Acusado de dopar e estuprar uma estudante de Enfermagem, Daniel Tarciso da Silva Cardoso, estudante de Medicina da USP, foi absolvido na última terça-feira (7/2) pelo juiz Klaus Marouelli Arroyo, da 23ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).
Na sentença, à qual a reportagem da Ponte Jornalismo teve acesso, Arroyo justifica sua decisão com base na “inconsistência das declarações da ofendida” e no fato de haver “prova em sentido diverso, a sustentar a versão do acusado, quer de cunho testemunhal (…) como também documental (…)”.
Segundo ele, o fato de a estudante ter entrado no quarto de Cardoso “de livre e espontânea vontade” e ter dito a duas amigas, que estavam do lado de fora, “que ali permaneceria”, estariam entre os motivos para julgar improcedente a ação proposta pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) em maio de 2015. Cardoso foi denunciado por praticar sexo com pessoa vulnerável.
O advogado Renan Quinalha, que acompanhou o processo administrativo aberto sobre o caso na FMUSP, critica a decisão. “O julgador tem livre apreciação sobre o conjunto das provas produzidas em um processo, mas chama a atenção, nesse caso, como o juiz valorou apenas as provas que beneficiavam o réu, ignorando na sua decisão elementos que indicavam a materialidade do estupro”, diz.
Como exemplo, ele cita os laudos psicológicos e psiquiátricos que atestam que a vítima passou por abuso sexual, e um exame médico que comprova escoriações decorrentes de violência. “O mais perverso é o juiz admitir que a palavra da vítima seja fundamental, mas, na prática, ignorar o que ela afirmou consistentemente, como se não estivesse bêbada ou inconsciente o suficiente para ter sofrido uma violência”, destaca. “Mais uma vez, o Judiciário, assim como a Comissão Sindicantes da USP, mostra que a discussão do consentimento, que é chave em casos de estupros entre pessoas conhecidas ou que já tiveram alguma relação prévia, é feita de modo enviesado e sempre privilegiando mais a moralidade sexual da vítima do que a conduta e o histórico do agressor.”
Desvalorização de denúncias
A mesma crítica é feita por Heloísa Buarque de Almeida, professora de Antropologia da USP e especialista em gênero. Ela também lamenta a absolvição: “Uma das grandes questões do judiciário em relação a crimes de violência sexual é o moralismo, ao julgar o comportamento pregresso das vítimas e desvalorizar suas denúncias. Ainda há dificuldade de entender a fronteira entre sexo consentido e violência”, diz ela, que integra a Rede Não Cala – USP, formada por professores para acolher vítimas de violência sexual e de gênero na universidade paulista.
Segundo ela, a Rede Não Cala tem conhecimento de mais seis acusações de estupros de alunas que teriam sido cometidos por Cardoso. Em todos os casos, ele teria dopado as vítimas. “É possível que haja ainda mais, pois muitas vezes as vítimas têm dificuldades de denunciar, por vergonha, medo e culpa”, revela.
Bebida ‘batizada’
A estudante de Enfermagem afirma que o estupro ocorreu no dia 11 de fevereiro de 2012 no dormitório de Cardoso na Casa do Estudante, localizada no bairro de Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo. De acordo com relato que consta do processo, eles se encontraram em uma festa da USP na sede da Atlética de Medicina, no mesmo bairro, onde a jovem ingeriu uma bebida “batizada”, ou seja, contendo alguma droga dopante. Ela afirma que a partir desse momento não tem lembranças precisas dos acontecimentos, apenas pequenos flashes. Quando recobrou a consciência, Cardoso a estuprava e a continuou violando e ameaçando apesar das suas tentativas de se desvencilhar e pedidos para que parasse.
Segundo depoimentos de testemunhas, após saírem da festa, Cardoso e a jovem foram, juntamente com duas amigas, a outra festa no centro da cidade e, após algum tempo, decidiram voltar à Atlética. Antes de chegarem ao local, a estudante e as duas amigas pediram para ir ao banheiro na Casa do Estudante. Enquanto ambas utilizaram os sanitários do edifício, a jovem usou o localizado no dormitório de Cardoso.
