A crise penitenciária que se instalou no país tem provocado reações tentaculares, mobilizando gestores de políticas públicas, comunidade jurídica e sociedade civil organizada. Na última quarta-feira (25), um novo ingrediente veio se somar ao caldeirão das polêmicas que circundam o sistema prisional: sete membros do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) renunciaram aos cargos no colegiado, incluindo o próprio presidente.
A medida consiste num protesto contra as diretrizes do atual governo. O órgão, que é vinculado ao Ministério da Justiça (MJ), estaria sendo desprezado na condução da política carcerária do país, segundo apontaram os respectivos conselheiros em carta-renúncia divulgada à imprensa.
A demissão veio logo após o ministro Alexandre Moraes publicar uma portaria ampliando de cinco para 13 o número de suplentes do Conselho, num movimento de extensão da influência governista no órgão. “Querem que todas as críticas sejam ofuscadas e omitidas do debate público”, assinala o advogado Gabriel Sampaio, um dos conselheiros, em referência à atual política de relacionamento do MJ com o órgão.
Em entrevista ao Brasil de Fato, ele fala sobre os pontos que motivaram o pedido de demissão coletiva, avaliando a política carcerária do país, e dispara: “Vivemos um processo de alto populismo penal”. Sampaio também é ex-secretário de Assuntos Legislativos do MJ e ex-integrante do Conselho Nacional de Direitos Humanos.
Confira a seguir a entrevista.
Brasil de Fato: Primeiro, gostaria que você falasse sobre o estopim que levou à sua saída e dos outros seis conselheiros que assinam a carta-renúncia. Como isso se relaciona com a atual crise penitenciária?
Gabriel Sampaio: O estopim está diretamente relacionado ao comportamento do governo em relação à crise. Diante da gravidade do que vivemos hoje, temos a clareza de que é preciso um grande esforço nacional, um pacto republicano pra enfrentar isso, ou seja, é preciso aproveitar ao máximo a opinião da comunidade jurídica, a participação do Poder Judiciário, das Defensorias Públicas, dos advogados. Estamos diante de uma grave crise, e ela exige respostas que envolvam toda a sociedade. O que aconteceu, ao contrário disso, foi um governo agindo de forma autocrática e errando desde o início nas respostas dadas à crise.
Primeiro, com uma medida provisória que foi editada no final do ano passado e desviava recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para o Fundo de Segurança Pública. Isso é importante de se colocar porque é algo fundamental, até mesmo pelo reconhecimento do STF de já ter percebido que o sistema penitenciário vive uma crise que não é exclusivamente de segurança pública; ao contrário, a segurança aparece nessa crise como o efeito de um problema mais complexo, que exige que os recursos do Funpen sejam utilizados, por exemplo, para garantir educação, saúde e trabalho para pessoas presas. O próprio STF indicava que os recursos do Funpen deveriam ser gastos com a política penitenciária, ao contrário do que o governo fez.
Na sequência, tivemos ainda o decreto de indulto. O governo, de novo, desconsiderou não só o trabalho feito pelo Conselho Penitenciário – nós fizemos um debate muito qualificado durante mais de um ano, ouvindo uma série de setores, e foi feita uma relatoria, foi feito um voto-vista – como editou um decreto que sequer tinha relação com os decretos dos últimos anos. Foi um retrocesso para mais de 20 anos no indulto, que é um importante instrumento do Poder Executivo pra corrigir alguns problemas do sistema penal. Esse decreto veio de um comportamento autocrático e autoritário do governo federal. E, por fim, tivemos o Plano Nacional de Segurança Pública, que trata por slides, e não por uma argumentação completa, do tema penitenciário. Ou seja, numa discussão que precisava ser muito mais ampla, foram feitas algumas observações absolutamente insuficientes sobre o sistema penitenciário e que desconsideram a existência do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciaria, que existe desde 2015 e foi feito pelo CNPCP, envolvendo todos os atores do sistema de Justiça.
Diante da clareza de que haveria uma crítica no CNPCP, o ministro resolveu alterar a composição do Conselho, numa medida que fere o próprio regimento do colegiado. O aumento do número de membros é porque eles querem que todas essas críticas sejam ofuscadas e omitidas do debate público. Nós optamos, então, por levar esse debate à sociedade, explanando os motivos da nossa saída.
Que tipo de consequências essa alteração no Conselho pode trazer para a sociedade?
Os riscos são grandes. Primeiro, o simbólico. Se, para muitos de nós, já era clara a falta de compromisso do atual governo com a democracia, agora isso fica ainda mais claro. Não se trata da necessidade de adotarem, sem nenhuma crítica ou reflexão, as manifestações do Conselho.
