No mesmo dia de sua posse, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ordenou que agências do governo estadunidense paralisassem regulamentações a Lei de Saúde Acessível (Affordable Care Act – ACA) de 2010, conhecida como "Obamacare". Esta era uma de suas principais promessas durante a campanha presidencial.
No Salão Oval, Trump assinou um decreto que solicitava que departamentos do governo "renunciem, adiem, concedam isenções ou atrasem a implementação" de disposições que imponham encargos fiscais em Estados, empresas ou indivíduos.
Ainda não se sabe as consequências dessas alterações no programa, mas elas podem refletir em “uma sentença de morte” para pessoas com doenças e lesões preexistentes — que, a partir do Obamacare, não podem ser ignoradas pelas empresas seguradoras. A avaliação é de Nijmie Dzurinko, ativista do Put People First, organização popular do estado da Pensilvânia que integra a New Poor People’s Campaign (Campanha pelos Novos Pobres, do inglês).
Dzurinko tem 40 anos e há dois anos tem a cobertura de um plano de saúde com subsídios do governo federal. “Os mais pobres, as mulheres, não-brancos, a população LGBTQ [lésbicas, gays, bissexuais, trans e queers], pessoas com deficiência, crianças e idosos serão os mais atingidos pelas mudanças de Trump”, afirmou a estadunidense.
Contexto
A Lei de Saúde Acessível entrou em vigor em 2014 e expandiu os programas Medicare, para pessoas com mais de 65 anos ou com deficiências, e o Medicaid, para pessoas de baixa renda. A nova legislação forçou todos os cidadãos a adquirirem planos privados, além de proporcionar subsídios para pessoas de baixa renda.
Atualmente, 28 milhões de pessoas ainda não têm seguro médico nos EUA, onde não existe um sistema de saúde público nos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Desde a implantação da ACA, este número reduziu: em 2013, cerca de 41 milhões de pessoas estavam sem assistência.
Mesmo com os avanços, Nijmie Dzurinko pontua que a lei do ex-presidente democrata é um plano de saúde conservador. Segundo ela, mesmo com os subsídios, os planos são caros e, além da mensalidade, os segurados têm que arcar com uma série de outras despesas. “O acesso ao convênio não necessariamente significa acesso à saúde”, declarou a ativista.
Para Dzurinko, a luta dos movimentos populares no país deve ser pautada pela reivindicação de um sistema de saúde universal e com serviços gratuitos.
Alterações
As mudanças na ACA já passaram por votação no Congresso dos EUA na semana passada. No dia 13 de janeiro, a Câmara dos Deputados aprovou a redação do projeto de revogação do texto implantado por Obama. No Twitter, rede social na qual o novo presidente expõe diariamente opiniões polêmicas, Trump afirmou que em breve a “Lei de Saúde Inacessível” seria história.
Sem uma alternativa ao Obamacare, o número de estadunidenses sem seguro de saúde pode alcançar 32 milhões. Segundo um estudo do Escritório de Orçamento do Congresso (EOC) publicado nesta terça-feira (17), ao menos 18 milhões de pessoas podem perder o seguro de saúde até 2018 nos EUA em caso de uma substituição do programa sem novas alternativas. Já o custo para os atuais segurados pode dobrar em dez anos.
Embora refutem a lei dos democratas, os republicanos não expuseram como a reforma na saúde será feita. Trump afirmou apenas que seu gabinete estava próximo de concluir um plano que dará “seguro a todos”. A previsão é que a obrigatoriedade do seguro médico seja excluída e que os subsídios federais para pessoas de baixa renda sejam consideravelmente reduzidos.
Leia abaixo a entrevista na íntegra concedida por e-mail ao Saúde Popular com a ativista estadunidense, concedida antes da decisão de Trump:
Saúde Popular: O Obamacare é um programa de subsídio, não um sistema público de saúde como o que existe no Brasil. Mas até que ponto você acredita que essa política mudou o acesso de saúde nos Estados Unidos?
