O primeiro aniversário de um filho costuma ser daqueles momentos inesquecíveis. Ainda que o homenageado esteja ali presente entre risos e choros, a festa para ele tende a não ter maiores significados, ao contrário do pai e da mãe, para quem a data é repleta de simbologia e alegria. Mas no Centro de Referência para Gestantes Privadas de Liberdade a situação é bem diferente: mais do que marcar os primeiros 12 meses de vida do bebê, o aniversário de 1 ano representa a dolorosa separação de mãe e filho. A partir daquele momento, a detenta que ainda tem pena a cumprir é enviada a outro presídio e o bebê entregue para algum familiar.
Essa e outras histórias sobre o cotidiano do único presídio feminino do Brasil construído especialmente para abrigar mulheres grávidas integra o livro Mães do Cárcere, da jornalista Natália Martino e do fotógrafo Leo Drumond. Com lançamento previsto para maio de 2017, o projeto alcançou na véspera do Natal a arrecadação necessária para ser impresso em um site de financiamento coletivo.
Inaugurado em 2009, o Centro de Referência para Gestantes Privadas de Liberdade, em Vespasiano (MG), município da Região Metropolitana de Belo Horizonte, abriga entre 60 e 70 mulheres, a maioria presa por tráfico de droga e quase metade em regime provisório, ainda à espera de julgamento, situação comum no sistema prisional brasileiro. Para retratar a vida intramuros desse peculiar presídio, Natália Martino e Leo Drumond frequentaram o local durante um ano, visitando-o pelo menos uma vez por semana.
“Tivemos a preocupação de ir tanto em dias rotineiros, comuns, mas também tentamos participar de momentos marcantes para elas como dias de visitas, dias das mães, natal, audiências judiciais, casamento, o parto e quando a criança completa 1 ano”, explica Natália.
A jornalista conta que, nos primeiros dias de contato com as internas, a dupla simplesmente propôs fazer fotos das mães com seus filhos para elas terem de lembrança. Para surpresa dela e do fotógrafo, a oferta não despertou interesse. “Tiramos as fotos das pouquíssimas que quiseram e, conforme o combinado, voltamos na semana seguinte para entregar as fotos. E então isso criou um rebuliço, outras começaram a querer também. Esse primeiro momento foi de surpresa porque elas estavam acostumadas com pessoas que iam lá para fazer pesquisa e não voltavam nunca mais”, avalia Natália.
A partir daí, estabeleceu-se que das quatro visitas mensais, uma seria apenas para fotos particulares das internas e seus filhos e os outros dias para a composição do livro. “Explicamos para elas que eram coisas distintas. No início elas tinham dificuldade de entender que eram estilos de fotos diferentes.”
Relação de confiança
Por não terem confiança nas instituições do Estado e já terem sido exploradas de muitas maneiras, Natália lembra que a proposta do projeto não cativou as detentas no começo. “A recepção foi com certo desprezo, ‘mais um que vem aqui fazer pesquisa’. Não quiseram se envolver.” Aos poucos, a relação foi mudando e a jornalista enfatizava que elas só contassem o que quisessem.
“A gente parte do princípio de que a pessoa está ali por alguma razão, é acusada de um crime, mas é muito maior do que esse crime. A partir do momento em que você abaixa a guarda e conversa com essas pessoas, isso fica muito óbvio. São pessoas totalmente iguais a nós, com sonhos, com medos, que passaram por situações difíceis e boas, que têm planos para o futuro, têm mães, pais, irmãos, namorados, gostam de música, têm o livro preferido, são pessoas absolutamente iguais a nós e que em algum momento cometeram um erro. Não é meu papel como jornalista impor uma nova pena ou desejar uma pena maior do que aquela prevista no código penal. Se ela cometeu o crime, já está pagando e um dia vai sair de lá. Tem é de haver ferramentas para ela não voltar para o crime que cometeu antes.”
O profissionalismo, entretanto, não significa distanciamento, ao contrário, e o envolvimento com os dramas ali expostos afloraram. Natália critica, por exemplo, a prisão de uma das mulheres que conheceu, com 18 anos de idade, acusada de roubar um xampu. “A gente precisa olhar quem estamos colocando lá dentro, por que estamos prendendo, qual o objetivo da lei e como ela está sendo aplicada. É muito mais complexo do que apontar o dedo e dizer: ‘errou tem de pagar’. Ok, tem que pagar, mas como? O que fazemos é colocar uma placa na cabeça dessas pessoas dizendo que ela é culpada para sempre. A gente condena essa pessoa a prisão perpétua, apesar do código penal não ter previsão dessa pena. Então, precisamos olhar essas pessoas como pessoas.”
Com fotos e textos em 208 páginas, o livro Mães do Cárcere apresenta as histórias de 10 das mulheres entrevistadas, narradas em primeira pessoa “com preservação das suas gírias, metáforas e ênfases”. A publicação tem ainda observações pessoais sobre o presídio, dados estatísticos do sistema penal e desafios sobre o tema das mães encarceradas.
A autora reconhece não ter passado incólume pela experiência da produção do livro e questiona a engrenagem do sistema prisional brasileiro. Atualmente, o Brasil é o quarto país com a maior população carcerária do mundo, com 622 mil pessoas presas – deste total, 24,3% por tráfico de drogas, 25,4% por roubo, 12,5% por furto e apenas 9,7% por homicídio.
“Será que, como sociedade, vamos conseguir ter empatia pelas pessoas que são as mais fracas, as mais invisíveis, será que vamos conseguir olhar para essas pessoas e ajudar a resolver o problema delas e não pensar só nos nossos? Me dá uma situação de impotência, de profunda tristeza ver o que, como sociedade, estamos fazendo com pessoas iguais a gente.”
No Centro de Referência para Gestantes Privadas de Liberdade, a maternidade, o nascimento da vida e a amamentação, etapas consideradas “sagradas” em nossa sociedade convivem lado a lado com a brutalidade do sistema penal.
Segundo a autora do livro, talvez seja a unidade prisional do Brasil em que o sentido de humanidade seja o mais óbvio. “Depois de um tempo convivendo nesse universo se vê com mais clareza a complexidade do ser humano, se tem mais empatia pelas pessoas, você consegue entender que a diferença entre você e aquela pessoa é só o lado da grade”, analisa Natália.
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