No início do mês de março, uma criança de 11 anos, grávida em decorrência de um estupro, teve o procedimento de aborto negado pelo Serviço de Atenção às Mulheres Vítimas de Violência Sexual, no estado do Piauí. O caso da menina que foi estuprada consecutivamente pelo padrasto desde os oito anos de idade revela o difícil acesso ao aborto legal no Brasil. A vítima, que é maranhense, está na 25ª semana de gestação e, segundo o protocolo do Ministério da Saúde, a interrupção pode ser feita até 22 semanas. Estar grávida de mais de 22 semanas seria um dos principais motivos da não aprovação de pedidos de aborto legal no país, o que exclui de 25% a 30% das mulheres que tentam acessar esse direito.
De acordo com a legislação brasileira, os abortos somente são permitidos em três casos: quando a gravidez é resultado de violência sexual; quando a mãe está correndo risco de morte; ou em casos de fetos comprovadamente anencéfalos, este último incorporado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012. Fora essas situações, o aborto é considerado crime, sujeito à pena de até três anos de prisão.
Segundo dados do Ministério da Saúde (MS), entre 2010 e 2016, foram realizados quase 9.500 abortos legais no Brasil, ao custo de R$ 1,99 milhão. Lançada neste mês de março, a pesquisa “Serviços de Aborto Legal no Brasil — um estudo nacional”, financiada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e realizada pelo Instituto de Bioética – Anis com dados coletados entre julho de 2013 a março de 2015, mostrou que dos 68 locais avaliados como “habilitados” no atendimento às mulheres vítimas de violência sexual pelo MS, apenas 37 informou realizar de fato a interrupção da gravidez. A pesquisa revelou ainda que a esmagadora maioria das gestações interrompidas são resultados de estupros (94%).
A lei que permite interromper a gestação nesses casos é de 1940 (artigo 128 do Código Penal), no entanto, os serviços oferecidos pelo Estado que garantam a decisão e segurança dessas mulheres não eram regularizados até 1989, quando foi criado o primeiro serviço de atendimento à mulher no Hospital Municipal Artur Ribeiro de Saboya, o Hospital do Jabaquara, em São Paulo (SP). Mas foi somente em 1999, com o lançamento da Norma Técnica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que se criou uma diretriz nacional nos serviços.
Sancionada em agosto de 2013 pela presidenta afastada Dilma Rousseff, junto com o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, a Lei 12.845/2013 obriga atendimento integral no Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência sexual, inclusive com o fornecimento da pílula do dia seguinte. Mas todo hospital público, ou até mesmo um pronto-socorro, tem a obrigação de oferecer o acolhimento e encaminhamento para algum hospital-referência.
Via crucis
Ainda assim, segundo Eleonora Menicucci, socióloga e ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo Dilma por quase seis anos, a via crucis à qual são submetidas desencoraja e humilha as mulheres que buscam no SUS o acolhimento e acompanhamento do abortamento. São empecilhos morais, geográficos ou institucionais enfrentados ao longo do caminho.
Dos 37 locais que afirmaram realizar a interrupção da gravidez, cinco estão na região norte, 11 no Nordeste, três no Centro-Oeste , seis no Sul e 12 no Sudeste. Sete estados não possuem nenhum serviço voltado ao atendimento específico de mulheres que precisam recorrer ao aborto legal (AM, RR, TO, RN, AL, MT e PR).
Para a psicóloga Vanessa Dios, diretora executiva do Anis, as barreiras iniciais são de acesso à informação. “Você entra no site do Ministério da Saúde e não sabe quais são os serviços e onde estão. Então, se uma mulher sofre um estupro e engravida, até ela achar um serviço vai demorar, no mínimo, umas duas semanas. A segunda é geográfica, pois são 37 serviços no Brasil inteiro e eles se localizam principalmente nas capitais. A mulher do interior vai ter que viajar, às vezes, mais de seis horas para chegar”.
