Depois de levar cerca de 1,5 mil pessoas às ruas e chamar a atenção até mesmo da imprensa internacional para o feminicídio em massa (9 das 12 vítimas fatais são mulheres) ocorrido na virada do ano, o movimento “Nenhuma A Menos- Campinas” prossegue com o desafio de manter a mobilização para fortalecer a luta das mulheres pelo direito a uma vida sem violência e em condições de igualdade. O objetivo agora é cobrar responsabilidades do Poder Público e atuar nas causas da violência de gênero, com ações que contribuam para desconstruir a cultura machista e misógina, ainda predominante na sociedade.
Na avaliação de mulheres que participaram da construção do Movimento, o Ato “Nenhuma a Menos- o machismo mata”, realizado na noite de quinta-feira (5), foi muito positivo. “A gente conseguiu colocar o feminicídio em pauta, fazer com que as pessoas comecem a falar sobre isso. É uma luta contra uma cultura estabelecida. Precisamos ampliar esses canais”, diz a socióloga e professora Patrícia Lião, que representa a Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) e o Coletivo de Mulheres da CUT. Ao todo, mais de trinta entidades e coletivos foram representados no Ato Público.
Segundo a definição que consta na lei federal 13.104/2015 (Lei do Feminicídio), em vigor desde março de 2015, feminicídio é quando uma mulher é assassinada pelo fato de ser mulher ou por “razões de condição de sexo feminino”. Ainda de acordo com a lei, as situações que podem caracterizar um feminicídio são a violência doméstica e familiar e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher. O ato é considerado crime hediondo e com aumento da pena (em 1/3 até a metade) quando a vítima estiver grávida ou até 3 meses após o parto, quando for menor de 14 anos, maior de 60 ou com deficiência ou ainda na presença de parente (filhos ou pais).
“No caso de Campinas, a carta que foi divulgada, de autoria do assassino, não deixou dúvida do ódio dele às mulheres. Também pelas características do crime, que teve um número de vítimas mulheres bem maior do que o de homens. Pelos testemunhos de sobreviventes, os homens só foram atingidos porque tentaram impedir o assassino. Então, ele foi até lá para matar mulheres”, avalia a advogada Ana Carolina Cavazza, do Coletivo Parajás (de operadoras do Direito feministas). Ela explica que um dos objetivos da mobilização é que os fatos sejam devidamente apurados pela Polícia. “Precisamos saber se tem mais gente envolvida nisso, já que o assassino se matou”, acrescenta.
O caso
Entre a noite de 31 de dezembro e a madrugada de 1º de janeiro, Sidnei Ramis de Araújo pulou o muro de uma casa na Vila Proost de Souza e assassinou a tiros a ex-esposa, Isamara Filier, 41 anos, o filho de oito anos, e outras dez pessoas da mesma família, depois se suicidou. Outras 2 pessoas (homens) foram atingidas pelos disparos e sobreviveram. Em nota, a Polícia Civil confirmou que Isamara tinha registrado cinco boletins de ocorrência contra o ex-marido desde 2005. O mais recente foi em 2014, de natureza não criminal, por causa da aproximação do pai em um dia que não era designado para visita.
Os outros quatro foram de ameaça e injúria (2005 e 2012), vias de fato (2013) e violência doméstica e ameaça (2015). Em todos eles, a vítima não representou criminalmente o acusado. No último, ela teria sido orientada quanto à possibilidade de medida restritiva, mas a opção teria sido rejeitada. As investigações estão em andamento no 3º DP de Campinas com apoio do Setor de Homicídios. O número de série da arma utilizada no crime foi identificado pela perícia, mas não era registrada.
Homicídios de mulheres X feminicídios
O Mapa da Violência 2015, pesquisa realizada com base em dados do Ministério da Saúde, estimou que mais da metade das mulheres assassinadas no Brasil em 2013 (50,3%) foram vítimas de feminicídios. Segundo informações da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), os feminicídios representaram 35,29% dos casos registrados no estado (30 do total de 85) em 2015, quando entrou em vigor a Lei do Feminicídio. Em 2016, de janeiro a novembro, a SSP-SP contabilizou 46 feminicídios entre as 81 mulheres assassinadas, o que eleva o percentual para 56,79%, sem contar os casos de dezembro (que podem incluir as 9 mulheres de Campinas) que ainda não foram computados.
Dados sobre homicídios e feminicídios de mulheres na cidade de Campinas nos últimos anos também foram solicitados, mas não foram informados pela Secretaria até a finalização desta reportagem. Segundo o Mapa da Violência 2015, Campinas ocupa a 1.019ª posição entre 1.627 municípios do País em número de homicídios de mulheres, com uma taxa média de 3,2 homicídios a cada 100 mil mulheres. A taxa média da cidade de São Paulo, por exemplo, é de 2,6 e sua posição é a 1.156ª. A pesquisa foi aplicada em municípios com população de mais de 10 mil mulheres, entre 2009 e 2013, período em que o número de mulheres assassinadas em Campinas passou de 12 para 22, enquanto que na capital do estado baixou de 168 para 164.
A taxa média de mortes no estado de São Paulo é de 2,9 e a do país 4,8. Com essa taxa, o Brasil é o quinto país (entre 83 relatados pela OMS- Organização Mundial de Saúde) com maior índice de homicídios de mulheres, atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Federação Russa. Também chama atenção a enorme quantidade de tentativas de homicídios de mulheres registradas no estado de São Paulo entre 2013 e 2016 (veja quadro).
