DISPUTA

Há um mês, moradores do Morro do Alemão, no Rio, sofrem com violência e tiroteios

Nos últimos 30 dias, foram registrados 28 tiroteios na região, segundo aplicativo Fogo Cruzado, da Anistia Internacional

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Relatos de moradores destacam que as trocas de tiros chegaram a durar até 18 horas seguidas em um dia, no mês de fevereiro
Relatos de moradores destacam que as trocas de tiros chegaram a durar até 18 horas seguidas em um dia, no mês de fevereiro - Vozes das comunidades

Desde o início de fevereiro, os moradores do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, estão sentindo na pele os efeitos do acirramento da disputa entre o tráfico e a polícia. Nos últimos 30 dias, foram registrados 28 tiroteios na região, de acordo com dados obtidos pelo aplicativo Fogo Cruzado, da Anistia Internacional, que reúne registros dos moradores, polícia e da imprensa. Relatos de moradores ainda destacam que as trocas de tiros chegaram a durar até 18 horas seguidas em um dia.

Com isso, a preocupação constante dos moradores gira em torno de ser ferido, morrer, ter a casa invadida ou sofrer uma abordagem violenta. Ficar dentro de casa é a solução encontrada por muitos, mas mesmo esse espaço restrito apresenta riscos, como se aproximar da janela e ser atingido por uma bala perdida. Segundo Camila Aparecida, 32 anos, que mora durante toda a sua vida no Complexo do Alemão, é como estar preso dentro da própria casa.

“Temos que passar a noite no chão da sala para não corrermos risco de sermos atingidos por uma bala perdida enquanto dormimos. Quando atingem o transformador, ficamos sem luz e perdemos a comida da geladeira que compramos com tanto sufoco. As crianças ficam super assustadas, qualquer barulho acham que é tiro e já deitam no chão. Elas não podem sair para brincar. Pior é que não temos para onde ir e mesmo evitando corremos riscos”, explica.

Para Camila, além da ameaça que sofrem todos os dias, os moradores ainda são forçados a mudar a rotina de trabalho, estudo e ficam sem acesso aos serviços básicos. “Quando o tiroteio para um pouco e conseguimos sair, os serviços não funcionam, o banco está fechado, o posto de saúde também, quem é de fora não quer vir trabalhar aqui e correr riscos. Perdi consulta médica que estava marcada há meses, agora vou ter que esperar mais um tempão” acrescenta.

Sem aula nas escolas

Entre todos esses  problemas, Camila acredita que o pior é as crianças não poderem ir para a escola. A sequência de tiroteios começou no primeiro dia de retorno das férias escolares, em 2 de fevereiro. Desde então, aproximadamente 4 mil crianças deixaram de frequentar as aulas pois três creches, sete escolas e seis Espaços de Desenvolvimento Infantil (EDIs) suspenderam o funcionamento.

De acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Educação, Esportes e Lazer do Rio de Janeiro, a direção dos colégios tem autonomia para decidir se mantém as aulas ou não durante os episódios de tiroteio. A assessoria explica que apenas parte das escolas adiaram as aulas no último mês porque a decisão depende da localização da unidade educacional.

Ainda de acordo com a assessoria, a secretaria criou um Grupo de Trabalho (GT) para elaborar um plano de trabalho específico para tentar reduzir o impacto da violência nas escolas localizadas em áreas de conflito. Na primeira reunião do GT, o prefeito Marcelo Crivella sugeriu como possível solução revestir as escolas com argamassa resistente a projéteis.

O GT também terá que dar conta da tarefa de estabelecer alguns critérios e regras de convivência para as escolas situadas nas áreas em conflito, a exemplo de quando fechar ou manter as unidades em funcionamento. Após o recesso de carnaval, que aconteceu na última semana, entre os dias 24 de fevereiro e 6 de março, a secretaria estima que todos os colégios retornem à normalidade nesta segunda-feira (6).

“Mas não tem como voltar se não pararem o tiroteio. Geralmente, começa na hora de ir para a escola, umas 6 da manhã. Não tem como sair de casa embaixo de tiro. Nenhuma mãe faz isso. Sou desempregada, mas trabalho fazendo bico e também não tenho como trabalhar porque preciso ficar com as crianças. Além de não terem educação de qualidade na escola, eles nem conseguem frequentar às aulas”, explica Camila.

Complexo do Alemão sofre maiores impactos

O relatório de 7 e 13 de fevereiro do aplicativo Fogo Cruzado aponta que a pior semana do mês para o conjunto de favelas do Alemão, que ficou em primeiro no ranking de notificações, com 11 tiroteios e uma vítima fatal notificados em seis dias. No entanto, a localidade não é a única que tem registrado altos índices de violência. Os dados do Fogo Cruzado mostram que houve 74 notificações, com 29 vítimas fatais — quase cinco por dia — e 35 feridos na mesma semana, somando as notificações de várias localidades da cidade e região metropolitana. Além do Alemão, os principais registros feitos em fevereiro são do conjunto de favelas da Maré, Acari, Duque de Caxias e Belford Roxo.

Para o antropólogo Lenin Pires, coordenador do curso de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), o Morro do Alemão está em lugar de destaque porque é um dos principais territórios em disputa. “O Alemão é um ponto estratégico para o tráfico na cidade porque dá acesso à zona norte e à zona oeste. Agora que o Primeiro Comando da Capital (PCC) declarou guerra ao Comando Vermelho (CV) a pressão pela retomada de pontos estratégicos é grande. Aliado à esse movimento, estamos vivendo a falência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)”, explica.

Segundo Lênin, o Alemão é um símbolo de disputa porque foi o primeiro a ter a UPP implantada e também está sendo o primeiro palco de retomada de território pelo tráfico. Mas não pode ser considerado a marca da falência das UPPs, para ele, essa política já está falida há tempos.

“A UPP sempre foi controvérsa e não conseguiu unir nem mesmo a polícia militar, principalmente porque houve uma mudança na hierarquia que muitos não aceitaram. A população em um primeiro momento apoiou, mas depois viu que não houve mudanças na maneira como era tratada pela polícia. Continuaram a serem tratados com violência e de forma excludente, que eu chamo de ‘esculacho’”, explica.

Somado a tudo isso, Lênin explica que a crise econômica e política no estado do Rio de Janeiro atingiu em cheio às UPPs. “Não tem mais apoio logístico e material que tinha, a grana não está mais disponível como antes para dar suporte a essa política. Não temos a menor ideia de onde isso tudo vai parar”.

Camila, concorda com o pesquisador e acredita que a UPP tem que ser revista.”É uma estratégia que não deu certo. Nós que não temos nada a ver com a guerra, estamos sendo os mais prejudicados. Sou nascida e criada no Alemão e garanto que vejo mais tiro depois da ‘pacificação’ do que antes. Muita gente está morrendo por essa paz que não estamos vendo”, conclui.

Edição: Vivian Virissimo