Há duas semanas, indígenas Ava-Guarani ocupam parte de um antigo tekoha – terra indígena tradicional –, localizado às margens do lago de Itaipu, no município de Santa Helena, no Oeste do Paraná. O território é chamado por eles de Tekoha Dois Irmãos e foi uma aldeia até os anos 1980, quando foi alagado pelo represamento do Rio Paraná com construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu Binacional.
São 10 famílias que ocupam perto de 400 hectares de um refúgio biológico da Itaipu, que totaliza cerca 1,4 mil hectares. A retomada deste território é um ato simbólico diante da dívida histórica que a Itaipu Binacional tem com os povos Ava-Guarani. Também simboliza a resistência à atual conjuntura nacional de precarização de políticas indigenistas.
Estima-se que na região de usina existiam ao menos 32 aldeias, conforme estudos da antropóloga Malu Brant. Elas desapareceram entre 1940 e 1982, período entre a criação do Parque Nacional do Iguaçu e o alagamento para formação do lago de Itaipu. Pelo menos nove dessas aldeias foram alagadas com a construção, de acordo com levantamento feito pela estudiosa a pedido da Justiça Federal de Foz do Iguaçu.
Durante a construção de Itaipu, na época da ditadura militar, não havia qualquer diálogo entre a usina e o antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) – hoje Funai – Fundação Nacional do Índio - com as comunidades tradicionais. Essa população foi desconsiderada na época e posteriormente passaram a retomar seus territórios. “O rio Paraná (que divide Brasil e Paraguai) nunca foi fronteira para os Guarani, ao contrário, era nosso caminho”, relata a liderança Julio Martinez.
Pende rekó
Segundo o cacique Claudio Vogado, a ocupação é uma recuperação de um espaço onde viveram seus antepassados. “Nossos parentes moraram nessas terras e devido ao alagamento tiveram que sair. Nossos antepassados já moraram aqui e hoje esse é um dos poucos locais de fauna que sobrou para vivermos no nosso sistema”, comenta.
Para a kuña (senhora) Elza Romero, que nasceu ali, o retorno para sua antiga terra é a concretização de um sonho, de ter uma terra para poder vier o pende rekó, a cultura Guarani, própria e autêntica de seus pais e avós. “Estávamos vivendo num local que era pouca terra pra muita gente, onde nem arvore existia”, afirma Elza, destacando que a terra retomada é o espaço ideal para se transmitir aos seus filhos e netos a cultura que recebeu de seus pais.
A terra ocupada é coberta de mata nativa e própria para a agricultura. Segundo o cacique, em breve será iniciada a limpeza para plantação de sementes tradicionais como o Awati etei (milho verdadeiro).
Desde a entrada na área, os Guarani estão recebendo acompanhamento de entidades como o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) – Regional Sul – e também o apoio de movimentos sociais como o Movimento de Mulheres Camponesas que fez a doação de mantimentos e prestou solidariedade à luta indígena.
As famílias já iniciaram contatos com a Prefeitura de Santa Helena no intuito do auxilio para assistência social e encaminharam uma carta à promotora Daniela Caselani Sitta, do Ministério Público Federal em Foz do Iguaçu.
Resistência
O historiador Paulo Porto, vereador do PCdoB em Cascavel e que acompanha a luta deste povo desde 2000, afirma que as retomadas de antigas terras tradicionais são formas das comunidades resistirem diante da morosidade do governo em dar andamento nas demarcações.
“Estamos tratando da retomada de uma terra que hoje existe somente na memória dos velhos Guarani. É uma retomada de um povo que foi desterrado por uma ação deliberada do Estado, via antigo SPI que fez o papel de ‘limpa-trilho’ para a expansão capitalista no caso do Oeste do Paraná e que posteriormente sofreu grande impacto da construção da usina”, comenta.
Retrocessos
Segundo o professor Clovis Brighenti, membro do Cimi Regional Sul, a atual conjuntura da política indigenista é de retrocessos e ofensiva contra os territórios indígenas, cada vez mais subjugados aos interesses do agronegócio. Esse retrocesso pode ser simbolizado na publicação da Portaria 80/2017 do Governo Federal.
Publicada pelo Ministério da Justiça em janeiro, a portaria criou um GTE – Grupo Técnico Especializado - para analisar os relatórios de identificação e delimitação de terras indígenas produzidos pela Funai. Na prática, segundo Cimi, criou-se uma instância política que servirá para rever relatório já apresentados e retardar ou inviabilizar os procedimentos demarcatórios.
Várias etnias indígenas já se manifestaram diante da publicação e passaram a cobrar do presidente Michel Temer uma resposta, especialmente, sobre as áreas que estão em processo de identificação por Grupos de Trabalho (GTs) e sobre terras com relatórios já publicados que estão com seu processo administrativo emperrado pela negligência da Funai.
Edição: Ednubia Ghisi