Luiza Ribeiro, estudante da FMUSP e integrante do coletivo feminista Geni, que surgiu após denúncias de violência sexual na USP, em 2013, diz que embora esteja muito decepcionada com o judiciário brasileiro, a decisão não a surpreende. “Sabemos que na maioria das vezes a palavra da vítima quase não conta como prova material”. No momento, “minha esperança é que a USP e o Conselho Regional de Medicina de São Paulo barrem a colação de grau e a licença de trabalho dele. Não só por esse caso, mas pelo conjunto de casos dos quais é acusado. Mesmo não sendo punido pelo sistema penal, que não possa exercer a profissão. Essa é minha esperança.”
Duas das estudantes de Medicina da USP que acusam Cardoso de estupro foram arroladas como testemunhas na ação do Ministério Público. Ambas igualmente afirmam ter sido dopadas momentos antes da violência. O estudante também é alvo de outro procedimento investigativo, envolvendo uma das vítimas, que denuncia ter sido drogada e violentada por ele em uma festa da faculdade, como relatou nas sindicâncias da USP e na CPI das violências sexuais que ocorreu na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).
Matou homem com oito tiros
Entre 2004 e 2008, Cardoso foi policial militar. No seu primeiro ano na PM, matou um homem com oito tiros durante uma briga em um bloco de carnaval. Processado pela Justiça comum, foi denunciado por homicídio doloso e condenado por homicídio culposo, após alegação de que teria cometido o crime em legítima defesa. Ao julgar o recurso, em agosto de 2012 o Tribunal de Justiça de São Paulo extinguiu a pena.
A permanência de Cardoso na faculdade e sua colação de grau vem sendo alvo de manifestações de alunos e professores. Cardoso, que pretende se especializar em ginecologia e obstetrícia, concluiu o curso de Medicina em 25 de outubro de 2016. Após a CPI dos Trotes na Alesp, realizada entre novembro de 2014 e março de 2015, por iniciativa do então deputado estadual Adriano Diogo (PT/SP), a faculdade realizou um processo disciplinar que suspendeu o estudante durante um ano e meio. O fim da suspensão foi alvo de protestos.
Em meio às pressões, em novembro de 2016 o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) informou que iria indeferir o registro profissional (CRM) de Cardoso “até ter acesso aos autos de sindicância e processo sob guarda da referida Faculdade”. Em nota enviada à reportagem nesta sexta-feira (10/2), a entidade reafirma seu posicionamento. “Até o momento, o Cremesp não recebeu a documentação solicitada à Faculdade para análise do caso. O pedido será reiterado.”
Em novembro de 2014, a Ponte Jornalismo revelou, por meio de uma série de reportagens, casos de violência sexual, castigos físicos e preconceito na faculdade de medicina mais importante do país.
A Ponte Jornalismo solicitou uma entrevista com o juiz Klaus Marouelli Arroyo, mas a assessoria do TJ-SP informou que, de acordo com a Lei Orgânica da Magistratura, juízes não podem se pronunciar sobre processos. A reportagem também procurou o Ministério Público, autor da ação, mas a assessoria afirmou que, como o processo está em segredo de Justiça, a Promotoria não poderá comentar a decisão.
Questionada sobre a formatura de Cardoso, a Faculdade de Medicina da USP disse aguardar orientação da Reitoria da universidade, que, por sua vez, não deu retorno ao pedido de posicionamento da reportagem.
O advogado do aluno, Daniel Alberto Casagrande, foi procurado para comentar as demais acusações contra seu cliente, mas não havia retornado até a publicação desta matéria.
* Reportagem atualizada às 16h50 de 10/2/2017 para acréscimo do posicionamento do Cremesp
Edição: ---