"A história dos negros na América é a história da América. E não é uma história bonita". Essa é uma das frases que aparecem nos primeiros minutos do documentário ''Eu não sou seu negro”, dirigido pelo haitiano Raoul Peck. O roteiro é construído a partir do livro inédito e inconcluso do escritor estadunidense James Baldwin (1924 – 1987), batizado de Remember This House (1979).
A obra traça a história racial conflituosa em território americano a partir dos assassinatos de três dos principais líderes negros da história: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, todos "mortos com menos de 40 anos" em um intervalo de apenas cinco anos (Evers, em 1963; X, em 1965; King, em 1968).
Além do livro, o diretor Raoul Peck se vale de cartas, trechos gravados de discursos e entrevistas de Baldwin para estruturar o longa-metragem que, por isso, tem seu nome também assinando o roteiro e poderosa narração de suas palavras feita pelo ator Samuel L. Jackon.
São 95 minutos que causam desconforto, dor, empatia pela população negada da América. Aqueles que tornaram possível o "American way of life", sustentado pela mão de obra barata de negros e em solo encharcado com sangue indígena.
O filme traz flashes da história americana, pautada pela escravidão, pelas leis segregacionistas, pela violência policial que dizima ainda hoje muitas vidas, ao passo que apresenta o revide negro, as marchas, os Panteras Negras e o recente movimento do Black Lives Matter.
Todo esse contexto vai traçando a construção da imagem do negro feita a partir do olhar branco e a desvalorização da vida negra. "Antes precisavam da gente para colher algodão, agora que não precisam mais estão nos matando", dispara Baldwin.
A identidade negra e o discurso do "outro"
Na África, eram ketu, fons, ashanti, zulu e tantas outras nações. Depois do translado forçado, todas as pessoas traficadas do continente africano foram batizadas pelos europeus de 'negros'. A classificação, que promove o sequestro da identidade e da humanidade do povo africano, dá licença para que todo tipo de violência seja imposta ao corpo negro.
"O branco é uma metáfora para o poder", diz Baldwin a certa altura. O filme é poderoso justamente por elevar o nível do debate racial, em que os brancos devem tomar a responsabilidade pela sociedade desigual e racista existente até hoje.
O filme resgata o legado de dor e exploração que a comunidade negra é submetida até os dias atuais como fruto e responsabilidade da branquitude e do sistema capitalista. A socióloga inglesa Ruth Frankenberg, em seus estudos, define a branquitude como "um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo, uma posição de poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo”.
O diretor Peck exemplifica essa ótica ao resgatar trechos de filmes clássicos que refletiam como os brancos viam os negros, por vezes dóceis e passivos perante sua condição de escravizados (como em A Cabana do Pai Tomás, de 1927), ou selvagens, predadores, membros de uma cultura inferior (a exemplo de King King, de 1933).
Outro filme citado como emblemático das relações raciais é o Acorrentados, de 1958. Nele, o personagem negro (interpretado por Sidney Poitier) rejeita a possibilidade de liberdade para não abandonar o companheiro branco de fuga. Para Baldwin, o sacrifício negro como desfecho dessa história simboliza a resposta mais confortável para o público branco.
Essa projeção branca sob o corpo negro, como traz a doutora em Psicologia Maria Aparecido Bento, é “nascida do medo, cercada de silêncio, fiel guardião dos privilégios”. O medo e o terror do corpo negro seriam para Baldwin impulsionadores da violência branca.
A certa altura Peck contrapõe imagens de clássicos de Hollywood com imagens de negros enforcados em árvores, negros que sofreram linchamento, jovens apanhando da polícia, pessoas brancas agredindo e cuspindo em pessoas negras. Sobre isso, Baldwin comenta: "Não há como vocês (brancos) fazerem isso com a gente sem se tornarem monstros".
Lutar com palavras
Baldwin apoiava a luta pelos direitos civis americanos, embora não estivesse em pleno acordo nem com o discurso da não violência de Martin Luther King, nem com as ideias mais radicais de Malcolm X. Era um intelectual. Tinha no seu trabalho escrito sua maior plataforma de ativismo.
É o seu discurso certeiro que chama os brancos a se responsabilizarem pelas desigualdades raciais que mantêm seus privilégios, o elemento mais transformador do filme.
A população branca deste país tem que se perguntar por que foi necessário haver 'os negros' no passado. Mas eu não sou um negro, sou um homem. Mas se você pensa que sou um negro, significa que você precisa de um, então precisa se perguntar por quê.
Reafirmação e distribuição
Toda a carga complexa de documentar algo que não é fictício, que existiu de maneira declarada anteriormente mas agora figura como "privilégio velado", fica estampada no filme, que tem fotografia assinada por Henry Adebonojo, Bill Ross e Turner Ross.
A tensão e a emoção dão ritmo à montagem que intercala imagens de filmes e cenas reais que levaram o público da consternação ao choro, mostrando cortes banais de "guetos" de Nova York, a linha metroviária, o fluxo intenso de pessoas, com cenas históricas e icônicas, como o primeiro dia de aula da estudante negra Dorothy Counts, na Universidade de Harry Harding, na Carolina do Norte (EUA), em 1957, sendo insultada a todo instante, e imagens de militantes negros apanhando de pessoas brancas que eram contra o fim da segregação racial.
A resistência do longa vai muito além do seu roteiro e conteúdo. No Brasil, por exemplo, sua veiculação foi aceita em poucas cidades e estados (confira lista). Aparentemente, segundo relato da distribuidora Imovision, o debate racial afastou o interesse de algumas salas.
Na capital paulista, por exemplo, das 282 salas de cinema que a cidade possui (segundo o Monitora SP), apenas quatro serão disponibilizadas para a exibição do filme, além de uma sessão no Cooperifa, na zona Sul.
Oscar 2017
Depois de a premiação do ano passado ser marcada pela ausência de concorrentes negros, neste ano, dos cinco candidatos ao Oscar de documentário, três abordam a temática racial nos EUA. Além de Eu Não Sou Seu Negro, concorrem na categoria o “A 13ª Emenda”, da diretora negra Ava DuVernay, que descreve relações históricas construídas entre a escravidão de negros e o encarceramento em massa; e "O.J.: Made in America", de Ezra Edelman, sobre o julgamento de O.J. Simpson em 1994, quando foi acusado de assassinar sua mulher, Nicole Simpson, e o amigo dela, Ronald Goldman.
Em entrevista recente para o portal G1, quando Peck foi questionado se essas indicações eram um avanço ou uma valorização da contribuição negra para o audiovisual, o diretor afirmou que isso tem pouca importância, já que "não houve nenhuma grande mudança estrutural na forma como Hollywood está fazendo seus filmes".
A fala do diretor denuncia o "privilégio branco'' exercendo seu poder também nas produções cinematográficas. Qualquer mudança, sinaliza Peck, deve ser estrutural, assim, pessoas brancas não devem se sentir atacadas em suas individualidades pelo documentário, mas sim perceberem a estrutura de privilégios presentes na sociedade.
Desse modo, o produção oferece àqueles que "são vistos por todos, mas não se veem", a possibilidade de encarar o que acontece do "outro lado", aquele que não é possível ver do lugar de privilégio dos espaços da branquitude. "Eu não sou seu negro" abre essa janela. Basta saber se as pessoas brancas, como Narciso, irão se reconhecer no espelho triste e fiel das suas ações.
Edição: Camila Rodrigues da Silva