A avó de Felipe Galucio Chaves, Maria Auxiliadora Galucio Neves, mostra o antigo quarto do neto. Ao lado, ela aponta um outro cômodo, ainda faltando reboco: a sala de estudos do menino, que queria ser policial. Maria Auxiliadora criou o neto desde pequeno e o tinha como filho. Felipe Galucio tinha 16 anos quando foi assassinato no dia 4 de novembro de 2014, na chacina de Belém.
Ele e mais dez jovens foram mortos, mas apenas duas vítimas tiveram os inquéritos concluídos e os acusados pelo crime indiciados. É o caso do filho de Neves e de Nadson Roberto da Costa, de 18 anos, morto no dia 5 de novembro. Os demais inquéritos policiais foram arquivados com autoria indefinida.
No dia 21 será levado à júri popular Otacílio José Queiroz Gonçalves, cabo reformado da Polícia Militar (PM), também conhecido como Cilinho, acusado de ser o autor da morte do filho de Neves. Na quarta-feira, dia 23, será o julgamento de José Augusto da Silva Costa, o Zé da Moto, réu pela morte de Nadson Costa. Ambos são citados no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de Grupos de Extermínio e Milícias no Estado do Pará.
A série de assassinatos de novembro de 2014 ocorreu após a morte do Cabo Antônio Marcos da Silva Figueiredo (Cabo Pety). Em janeiro de 2017, outra onda de homicídios rondou a capital paraense. Depois que o policial Rafael da Silva foi morto, durante uma operação militar no dia 20, 35 pessoas foram mortas, 25 delas com características de execução confirmadas pela Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Segup). Nos dois episódios ambos os policias pertenciam a Ronda Ostensiva Tática Metropolitana da Polícia Militar (Rotam).
Lembranças
Neves mora no bairro da Terra Firme há quase 50 anos. A casa ainda em construção é levantada aos poucos. Na rua asfaltada, ainda escorre o esgoto a céu aberto, cena comum em grande parte das casas dos bairros pobres da capital paraense. Neste período de inverno amazônico a situação se agrava, a água da chuva se mistura com a do esgoto e a rua vira um lago de água suja.
A senhora de 60 anos narra os momentos com o filho e por alguns minutos passeia pelas boas lembranças que teve como a hora do lanche da tarde. “Essa hora [15h] eu fazia a merenda dele, ele ia comprar o pão, podia ter outra coisa, mas o café tinha que ter”. Orgulhosa, mostra o certificado do curso de informática que concluiu e conta o quanto professores da escola gostavam dele. O passeio acaba e Neves retorna à sala da casa e emocionada lembra da rotina dos dois.
“Eu trabalhava aqui na frente. Você viu que está um pouco abandonado? Porque eu vendia churrasco com o meu filho aqui, ele vinha do colégio Celso Malcher. Ele saia daqui 19 horas, colocava a mesa, cortava os limões, arrumava tudinho, deixava e ia para aula, quando voltava, ele tirava comigo e eu não tenho mais vontade de fazer isso”, diz Neves.
O adolescente foi assassinado no canto da rua onde morava, ao dobrar a esquina. Ele e a namorada estavam em uma bicicleta quando foram abordados por homens com motos. A avó lembra que nesse dia, pediu que ele não demorasse. Após alguns minutos, Neves conta que ouviu uma gritaria, sentiu que algo havia acontecido com o filho. Desceu a escada, procurava a chave, estava em seu bolso, mas nervosa não encontrava. Quando conseguiu abrir a porta e chegou na esquina da rua, desmaiou.
Foi o esposo, Afonso Neves, quem trouxe o filho nos braços. Nesse momento ela, emocionada, lembra, após se recuperar do desmaio, que as pessoas tiravam fotos e filmavam a cena.
“O pai dele chegou, carregou ele no braço, foi uma cena muito triste, o pessoal batendo foto, parecia assim, que estavam se divertindo vendo aquela cena, batendo foto dele. O pai gritava: 'levaram o meu filho'. Ele gritava com ele no braço, e o pessoal batendo foto e filmando aquilo”, recorda Neves em lágrimas.
Violações
Além de justiça, Neves também quer defender o nome do filho. A defesa a que ela se refere é que, à época das onze mortes dos jovens, programas de televisão de Belém criminalizaram as vítimas. “Os próprios repórteres, muitas vezes, falavam na televisão que eles eram bandidos, diziam que ‘bandido bom é bandido morto, e isso machucou muito”, desabafa.
A Andi, organização da sociedade civil, produziu uma publicação sobre "Violações de Direitos na Mídia Brasileira III" e analisou 28 programas que narravam ocorrências sobre violência e criminalidade, sendo 19 narrativas de TV e nove de rádio, de dez capitais brasileiras (Belém, Belo Horizonte, Brasília, Campo Grande, Curitiba, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo).
A pesquisa apontou que, em apenas 30 dias de análises de programas ‘policialescos’ de rádio e TV, as emissoras “promoveram 4.500 violações de direitos, cometeram 15.761 infrações às leis brasileiras e multilaterais e desrespeitaram 1.962 vezes normas autorregulatórias”.
Entre as violações estão: exposição indevida de pessoa (s); desrespeito à presunção de inocência; violação do direito ao silêncio; exposição indevida de família (s); incitação ao crime e à violência; discurso de ódio ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional, entre outras.
Em Belém, somente os programas de televisão "Metendo Bronca" e rádio, "Patrulha da Cidade", cometeram 483 violações de direitos previstos na constituição e código de ética do jornalismo, segundo o relatório da Andi. O documento informa que “todas as categorias de violações foram construídas a partir de direitos protegidos em leis (nacionais e multilaterais), bem como de recomendações inseridas em instrumentos de autorregulação (códigos de ética, etc.) ”.
Poder Político
Paulo Fonteles Filho, membro do Instituto Paulo Fonteles de Direitos Humanos, fala que é necessário dialogar com a sociedade, com o intuito de promover uma mudança na consciência social, sobre os discursos propagados pela mídia em torno de opiniões como: “bandido bom é bandido morto”. E afirma que por trás desse discurso existe a criminalização das vítimas.
Ele afirma que a atuação desses grupos de milícia caracteriza “a ausência do Estado” e o descompromisso com que o governo trata as políticas públicas voltadas para a juventude. Fonteles considera que esses grupos “atuam com o apoio de coronéis, de gente que está à frente da hierarquia de comando”.
O relatório da CPI das Milícias apontou que o réu Gonçalves teria ambições eleitorais. Ele e o Cabo Pety atuavam no bairro do Guamá, com forte poder de intimidação e terror, e não deixa dúvidas sobre a participação de ambos dentro da milícia.
“Sem dúvida, Pety e Cilinho estavam num nível intermediário de ascensão dentro da milícia do Guamá, ainda fazendo planos para iniciarem carreiras políticas legitimadoras e proporcionadoras de status social que blindassem suas operações criminosas e informais”.
Os dois julgamentos estão marcados para iniciar às 8hs e ocorrerá no Fórum Criminal, localizado no bairro da Cidade Velha, Rua Dona Tomázia Perdigão.
Edição: José Eduardo Bernades