Há pessoas que nunca viveram na periferia, mas dizem que morariam por aqui de boa. Falam do calor humano, do preço da cerveja e da simplicidade. Isso deve ser um efeito-êxtase da escancarada Quebrada Cult, que convida os sentimentos mais longínquos pra se sentirem em casa e dizerem as receitas de como poderíamos viver melhor.
Talvez tenha sido mais fácil, pra essas pessoas, circular e palpitar pelas quebradas, em vez de aceitar nossa chegada no território alheio, pois os corredores dos hipermercados, as cancelas dos condomínios, os elevadores, os aeroportos e as portas de banco não costumam ser cordiais e permitem, no máximo, nossa presença mal paga nos palcos da vida pra divertir quem pode. Fora isso, há espelhos por toda parte nos vigiando e quando a expectativa de serviçal não é confirmada, a de suspeito é acionada.
Esta circulação soberba, sorridente e fervorosa pelas ruas daqui nos oferece a amnésia da Quebrada Cult, que veio do nada, é pop e feliz, a mesma que sugere perdoar a herança do “Xou da Xuxa” e afins e culpar o hip-hop e o funk pelas mazelas cotidianas.
A Quebrada Cult existe pra quem crê na utopia de duas ou três horinhas de diversão, palco, aplausos, eventos lotados e perspectivas vazias, enquanto as neuroses fritam lado a lado com a celebração (num é à toa que enquanto curtimos uma revolução em curso na bolha, a geral elegeu o primeiro riquinho-gari que apareceu pela frente). Mas disso não vou dizer, é tacar pedra na rua de baixo, o que importa é a história, esta que ensina como seguir neste caminho de lodos e ladeiras.
Nessas horas relembro o efeito escravocrata que deu origem às periferias urbanas e me questiono se as fórmulas higiênicas de luta, as cordialidades escancaradas e a lança apontada pro vizinho simbolizam revoluções ou o apagamento da culpa de quem nos aplaude em troca do ódio "nóis versus nóis".
Os maios e os novembros sangrentos, os enquadros cotidianos, a tiração hospitalar e a inundação do córrego, quartos de despejo cercados pela Força Pública desde o início do século 20 até os covardes-coturnos contemporâneos, ficam pra quem não pode escolher ficar somente no brinde.
Entender a origem empurrada do pós-abolição que gerou Brás, Bixiga, Parque Dom Pedro, Barra Funda, confluiu pelo Rio Tietê e trouxe as maletas de descaso do interior, dos Geraes, dos Sertões e fez morada em Pirituba, Perus, Casa Verde, Brasilândia e nas imensidões sul e leste fundão afora é chave pra refletir as arapucas do caminho.
Caso contrário, continuaremos aplaudindo o próximo verso raivoso e brindaremos sem culpa, pois esta é a Quebrada Cult que não importa de onde veio, mas está pronta pra assimilar quais as soluções a ponta da pirâmide têm pra pautar os nossos dias.
Tensionar nossos espelhos, chegar em territórios de impedimento e celebrar é importantíssimo, expande nossa praia e nossas práticas, é mata com queda d´água, mas há quem espere de braços abertos as contradições dos nossos quintais, cercando o ringue, sorrindo com alívio das nossas amnésias e apostando alto quem sucumbirá na próxima tretinha. Afinal, toda mata fértil tem cura e veneno vingando no mesmo roçado, é preciso ligeireza!
*Michel Yakini é escritor e produtor cultural
Edição: José Eduardo Bernardes