A justificativa para a prisão de Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), nessa terça-feira (17), é mais um capítulo do esfacelamento do Estado de Direito no Brasil.
Boulos foi detido enquanto acompanhava a reintegração de posse de uma ocupação na zona leste da capital paulista. A ocupação não havia sido organizada pelo MTST, mas o movimento tentava negociar com a Polícia Militar de São Paulo uma saída pacífica e que garantisse o direito à moradia para as mais de 3 mil pessoas da Ocupação Colonial. Não houve sucesso. Sem qualquer amparo das autoridades públicas, teve início um processo de resistência popular.
O dirigente do MTST, encaminhado à delegacia, foi fichado com base na teoria do domínio do fato. Boulos foi enquadrado “não por ter participado diretamente do comportamento delitivo, mas sim porque com sua conduta, emana ordens aos demais, ou até mesmo muito embora o pudesse fazer, não impede que o resultado criminoso se verificasse”, conforme o boletim de ocorrência.
Ocorre que, desde o processo que ficou conhecido como Mensalão, a teoria do domínio do fato, concorde-se com ela ou não, tem sido mal aplicada e distorcida.
A teoria do domínio do fato surge no pensamento jurídico alemão. Originada por Hans Welzel em 1939, foi desenvolvida por Claus Roxin na década de 1960. Qual inovação ela ensejou? No Direito Penal, há uma distinção entre autor e partícipe. Grosso modo, o primeiro realiza o crime, o segundo apenas colabora, tendo pena menor. O mandante de um homicídio, por exemplo, se enquadraria em qual das duas categorias?
A teoria do domínio do fato propõe conceitualmente um método de identificação para esses casos. Nessa visão, aquele que elaborou, ordenou e teve controle sobre a realização de um crime, além de ter o poder de interromper sua execução, é também autor. No exemplo, um mandante, portanto, seria autor do homicídio.
O mau uso dessa teoria foi consagrado em apenas uma frase. “Não tenho prova cabal contra Dirceu – mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite”, disse a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, no julgamento de José Dirceu. Ocorre que a teoria do domínio do fato não dispensa apresentação de provas. É necessário demonstrar não só o domínio, mas também os fatos, ou seja, que o acusado se envolveu na execução do crime. O próprio Claus Roxin, à época, desautorizou a interpretação que vinha sendo feita de duas ideias pelo STF.
Boulos, e não só ele, não pode ser criminalizado pelo papel de destaque que cumpre na luta popular. É necessário mostrar que ele ordenou crimes. Não se apontou qualquer elemento nesse sentido. Aliás, de qualquer forma, é difícil identificar comportamento criminoso em resistir a ordens judiciais injustas.
É sabido que para parte expressiva da população brasileira, mais especificamente negra e periférica, o respeito aos direitos e garantias fundamentais nunca existiu de maneira plena. A introdução da teoria do domínio do fato na prática judicial e seu mau uso, entretanto, tem nivelado por baixo essa situação. Do ponto de vista da luta política, pode ser um mecanismo de perseguição à lideranças populares.
O sistema de provas no processo penal, a presunção de inocência, o direito ao contraditório e a individualização das condutas são conquistas do liberalismo político contra o arbítrio estatal e sua forma judicial típica: a inquisição. Ao relativizá-los, o Brasil dá início a um novo método de perseguição. Antes de se debater a teoria do domínio do fato, é imperativo que se repudie sua utilização distorcida. Se ontem os alvos eram supostos inimigos religiosos, hoje são os tidos como hereges na política: os que ousam contestar.
* Rafael Tatemoto é advogado e jornalista do Brasil de Fato.
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