A questão é eles desconsiderarem aquilo que o CNPCP traz como uma contribuição, que não é feita simplesmente por conselheiros que têm uma visão diferente do Ministério. É feita por pessoas especialistas na área, que têm legitimidade para tratar do problema e que são ignoradas. E, pior do que serem ignoradas, são golpeadas por um tipo de estratégia que não condiz com o ambiente democrático, ofuscando um debate sério e importante.
No lugar de prestar contas à sociedade sobre a insuficiência das medidas que estão sendo tomadas, o governo prefere alterar a composição do Conselho e ofuscar de todas as maneiras as críticas que são feitas. A sociedade precisa de um governo legítimo para lidar com o problema dessa gravidade como é o do sistema penitenciário.
Uma das medidas mais recentes do governo que você mencionou é o Plano Nacional de Segurança Pública, que tem recebido críticas por ter sido formulado sem debate com a sociedade. A criação de novas unidades prisionais, inclusive de segurança máxima, é uma das metas que estão sendo colocadas pelo Planalto. Para onde isso aponta?
Aponta de novo para reforçar os problemas já existentes. Todos nós somos críticos à superlotação das unidades prisionais, mas um governo que olha pra isso cegamente, sem fazer uma análise estrutural, não vai parar de construir vagas em presídios. Sempre vai haver mais demanda se não se enfrentar o problema na gravidade que ele tem. É como se estivéssemos indo ao médico com uma febre e só aplicássemos um antitérmico, sem avaliar qual é a profundidade daquilo que gera o problema. Nós estamos diante de um problema grave, e o país precisa discutir se realmente quer continuar prendendo pessoas por furto como prendemos hoje, porque 13% da população prisional são de presos por furto. A sociedade gasta R$ 3 mil por mês para colocar uma pessoa numa unidade prisional que só a piora e só cria demanda para uma facção criminosa. Gasta-se muito mais do que a reparação de um valor econômico para vítima.
Continua-se prendendo pessoas por tráfico de drogas, muitas delas usuárias. Isso porque a legislação é falha em lidar com a questão do tráfico e do uso, porque não há uma clareza em relação à punição para esse crime. Desde 2006 esse foi o maior impulso que se deu no sistema penitenciário. É correto que a sociedade trate dessa forma um usuário? No caso do tráfico, também há uma distorção em relação às pessoas que estão nas cadeias. A maioria é presa com pequena quantidade [de drogas], sem porte de armas e em flagrantes, em geral, feitos sem maior elaboração, ou seja, sem testemunhas e numa condição que denota que se trata de um tráfico mais simples, não tão elaborado. Essas pessoas estão ocupando mais de 26% das vagas no sistema prisional, e a demanda pelo tráfico continua acontecendo e se desenvolvendo.
Mesmo triplicando a população presa por tráfico, não houve nenhuma diminuição dessa atividade; ao contrário, o tráfico só se expandiu. Parte das brigas das facções criminosas é justamente por espaço no comércio do tráfico. Ou nós vamos discutir e fazer um debate sério na sociedade sobre que rumo nós queremos dar pra questão da punição e da repressão ao tráfico ou nós vamos continuar reproduzindo os problemas graves que vivemos hoje. Pessoalmente, acho que é necessário uma discussão que caminhe para a legalização do comércio de drogas. Na história da humanidade, não há nenhum indício de que há possibilidade de uma sociedade viver sem que as pessoas consumam drogas. É preciso ter soluções efetivas. Precisamos alterar a legislação e avaliar formas mais inteligentes de ter alternativas penais para os casos em que não é preciso ter pessoas presas. Se temos hoje 40% das pessoas presas sem uma sentença que prove que elas são culpadas, há uma irracionalidade.
Como essa guerra às drogas que foi declarada pelo atual governo se localiza no panorama mundial? É possível afirmar que ela vai de encontro às tendências globais de políticas públicas que vêm sendo formuladas para lidar com o problema?
Sem dúvida. A ONU já reconheceu que a política de guerra às drogas deu errado, e um exemplo disso é o caso brasileiro. Se estamos discutindo essas disputas de facções dentro do sistema prisional, em parte é pelo caos que foi a política de drogas no país. E qual a solução? Ela vai ser debatida pela sociedade com processos de transição, caso se tenha dificuldade em tomar medidas mais radicais num primeiro momento. Mas pode haver experiências para obter avanços. É o caso do Uruguai e de vários estados estadunidenses, por exemplo, que têm regulamentado o uso da maconha. Não se tem notícia de nenhuma crise social por causa disso; ao contrário, há avanços, em especial na questão da criminalidade. Então, retomar hoje o discurso de guerra às drogas e repressão absoluta é repetir o que tem dado errado.