Machismo no Legislativo e em rede aberta
Na pauta do Movimento “Nenhuma a Menos- Campinas” foi encaminhada, em reunião na última segunda-feira (9), a realização de um ato na região do Campo Belo, onde aconteceram vários feminicídios nos últimos anos. Outro ato está marcado em frente à Câmara Municipal, local marcado por propostas que restringem o combate à discriminação de gênero e debates com conteúdos machistas, na última legislatura (2013-16), e que ganharam ainda mais amplitude com a transmissão das sessões pela TV aberta. Entre as propostas, uma Moção de Apelo ao Ministério da Educação pela anulação de questão na prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2015, que citou a célebre frase da filósofa francesa feminista Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.
A Moção, cujo texto traz uma interpretação descontextualizada e equivocada da reflexão proposta pela filósofa consagrada (na avaliação de movimentos sociais, acadêmicos e pesquisadores), foi proposta pelo vereador Campos Filho (DEM) e aprovada por 25 a 5 do total de 33 vereadores. Também foi esse o placar de votação da Proposta de Emenda à Lei Orgânica do Município (145/ 2015), de autoria do mesmo legislador e assinado por tantos outros (inclusive o presidente, Rafa Zimbaldi- PP), que pretende proibir a deliberação na Câmara Municipal de “qualquer proposição legislativa que tenha por objetivo regulamentar políticas de ensino, currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou orientação sexual”.
A proposta foi aprovada em 1ª discussão no dia 29 de junho de 2015, retirada de pauta após uma série de protestos, mas continua em tramitação, por isso pode ser colocada em votação final a qualquer momento. Assim como na Moção, o autor justifica a proposta pela necessidade de barrar o que chama de “ideologia de gênero”, considerada por ele “uma medida muito prejudicial à saúde física e mental de nossas crianças”. Segundo Filho, essa “ideologia de gênero” tentaria “implantar a ideia de que o ser humano não nasce homem ou mulher, mas constrói sua identidade ao longo da vida”.
Plano Municipal de Educação
A discussão do atual Plano Municipal de Educação, que traz as diretrizes do segmento no Município para os próximos dez anos, aprovado pela Câmara Municipal em 2016, também foi pautado por restrições ao debate sobre gênero, diversidade e orientação sexual nas escolas. A versão inicial da proposta, aprovada em Conferência Municipal com ampla participação social, foi alterada pelo prefeito Jonas Donizette (PSB) de forma a suprimir os termos mencionados, retirando das metas a obrigação das escolas em promover esse debate específico, implementar projetos pedagógicos, garantir políticas intersetoriais de prevenção e combate à violência e discriminação, e garantir esses conteúdos nos currículos escolares.
“Se o Poder Público impede que o debate seja feito, que a cultura machista seja combatida, é responsável pelas consequências. É uma forma de compactuar com o crime”, avalia a socióloga e professora da rede estadual de ensino, Patrícia Lião. Gislaine Marangoni, que também é socióloga, professora e membro da Apeoesp, concorda com a ideia de que os entes públicos são responsáveis, assim como a sociedade de maneira geral, neste caso por omissão. “É preciso investir no caráter formativo. O feminicídio é consequência do machismo e até mesmo quando se faz uma piada ou comentário preconceituoso se contribui para reforçar o machismo”, diz Gislaine.
“Tem sim, responsabilidade, o Poder Público nos crimes contra mulheres. O assassino, Sidnei (autor do feminicídio em Campinas), é produto dessa sociedade machista. É preciso combater essa cultura e a gente faz isso com políticas públicas, como a discussão de gênero na Educação desde criança, a proibição de propagandas que reforçam estereótipos e, claro, na oferta de equipamentos públicos de proteção e atendimento das mulheres em situação de violência. Também com o incentivo a pesquisas na área, à autonomia das mulheres e maior participação delas nos espaços de decisão”, avalia a advogada Ana Carolina Cavazza, também eleita para a nova composição do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Mulher (2017-18).
Convidado a falar sobre essa responsabilidade do Poder Público em contribuir com o combate à discriminação de gênero, o presidente da Câmara Municipal, Rafa Zimbaldi, afirmou em nota que acredita "piamente que o Poder Legislativo tem grande responsabilidade na luta para combater a discriminação e preconceitos, bem como contribuir com políticas públicas para garantir os direitos das mulheres e o respeito aos direitos humanos”. Entre essas contribuições, ele cita a realização e transmissão de debates pela TV Câmara, o trabalho de comissões permanentes e algumas propostas recentes que se tornaram leis, como a que pune o constrangimento à amamentação em locais públicos.
Embora questionado, ele não respondeu sobre o papel da Câmara na discussão e aprovação do Plano Municipal de Educação, que excluiu o debate sobre gênero nas escolas, e nem sobre a Proposta de Emenda à Lei Orgânica, que pretende censurar propostas relacionadas ao tema na Casa e também conta com sua assinatura. Campos Filho e o prefeito Jonas Donizette também foram convidados a se manifestar, por meio das assessorias de imprensa da Câmara e da Prefeitura. Filho não foi localizado pela assessoria. Quanto ao prefeito, sua assessoria não retornou o pedido até a finalização da reportagem.
Edição: José Eduardo Bernardes
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