Eles acreditam que o atendimento médico deve ser gratuito e de qualidade para todos os cidadãos. Que a medicina não pode ser pautada pelos interesses financeiros. Que o compromisso do Estado é com o povo e não com o corporativismo médico.
São essas ideias que movem os integrantes da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, criada em 2014, e composta por centenas de profissionais espalhados em 11 estados brasileiros. “Trata-se de um movimento popular, criado para dar uma resposta a essa polarização da sociedade e mostrar que dentro da classe médica não são todos conservadores. Tem muita gente que pensa diferente”, explica o médico Renato Santos, um dos fundadores da rede no Rio de Janeiro.
A visão progressista da política, a defesa da saúde pública e da democracia, assim como a postura contrária ao conservadorismo da classe médica, fez com que profissionais de diferentes especialidades da medicina unissem forças para criar uma rede onde pudessem debater, participar de mobilizações e apresentar propostas para o setor da saúde.
Porém, na prática é mais que isso. Cada um desses integrantes está fazendo a diferença nas áreas onde atuam. A médica de família e comunidade, Valeska Antunes, trabalha há cinco anos no programa Consultório na Rua, da prefeitura do Rio de Janeiro, onde atende diariamente pessoas em situação de rua. Além disso, também presta atendimento na favela de Manguinhos, localizada na Zona Norte do Rio.
“Por mais dura que seja a realidade dessas pessoas, só o fato de ter atendimento médico em lugares onde antes não tinham acesso ao sistema de saúde, já faz muita diferença na vida de quem mora em comunidades pobres ou na rua”, afirma Valeska Antunes, de 36 anos.
A médica sanitarista Hania Silva Bidu, de 33 anos, atende a população de abrigos públicos do Rio e de comunidades do bairro da Ilha do Governador, na Zona Norte do Rio. “Minha decisão de trabalhar na saúde pública vem de minhas convicções, por acreditar que a saúde é direito de todos e não apenas dos poucos que podem pagar. Não dá para pensar a saúde como direito sem um sistema público e gratuito”, destaca a médica.
Assim como Valeska e Hania, tantos outros médicos integrantes desse movimento fizeram da medicina uma trincheira de luta contra as desigualdades, as opressões sociais e os males que adoecem a população mais pobre. Esse é caso de Fernanda Salvador, que atende na comunidade Estácio, região central da cidade. Luciana Cajado trata moradores de rua na Lapa e no Centro. Mariana Brêttas, médica, negra, militante, atua em Manguinhos. Joana Thiensen é psiquiatra e trabalha na Rocinha, maior favela do Rio de Janeiro. Todos exemplos de médicos e médicas que decidiram ir além do tratamento das doenças e entender coletivamente os problemas da saúde e da política.
Mariana Brêttas é a única médica negra na comunidade de Manguinhos. “Vejo que o fato de ser negra causa certa surpresa nas pessoas quando chegam à clínica da família. Até porque os negros são 2% entre os médicos, porém somos mais de 50% da população brasileira. A receptividade é muito boa, já que a maioria da população dessas comunidades também é negra. Eles olham para mim e sentem que podem chegar onde quiserem”, conta a médica.
Entre as doenças que mais trata na população adulta está a hipertensão, o transtorno de ansiedade e a depressão. “Vejo que os trabalhadores estão estressados. As condições sociais têm impacto na saúde mental das pessoas das comunidades carentes e isso fica claro nas consultas. A relação de trabalho fragilizada, sem direitos, a perda de emprego e o dia a dia de violência e tiroteios causam todos esses transtornos psíquicos", analisa.
Além de ter profissionais atendendo nessas áreas, a rede também se organiza de forma coletiva e teve uma atuação efetiva na ajuda humanitária à população de Mariana (MG), durante o desastre ambiental provocado pela Mineradora Samarco/Vale. O grupo montou uma brigada médica para atender as vítimas da tragédia de forma gratuita.
Recentemente, o trabalho desenvolvido em Mariana resultou no capítulo de um livro escrito por membros da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares sobre os impactos na saúde física e mental dos moradores da região. O livro “Desastre no Vale do Rio Doce – Antecedentes, impactos e ações sobre a destruição” foi organizado pela coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Mobilizações Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Cristiana Losekann e o engenheiro Bruno Milanez, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Medicina e ativismo político
Ações como essas convertem os integrantes desse movimento médico em profissionais comprometidos com a população, mas também em atores políticos. Entretanto, a pergunta que fica é: qual o ponto exato onde a medicina encontra com a política? Para Renato Santos isso se dá quando um tema interfere no outro. “No atual momento, defender a saúde pública é apontar que esse contexto de austeridade impacta na saúde das pessoas de forma muito clara. Tem vários estudos que mostram isso. Na Grécia, por exemplo, os cortes de recursos para a saúde impactaram na sociedade como um todo. Afeta os mais pobres e também a classe média”, explica.