Sobre a problemática do encarceramento, um aspecto que tem sido muito discutido é a questão do alto índice de presos provisórios, que chega a mais da metade em alguns estados. A princípio, são pessoas inocentes, já que não tiveram sentença judicial. Na sua avaliação, por que o país ainda não conseguiu alavancar políticas que reduzam efetivamente esses índices?
Isso é um grande exemplo do porquê de dialogarmos com a ideia de um grande pacto republicano para enfrentar os problemas da política criminal e penitenciária. O país aprovou em 2011, depois de um grande esforço de muitos atores, uma lei para dar opções alternativas à prisão preventiva, que é aquela que ocorre justamente no caso do preso que ainda não está condenado. Essa lei permitiu outras possibilidades, como monitoramento eletrônico, privação de fim de semana, prisão domiciliar, vários instrumentos para evitar a prisão preventiva, mas nada mudou em relação às prisões provisórias. Ou seja, o país precisa de um esforço para além do Legislativo.
É importante haver, do ponto de vista do sistema de Justiça criminal, do Poder Judiciário, do Ministério Público, das Defensorias Públicas e das advocacias, um esforço para que a lei seja aplicada. Há alternativa legislativa para que não haja essa distorção. O impacto que se tem é que, além da superlotação, temos um contingente de pessoas presas que sequer sabemos se são culpadas, alimentando o sistema criminal e a disputa de facções criminosas dentro dos presídios. Ora, um processo penal teria uma média de duração que poderia ser de 120 dias. Será que o Estado não pode ter um esforço de respeitar a liberdade de alguém que não foi condenado durante o período do seu processo, pra que só cumpra uma sentença aquele que é comprovadamente culpado?
Vocês criticaram o decreto de indulto editado pelo ministro Alexandre Moraes no final do ano, afirmando que o dispositivo é muito restritivo. Gostaria que você explicasse em detalhes o papel do indulto como política pública dentro do sistema carcerário.
O decreto é assinado pelo presidente da República depois de encaminhado pelo ministro da Justiça e é uma tradição que vem desde o período do Império. Trata-se de uma indulgência, um perdão dado pelo chefe de Estado às pessoas que, pelas condições humanitárias e de cumprimento da pena, já podem ter o perdão do Estado em relação à pena que deveria ser cumprida. Isso tem ajudado a corrigir distorções no sistema prisional. Temos, por exemplo, situações de pessoas presas que contraíram uma paraplegia, ficaram tetraplégicas, têm dificuldades de lidar com problemas de saúde – contraídos na prisão, muitas vezes – e teriam no decreto do indulto uma forma de reduzir os problemas que a pena lhe causaria. Nem o Estado tem condições de dar o tratamento ideal a essas pessoas e nem elas vão gerar riscos dentro do ambiente social com sua saída. O decreto de indulto visa, então, corrigir esse tipo de problema. Como nós vivemos um processo de alto populismo penal, pra maioria dos problemas que surgem no país se busca uma resposta penal, prendendo as pessoas. O decreto de indulto tenta reduzir os efeitos dessa política populista e, de forma racional, libera as pessoas que apontam pra um processo de integração social maior do que o próprio sistema pode proporcionar.
O que houve de retrocesso nesse último decreto foi, primeiro, uma redução da população que poderia ter acesso ao indulto. Em quais aspectos? Temos desde pessoas que cometeram crimes com violência ou grave ameaça, e o indulto nunca separou essa condição. Porque, uma vez que o juiz dá uma sentença penal condenatória, inicia-se para o Estado a necessidade de promover a integração social dessa pessoa. Uma vez iniciado o cumprimento da pena, começa-se um programa de integração social. Muitas vezes uma pessoa é condenada por um crime que tem um nível baixo de violência e, ao longo do seu cumprimento da pena, já demonstra condições de estar em sociedade.
E aí o MJ alterou essa que era uma regra clássica, reduzindo, inclusive, o indulto para os casos de idosos. O Estatuto do Idoso, por exemplo, designa como idosa uma pessoa a partir de 60 anos, mas isso foi desconsiderado pelo governo, que aplicou o conceito da pessoa com 70 anos – talvez preparando também a população prisional para a reforma da Previdência que pretende fazer. O Estado que não faz nenhum tipo de autocrítica sobre a falência na sua capacidade de oferecer trabalho, estudo, condições mínimas de higiene e o mínimo de proteção à saúde é o mesmo Estado que quer mostrar a sua mão forte, impondo uma situação de força, e quer manter presas as pessoas nessas situações.
