicar o país?
Não, acho que não tem nada a ver com isso. Tem a ver com um movimento geopolítico. O imperialismo dos EUA e das potências coloniais europeias quer subjugar países e, infelizmente, estes são como se fossem peões dessas potências e do imperialismo norte-americano. Eles estão atuando para desempenhar um papel que isole a Venezuela, bloqueando o país, como fizeram com Cuba. Lembre-se que já é famoso o decreto de Obama declarando que a Venezuela é uma ameaça incomum e extraordinária e eles estão usando isso para chantagear empresas, bancos, para eles não processarem pagamentos dos “inputs” dos quais o nosso país precisa. Há um movimento em andamento para bloquear a Venezuela, e esses senhores presidentes estão pagando por essa manobra contra nós. Mas estamos dispostos a derrotar ambas as potências imperialistas e colonialistas da Europa e esses países subordinados na América Latina. Então, para a Venezuela tem um povo que está pronto para lutar e sabe enfrentar esta situação.
A Venezuela, historicamente, tem encampado um discurso de integração latino-americana. Por que ainda há tanta resistência política de outros países no sentido de sedimentar essa união?
O primeiro esforço integracionista foi feito pelo libertador Simon Bolivar, em 1826, quando convocou o Congresso do Panamá. A história exalta e destaca que esta reunião da unidade, em que o Libertador falou da aliança eterna de nações recém-libertadas do império espanhol e falou dessa união como necessária para enfrentar os impérios – estamos falando da Inglaterra e dos Estados Unidos –, ele escreveu naquela época que os Estados Unidos foram destinados pela providência a plagiar a fome e a miséria para as Américas, em nome da liberdade.
Nesse sentido, quem sabotou o Congresso do Panamá foram dois delegados dos Estados Unidos, a convite do vice-presidente Santander, que já era inimigo de Bolívar, e estava procurando sabotar o sonho do Libertador. E conseguiu, porque o Congresso foi um fracasso e, em seguida, dividiu a Grande Colômbia. Santander é o pai de traição e agora os países que se comportam como Santander são aqueles que servem para o imperialismo norte-americano, porque estão cooperando para restaurar o status quo que foi derrotado em Mar del Plata, o quintal, que nos impôs a ALCA.
E temos que destacar a batalha titânica de Hugo Chavez, Nestor Kirchner, Lula, do próprio Tabaré e do Paraguai, de Nicanor, que derrotou em Mar del Plata o projeto imperialista de colonização, chamado ALCA. Nesta oportunidade, esses governos que citei fazem a tarefa que o Santander fez no passado, de serem contra a unidade da América Latina e do Caribe e procurarem subordinar nossa região aos interesses imperiais. De fato, eles são agentes econômicos, são empresários, têm interesses particulares e não estão interessados nos interesses de nossos povos, na nossa soberania, na independência.
Qual tem sido, na sua avaliação, o papel dos meios de comunicação diante deste contexto de crise diplomática entre os países do Mercosul? Como a Venezuela se sente diante das narrativas construídas pela mídia tradicional?
Bem, não é nenhum segredo quem está no controle da grande mídia internacional. São corporações, sociedades financeiras que têm interesses muito específicos e interesses especialmente políticos, porque elas são os grandes grupos que dominam o poder nos Estados Unidos e que controlam a grande mídia. Contra a Venezuela desencadearam uma campanha em todos os níveis. Nas ordens política, econômica e diplomática, através da mídia, tem a construção de mentiras, a construção de uma matriz negativa do país, desacreditando nossas instituições democráticas e, claro, neste caso, a culpada é sempre a Venezuela, e não os golpistas. Como é possível que alguém possa dizer que a Venezuela violou algo quando é o oposto?
Em cinco anos, nós construímos mais de 90% das regras do Mercosul, enquanto os países, incluindo o Brasil, que são fundadores, ainda sofrem porque não têm incorporado padrões. No caso do AC18, a Presidência disse, em uma voz de autoridade, que o Brasil não incorporou cinco padrões. Então, sim, o que é aplicado à Venezuela deve ser aplicado ao Brasil e aos outros países que não conseguiram isso em 25 anos. A verdade é que a mídia tem interesses que vão contra o nosso país. A maioria dos proprietários da mídia são grandes capitalistas, o que – podemos dizer – são inimigos do povo, dos trabalhadores. Há praticamente uma guerra midiática e psicológica para tentar ajoelhar o nosso povo, mas ele é firme. Nós somos os filhos de Simon Bolivar, nós somos o povo de Hugo Chavez. Vocês esperem de nós resistência, luta e superação.
Por fim, o senhor gostaria de deixar alguma mensagem ao Brasil e à comunidade internacional sobre esta situação político-diplomática que a Venezuela está enfrentando?
Em primeiro lugar, acho que o Brasil tem muito mais problemas do que a Venezuela. É imoral que o presidente da República seja Michel Temer. Eu entendo que aqueles que iniciaram o processo contra a presidente Dilma... Cunha é acusado de corrupção e Calheiros está caminhando na mesma direção, o que significa que era uma conspiração de corruptos contra Dilma. O povo do Brasil deveria se rebelar, julgar e remover Temer, impondo a presidenta legítima, eleita pelo povo brasileiro e reconhecida pela comunidade internacional. Nós, como país e como povo, não reconhecemos o golpista Temer, por isso a minha mensagem para o povo brasileiro é no sentido de lutar pela dignidade e pelo decoro do seu país. Vocês não merecem ter um criminoso à frente da Presidência da República.
Além disso, o Mercosul precisa retomar a sua dignidade, o seu brilho, sua importância de quando tivemos, no Brasil, um presidente dignamente eleito, como foi o presidente Lula, que, juntamente com Kirchner, Chávez, Nicanor e Tabaré, tornou possível o brilho de nosso país, derrotando o imperialismo em Mar del Plata. No dia em que o Brasil tiver um presidente dignamente eleito, ele vai fazer o Mercosul voltar a brilhar, como em seu auge. Enquanto isso, ele está em crise e Temer leva o Mercosul a uma passagem para o enterro final do bloco. Se os brasileiros acreditam no Mercosul, devem se mobilizar para tirar Temer. Nós apoiamos vocês nesse sentido e estamos dispostos a lutar com vocês pela legalidade, pela Constituição, e para que possamos nos abraçar como povos de interesses comuns.
Nós somos um povo de paz e conduzimos uma diplomacia de paz, respeito, cooperação e igualdade entre os povos. É nesse nível que vamos encontrar, como amantes e amigos, todos os países do mundo. Agora, se for por meio de agressão, de enfrentamento, somos um povo que com muita dignidade vai defender – em todos os órgãos e usando todas as ferramentas que estejam à disposição – sua independência, sua integridade e sua soberania. Que o mundo tenha claro que o povo da Venezuela é um povo digno, que está disposto a lutar. O povo venezuelano vai lutar até o último homem e deixará o melhor de seu esforço para alcançar suas mais elevadas aspirações de soberania e independência.
Edição: José Eduardo Bernardes
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