Os massacres no Complexo Anísio Jobim, em Manaus (AM), que deixou 60 mortos, e na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista (RR), onde outros 33 foram assassinatos, estão tomando conta dos noticiários na última semana. Após os episódios, as falhas do sistema prisional brasileiro estão sendo colocadas para debate, principalmente, a superlotação dos presídios. Somente no estado do Rio de Janeiro, há mais de 51 mil presos para aproximadamente 27 mil vagas, segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). Para Renata Lira, integrante do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio (MEPCT/RJ), a superlotação gera a dificuldade de controlar o sistema. “No entanto, é exaltado no senso comum a ideia da punição cada vez maior, de que quanto mais se encarcera mais seguro estamos. Não é verdade”, afirma.
Brasil de Fato - Como trabalha o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio (MEPCT/RJ)?
Renata Lira - O mecanismo é um órgão de monitoramento dos espaços de privação da liberdade, não só do sistema prisional, mas qualquer outro que tenham pessoas privadas de liberdade. Trabalhamos de forma preventiva à tortura e outras formas de punição desumanas e degradantes, fazendo uma leitura crítica do sistema como um todo, a partir de visitas, conversas, articulações com órgãos públicos e organizações não governamentais. O mecanismo é parte operativa, criado a partir da lei estadual 5778, que originou também o Comitê Estadual para a Prevenção e Combate à Tortura, formado por 6 órgãos e organizações de atuação direta com direitos humanos, como o Ministério Público e a OAB/RJ.
Brasil de Fato - O Relatório da ONU sobre o sistema prisional brasileiro, divulgado nesta semana, aponta como principal problema a dificuldade do estado em manter o controle das unidades prisionais. Concorda com essa avaliação?
Manter o controle é uma dificuldade, mas precisamos entender de onde vem essa dificuldade. Nós temos hoje um nível absurdo de encarceramentos no Brasil, liberamos pessoas em menor número possível, portanto, temos uma porta de entrada dos presídios muito larga e porta de saída muito estreita. A superlotação é o problema central. Em um local em que caberiam 500 internos, temos 1500. É claro que o estado não vai dar conta da alimentação, água, local adequado para que durmam. A superlotação gera a dificuldade de controlar o sistema. No entanto, é exaltado no senso comum a ideia da punição cada vez maior, de que quanto mais se encarcera mais seguro estamos. Não é assim que funciona. Não houve redução dos crimes.
Brasil de Fato - Como define o sistema carcerário no estado do Rio?
No Rio hoje temos mais de 51 mil presos para cerca de 27 mil vagas. Desse total, 40% são presos provisórios que aguardam julgamento e que poderiam estar respondendo em liberdade. A ideia de que se encarcera para dar um castigo, para ser um momento de reflexão, cai por terra se você for lá e verificar que existem pessoas que ficam mais de três anos aguardando sentença. E se for inocente? O número de presos que existe hoje é responsabilidade do poder judiciário, que decide pelo encarceramento como solução.
Brasil de Fato - Uma lista elaborada em 2013 e disponível no site do Tribunal de Justiça do Rio (TJ/RJ) mostra que 18 penitenciárias, presídios e cadeias públicas, entre as 50 unidades do estado, são classificadas segundo as facções. A separação dos presos, segundo as facções criminosas, determina o comando dos presídios ou é o contrário?
Esse é um assunto bastante complicado. Os presídios são sim divididos por facções, mas não há oficialidade sobre isso. Nós do mecanismo não nos atemos a esse tipo de informação para conduzir as visitas e as ações. Esse não é um ponto que nos leva a agir. Lutamos para que o preso possa cumprir a pena com o mínimo de dignidade. Esse discurso das facções é delicado porque é uma forma de criminalizar ainda mais quem já está cumprindo pena.
Brasil de Fato - Qual sua avaliação sobre os massacres em Manaus e Roraima?
Ainda não sentamos para conversar sobre nosso posicionamento, mas certamente vamos pela linha do mecanismo nacional, que já tinha estado nessa unidade (Manaus) e já tinha apresentado todas as questões que teriam que ser resolvidas. Eles já tinham falado sobre tudo o que poderia acontecer em um presídio superlotado que tinha facções em briga. Ninguém espera e quer que aconteça, mas para quem trabalha todo dia com o sistema penitenciário é uma surpresa que não tenhamos um problema como esse por semana. Como as pessoas se ressentem e aceitam cumprir pena numa situação precária como essa? Acredito que nossos relatórios têm que ser levados mais a sério pelas autoridades para ajudar a pensar a segurança pública. Todos foram informados do que poderia acontecer. Isso é falta de vontade política.
Brasil de Fato - É omissão?
Sim, é omissão. Assim como a imprensa faz. Essa semana estamos recebendo várias ligações para entrevistas. O sistema penitenciário só é notícia dos grandes jornais quando acontece fuga ou rebelião. Quando divulgamos dados das nossas visitas falando que não há água e comida nos presídios, a imprensa não quer saber. As pessoas em geral pensam dessa forma até acontecerem atrocidades como essas.
Brasil de Fato - Por outro lado, no Rio, há mortes silenciosas, não causadas por brigas e rebeliões, quase 1 mil entre 2011 e 2016, segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). Essas mortes podem ser fruto da superlotação?
Eu acredito que sim. A superlotação ocasiona diversas coisas inclusive em mortes. Não há acesso à saúde, não há remédio. Hoje em alguns presídios do Rio não tem dipirona. Inclusive algumas unidades têm permitido que os familiares levem remédio aos presos. Não tenho dados específicos que comprovem esse número de mortes, mas posso dizer que existem diversas mortes causadas pela superlotação que sequer temos conhecimento.
Brasil de Fato - Qual seria uma medida fundamental para tratar o problema da superlotação?
Redução do número de presos, com concessão de benefícios e aplicação de penas alternativas. Poderíamos trabalhar com a redução de presos provisórios, há inúmeros casos que podem ser revistos. Temos que começar por aí, enquanto isso não for feito não há o que se falar.
Edição: Vivian Virissimo
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