Uma das coisas que vocês criticaram na carta-renúncia é a recente liberação que o governo federal deu para que recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) sejam canalizados para outros fins, como, por exemplo, atividades policiais. Há aí uma confusão conceitual entre o sistema penitenciário e a segurança pública?
Sim. Essa é uma confusão que ocorre em vários ambientes, mas não deveria ocorrer na gestão pública. É importante que o cidadão tenha claro que não se está ignorando que algumas situações de crise prisional possam ter um reflexo na segurança pública. Algumas vezes há, como ocorreu no Rio Grande do Norte, onde houve problemas nas ruas por conta de situações de dentro do sistema prisional. Mas isso é o reflexo de um problema mais grave.
A segurança pública tem um conjunto de verbas asseguradas pela Constituição, pelos estados e por diversas fontes para financiar a necessidade do Estado de prover, por meio das polícias, essencialmente, prevenção e repressão ao crime. Essa é a função de um sistema de segurança pública. É preciso investir na inteligência para a prevenção do delito e em equipamentos para repressão ao delito. Tudo isso tem uma base constitucional e legal, com uma série de recursos previstos, inclusive recursos volumosos.
A outra coisa se chama execução penal, sistema penitenciário. É o que o sistema vai proporcionar para que a sociedade tenha de volta, com o mínimo de integração social, as pessoas que foram presas. Se o sistema se propõe a isso, primeiro, ele precisa ter condições mínimas de saneamento básico, oferecer oportunidades de trabalho, para que a população carcerária tenha ocupação e possa, inclusive, reduzir o custo da prisão, oferecer condições de saúde e outras tantas condições pra que ela tenha interação social. (...)
Cada preso custa ao estado R$ 3 mil. Se você chega numa unidade e vê como esse dinheiro é aplicado, ele é aplicado com esgoto a céu aberto dentro da prisão, sem condição muitas vezes de o preso dormir, sem acesso a trabalho e a educação. O que se quer é um Estado que ofereça condições e até evite o desenvolvimento de um sistema brutal, que desenvolve o que há de pior dentro daquilo que é a nossa percepção da natureza humana, porque o próprio Estado é incapaz de criar condições mínimas de sociabilidade num sistema que deveria ser voltado pra trazer integração social, referência de bons valores, pra que a sociedade tivesse de volta pessoas capazes de ter uma sociabilidade importante pra um modelo democrático e de sociedade livre.
Você mencionou uma série de problemas que atravessam a atual crise penitenciária que estamos vivendo. Olhando um pouco pra trás, você acha que faltou aos últimos governos o empreendimento de políticas mais estruturantes, que pudessem evitar essa eclosão de agora?
De fato... A gravidade do problema exige que as pessoas exponham suas ideias e enfrentem o debate público. Algumas vezes há o comportamento de certa fragilidade diante das críticas e dos argumentos mais conservadores. Lembro que, quando estive no MJ, o então ministro Eduardo Cardozo manifestou que as prisões eram masmorras, e ele foi muito criticado por isso. Foi criticado por ser honesto com a realidade e apontar pra sociedade que precisamos de soluções estruturais. Então, é importante que façamos esse exercício de humildade e tenhamos uma exposição pública pra enfrentar esse debate.
Você discutiu aqui as medidas do atual governo que sinalizam retrocessos na política carcerária. Este contexto de avanço conservador seria um momento em que vocês, militantes da luta contra a lógica do encarceramento, têm uma atuação mais na defensiva do que pelo alargamento de direitos?
Infelizmente, desde o ano passado temos vivido retrocessos em todas as malhas de direito. Isso é claro, visível, e exige de todos nós, primeiro, a consciência de que estamos sofrendo, gradativamente, uma ofensiva de setores conservadores e por isso precisamos cada vez mais de organização, formação, etc.
Precisamos apresentar à sociedade o conjunto de dados, informações sobre todo o erro que é a política da forma como ela vem sendo conduzida hoje, e a partir daí tirar ações que possam garantir a defesa dos nossos direitos para acumular força social para conseguirmos passar deste momento de defensiva e construir um novo ascenso da luta de massas.
Quando, na sociedade, alguém olha pra outra pessoa a perder o seu direito e se sente confortável por não ser ela e não se mobiliza contra aquilo, ela está reforçando cada vez mais essa ofensiva.
Edição: José Eduardo Bernardes
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