Hania Bidu defende que é obrigação dos médicos debater os fatores de adoecimento e morte em massa da população. “A Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares tem uma função que é debater e difundir os problemas políticos que recaem sobre a saúde. Ela nasce da ideia de criar uma resistência ao esquartejamento da saúde pública, mas ela também fortalece os outros espaços de luta como fóruns e conselhos”, ressalta a médica sanitarista.
Para Valeska Antunes o papel do profissional médico deve ir muito além do tratamento de doenças. “Trabalho em uma comunidade onde a principal causa de morte é o extermínio dos jovens negros por conta da repressão ao tráfico de drogas. É papel do médico discutir as causas das mortes massivas”. Ela defende o debate sobre a legalização das drogas na classe médica. “Assim como nós incorporamos o debate da Lei Seca, porque os acidentes de trânsito eram as principais causas de superlotação das emergências, nós temos que discutir política de contenção de danos em relação ao tráfico de drogas já que é a principal causa de morte dos jovens negros e pobres”, explica.
Segundo Valeska a saúde pública precisa ser vista de uma forma mais ampla, de uma maneira que englobe o cidadão e o ambiente social e político em ele vive. “Tem problemas de saúde que o remédio não resolve. E aí, o que a gente faz? ”, questiona a médica. Elas ainda afirmam que essa realidade de trabalho também é uma situação nova para os profissionais de saúde que nunca chegavam a essas zonas de conflito e agora chegam. “São mães que adoecem vendo seus filhos mortos ou presos e famílias com medo. O que tentamos sempre é tratar e dar condições. O que tentamos fazer é criar condições para essas pessoas aumentem sua capacidade de resistir e reagir aos problemas e tentem sair deles”, diz.
Na Ilha do Governador, o médico da família Lucas Galhardo enfrenta desafios parecidos. “Os fatores de adoecimento em áreas pobres são diferentes dos bairros de classe média. A doença vai muito além da contaminação de um vírus ou uma bactéria. Aqui as pessoas são submetidas a uma carga de trabalho extensa, transporte público ruim e alimentação de má qualidade. Enquanto houver desigualdade social não haverá saúde para toda a população”, aponta o médico. Ele atende pacientes oriundos das favelas do Morro do Dendê, Tijolinho e Jardim Duas Praias.
Lucas defende que a saúde deve ser olhada para além do tratamento, mas também para a prevenção. “Aqui temos uma academia popular e incentivamos os pacientes a fazer exercício. A clínica da família onde atendo foi instalada em setembro do ano passado, então tem muita gente que não tinha acesso ao médico a muito tempo e problemas que foram se tornando complexo porque não recebem tratamento adequado no começo da doença. Esse é o lado mais difícil e o desafio é maior, mas vamos tentando organizar e tratar todas essas pessoas”.
Conservadorismo ataca a saúde
Atendimentos em favelas, periferias, cidades isoladas e regiões com alto índice de pobreza foram possíveis depois de implementado o programa Mais Médicos, do governo federal. Foi ele que permitiu a ampliação da Clínicas de Família em milhares de municípios brasileiros. Esse programa também é ponto chave do debate, pois foi a partir dele que a classe médica se dividiu entre os que defendiam a saúde pública e os interesses privados. “As corporações médicas foram muito agressivas contra o programa Mais Médicos. Existe um corporativismo muito grande na profissão”, ressalta Valeska Antunes.
“Os médicos foram o primeiro setor da sociedade a protestar contra o governo Dilma, mostrando sua face conservadora. Quem não concordava com a postura do Conselho Federal de Medicina (CFM), na sua crítica contra o Mais Médicos, eram escrachados, sofriam represálias. Por isso a necessidade de um movimento como a rede popular de médicas e médicos”, destaca Renato Santos.
Um dos pontos do programa mais alvejados pelos setores conservadores do corporativismo médico foi a questão da formação e a mudança nas universidades. Segundo os médicos da rede popular, a intenção do governo Dilma era ampliar a formação das especialidades e garantir que todo médico residente fosse remunerado durante essa preparação. Isso iria garantir mais especialistas ao sistema público de saúde e diminuir o caráter elitizado de algumas especialidades médicas. As reservas de mercado iriam acabar. Apesar do programa estar estagnado, os profissionais que atuam no programa ainda têm esperança de essa etapa ser implementada no futuro.
Diante da realidade de crise política e econômica, esses médicos e médicas que fazem a diferença na rua, nas periferias e regiões isoladas, decidiram ir à luta também no campo político e hoje integram a Frente Brasil Popular, uma organização que reúne dezenas de movimentos populares que lutam contra retrocessos sociais e em defesa da democracia.
Edição: Vivian Virissimo
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