Nijmie Dzurinko: O Obamacare forçou as empresas seguradoras a tratar pessoas com doenças preexistentes, embora as empresas sempre consigam maneiras de burlar isso; estabeleceu uma lista de “benefícios essenciais de saúde” que todos os planos de seguro devem cobrir; permitiu que os jovens permaneçam nos planos de seus pais até a idade de 26 anos; expandiu Medicaid para a população pobre; deu acesso ao seguro (mas não a cuidados de saúde) a milhões de novas pessoas; obrigou as pessoas que não têm seguro contratar ou elas têm de pagar uma multa — atualmente em 600 dólares ou uma certa percentagem de sua renda. Basicamente, a parte mais conhecida da Lei é que para indivíduos ou donas de casa cuja renda seja até 64 mil dólares anuais, existem “subsídios” que ajudam o pagamento do seguro. Mas a realidade é que esses subsídios são pagos por nossos impostos e ainda temos que pagar a mensalidade, franquias (que é uma quantia que você tem que pagar, cerca de milhares de dólares, antes do seguro pagar pela assistência), reembolso (valor que você paga cada vez que você visita um médico ou especialista) e prescrições. O acesso ao convênio não necessariamente significa acesso à saúde. Muitas pessoas, eu inclusa, descobriram que o Obamacare realmente não é tão acessível. As mensalidades aumentaram ano após ano desde que o “mercado” existe. As pessoas têm visto suas mensalidades ir de 80 dólares por mês no primeiro ano, para 120 dólares no segundo e 200 dólares, no terceiro ano.
O que poderia ser melhorado?
Precisamos de um sistema de saúde universal, com serviços gratuitos e que seja pago com nossos impostos — cada um contribuindo com o que pode e obtendo o que precisa — sem redes restritivas e com a capacidade de manter os preços baixos e acabar com o predomínio das empresas farmacêuticas. Um dos maiores problemas do nosso sistema de saúde é que, por existir tantas barreiras ao acesso, as pessoas frequentemente têm que esperar até que se tenha uma emergência para obter cuidados. Isso faz com que o sistema custe mais, resulte em pessoas mais doentes e é realmente ruim para a sociedade.
Trump quer substituir o Obamacare, mas nunca explicou como isso será feito. Até agora, sua promessa é “seguro para todos”. O que esperar da reforma de Trump?
Honestamente, não sabemos ainda. A única coisa concreta que ele apresentou é a mudança do sistema para que as empresas possam vender seguros através de linhas estatais. Isso não resolve nada e provavelmente resultará em uma corrida para se criar planos baratos que, na verdade, não vão oferecer uma cobertura real. O que parece é que ele definitivamente não vai conter o poder das seguradoras e, enquanto elas estiverem no coração do nosso sistema de saúde, não teremos o que precisamos.
A substituição do Obamacare está no centro da agenda dos republicanos. Na sua opinião, quais são os principais interesses envolvidos na sua substituição?
Primeiro, a política partidária. ACA é assinada e associada aos democratas e ao presidente Obama. Mas, na realidade, é um plano de saúde conservador que foi concebido dentro da Heritage Foundation, uma instituição de direita. Mas isso não é apenas sobre o que chamam de Obamacare, mas sobre atacar Medicare e Medicaid, dois programas muito populares que fazem parte dos nossos direitos de saúde nos EUA. Os republicanos querem cortar esses programas, então o ataque à ACA é também um cavalo de Tróia para remover todos os direitos de saúde em geral. Especificamente, eles estão falando em retirar fundos do Medicaid, que se tornará um programa de repasse de dinheiro sem vinculação garantida com o programa. Ou seja, o Governo Federal repassará orçamento os estados que, em seguida, vão decidir como gastar o dinheiro. Por isso, o Medicaid corre o risco de ser cortado nas negociações de orçamento e o dinheiro, alocado em outro lugar, ameaçando o acesso de milhões de pessoas. Além disso, o plano dos republicanos é transformar o Medicare em um programa pré-pago, o que significa que não será automaticamente coberto e que as pessoas terão que arcar por conta própria com gastos dos cuidados com base em quanto dinheiro elas conseguem poupar.
Qual será o impacto imediato se a ACA for alterada?
Aproximadamente 20 milhões de pessoas adquiriram recentemente convênios através da expansão ACA e Medicaid. Todas essas pessoas serão atingidas. Pessoas que estão em tratamentos oncológicos teriam que lidar com a perda de sua cobertura e, possivelmente, de suas vidas. Pessoas com “condições pré-existentes” receberão uma sentença de morte. Os mais pobres, as mulheres, não-brancos, a população LGBTQ, pessoas com deficiência, crianças e idosos serão os mais atingidos. Algumas pessoas acreditam que os republicanos vão lançar as bases agora, mas não vão se mexer para mudar completamente a lei até as próximas eleições de meio de mandato [em 2018].
*Com informações da AFP e entrevistas publicadas originalmente no Saúde Popular
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