Nas últimas semanas, o debate sobre a misoginia no campo da medicina tem sido suscitado. São dois os casos que protagonizam a discussão: a absolvição do estudante da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Daniel Tarciso da Silva Cardoso, acusado de estuprar uma estudante; e as denúncias de comentários e ilustrações machistas no material didático do cursinho de preparação para concursos de residência médica, MedGrupo.
As denúncias ao MedGrupo foram amplamente divulgadas por uma estudante de medicina da Universidade Federal da Bahia que, ao usar o material, se deparou com exemplos de grave exposição misógina do corpo feminino. “Em certo caso, uma mulher era vítima de um relacionamento abusivo e, após traição, decidiu desfrutar da sua liberdade. A cena é retratada com o desenho de uma mulher seminua fantasiada de ‘diabinha‘”, relata a estudante em um trecho do e-mail enviado para a empresa.
Em outro caso, uma paciente portadora de vaginose bacteriana é retratada com o desenho de uma mulher com vários peixes em cima do seu corpo e um homem de nariz tampado devido ao mau cheiro. A última frase do caso relata que um dos testes necessários não foi realizado, porque o médico ficou “tão enjoado” que o diagnóstico era evidente.
Em resposta às reclamações, a empresa alegou que é “contra a agenda do politicamente correto”. E completou: “Sugerimos a todos que não gostam deste estilo que não usem o nosso material”.
Quando procurada pelo Saúde Popular, a equipe do MedGrupo argumentou que não possui quaisquer comentários a fazer e que “o material é usual de trabalho e não tem o objetivo de ‘denegrir‘ ninguém”.
“Aí mora o perigo: a naturalização dessas questões”, analisa a socióloga e professora da Faculdade de Medicina do ABC, Silmara Conchão, frente às respostas da empresa. Em sua visão e na do médico Ricardo Teixeira, professor da FMUSP, casos como esses não devem ser tratados como isolados e fazem parte de uma realidade muito maior da formação médica.
“A gente vive numa sociedade patriarcal, machista e misógina. A faculdade de medicina não é uma ilha, aqui dentro é um espelho do que acontece lá fora”, completa Silmara. Os professores argumentam a necessidade de se debater um cenário mais amplo da formação médica: as hierarquias de poder, o ainda existente trote violento e o lugar do corpo da mulher na prática médica.
“Currículo oculto”
A socióloga explica que debater o machismo na medicina demanda estudar as relações de poder existentes na área. “Há uma hierarquia estabelecida, uma lei social que estabelece uma relação entre os mais fortes e os mais fracos”. Em se tratando das mulheres, seu lugar na hierarquia seria o mais baixo, explica a professora.
Neste sentido, Teixeira complementa que a medicina deve ser vista na perspectiva de um campo “tensionado e cheio de contradições”, e que sua dimensão política não deve ser deixada de lado. “Talvez a primeira coisa a dizer é que a medicina tem uma beleza intrínseca, ligada ao cuidado, à vida. Mas a gente não pode esquecer que ela está no centro de todo um esquema de poder no mundo contemporâneo, atravessado por todos os setores sociais. Não é uma bolha”, diz.
A socióloga aponta que o caso do MedGrupo compactua com práticas do “currículo oculto”, como os trotes na universidade e as opressões, o que desencadeia ações banalizadas que objetificam e desrespeitam a mulher. Exemplo disso é o fato de o Brasil se esmerar em práticas obstétricas violentas contra o corpo da mulher.
“Como o nosso sistema de saúde, tanto público como privado, vai receber pessoas com esse tipo de visão social? É inadmissível, nós não podemos compactuar com isso”, defende a socióloga.
“Denunciar é o primeiro passo”
Na busca de ações contrárias a essas práticas banalizadas, Conchão aponta que, de início, são dois os caminhos necessários: a quebra do silêncio e a estruturação de uma lei rígida para o sexismo. “Quando a gente consegue quebrar o silêncio, designar os focos desse currículo oculto, a gente consegue inverter essa relação de poder. As instituições têm que desenvolver uma verdadeira cruzada contra a naturalização dessas desigualdades”, defende.
Em moldes semelhantes à Lei 7.716, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor no Brasil, ela argumenta a urgência de uma lei que criminalize práticas misóginas e sexistas — como as observadas no material do MedGrupo. A socióloga aponta que a lei trabalharia no sentido de “desnaturalizar a objetificação da mulher na sociedade”.
Os professores também comentam a necessidade do debate sobre direitos humanos permear toda a formação médica — e não estar presente somente em disciplinas transversais e isoladas.
“O médico é preparado para ser alguém com profunda e sólida formação científica. A ideia do melhor médico está muito ligada ao êxito técnico que ele pode obter no exercício dessa profissão”, explica Teixeira. “Acho que isso faz com que o médico não entenda que, antes de um tecnólogo, ele é um cuidador”, completa.
Esperança
Acompanhado do debate, os dois professores apontam uma esperança no mesmo caminho: o aumento da discussão sobre direitos humanos na sociedade. O mesmo que o MedGrupo chama como “agenda do politicamente correto”, os professores caracterizam como uma “luz à formação médica”.
“As meninas já estão chegando aqui empoderadas. O que era tradição, naturalizado, oculto e escondido está sendo hoje revelado com mais ênfase”, diz a socióloga.
Para Teixeira, mudanças têm vindo da sociedade que “começa a colocar em xeque, inclusive, termos e condutas que estão completamente banalizados na medicina”.
Edição: Juliana Gonçalves