Após superar estes obstáculos, supondo que a mulher tenha encontrado um serviço, é onde ela terá que enfrentar o terceiro e talvez pior obstáculo. “O tempo corre contra ela. A interrupção é feita até a 22ª semana. E mesmo que seja um serviço especializado de aborto legal, ela ainda vai ser periciada, momento em que são criadas outras tantas barreiras. Muitas vezes ela pode ter esse direito negado porque muitas dessas provas exigidas não foram respondidas de acordo com o que os serviços esperavam. Tudo isso pode ter acontecido com a menina de 11 anos. A gente tem uma boa legislação e uma norma técnica do Ministério de Saúde fantástica, mas existem inúmeros impedimentos”.
Vanessa conta que a norma técnica diz que basta a mulher dizer que sofreu o estupro e tem o desejo de interromper a gravidez para ser atendida, porém as mulheres são recebidas com suspeita e, com isso, a equipe de saúde passa a assumir um papel de investigação, e não de acolhimento.
Na opinião de Eleonora Menicucci, “o estupro ainda é visto como culpa da mulher; os profissionais de saúde ainda recebem pouca formação sobre isso”. Ela ainda alerta para o fato de os médicos ainda atrelarem o atendimento e acesso ao aborto legal ao B.O. “A palavra da mulher deve valer, mas a maioria dos médicos orienta a fazer o B.O. e voltar, e a maioria não volta. Acabam procurando métodos proibidos, perigosos e morrem”, afirma.
Apesar de a diretriz nacional dispensar a apresentação do documento, há indícios de que grande parte dos médicos ainda o solicita. Um levantamento entre ginecologistas e obstetras de todo o país, em 2012, revelou que 81,6% dos profissionais pediam o boletim ou laudo do Instituto Médico Legal (IML). Segundo a pesquisa realizada pelo Instituto Anis, 14% dos 37 serviços em atividade ainda condicionam o atendimento à apresentação do B.O.
Sobre a formação médica, Isadora Penna, advogada trabalhista e fundadora do coletivo feminista Yabá, concorda com Menicucci. “A gente tem uma categoria profissional que não tem preparo técnico para realização do procedimento de interrupção da gravidez indesejada nem mesmo nos casos previstos legalmente”.
A objeção de consciência, em que o profissional se recusa a atender, orientado por princípios religiosos, éticos ou morais, é prevista em lei e deve ser respeitada, segundo Menicucci, “mas nestes casos é preciso imediatamente colocar outro profissional que a atenda”.
O médico obstetra Olímpio Moraes, diretor do primeiro serviço médico a realizar abortos legais nas regiões Norte-Nordeste, o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em Recife, diz que os dados do Ministério da Saúde mostram um número de aborto previsto por lei muito pequeno, levando a crer que muitas mulheres deixam de ser atendidas. “Sinto falta de incentivo para que novos serviços sejam abertos e os antigos não fechem as portas. Sem dúvida que a crise sem precedente que estamos passando na assistência obstétrica no Brasil tem contribuído para um ambiente propício para aumento de objeção de consciência por conveniência”, revela. Segundo ele, antes de 2010 o Ministério da Saúde patrocinava cursos e congressos para capacitação de médicos no atendimento ao aborto previsto em lei, “o que infelizmente não acontece mais”.
Para o obstetra pernambucano, uma das maiores dificuldades é que há um “aumento de forças políticas religiosas que trabalham diuturnamente contra os direitos reprodutivos e um Executivo que cede a esses interesses políticos”.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), inclusive, já se posicionou a favor da reforma do Código Penal, em 2012, defendendo que seja descriminalizado o aborto em dois casos: em gestações de até 12 semanas e em casos de malformações fetais incompatíveis com a vida.
Cultura
A despeito de o estupro ser considerado um crime hediondo e ser, segundo Menicucci, “uma das coisas mais inomináveis que tem na esfera da violência contra as mulheres”, para a ex-ministra, o governo não eleito de Michel Temer não vem tratando o assunto com prioridade.
A socióloga vê projetos que ganharam vida durante os governos Dilma serem completamente abandonados. “Este governo ilegítimo e golpista abandonou as Casas da Mulher Brasileira, as que eu inaugurei e as que estavam para inaugurar. A de São Paulo, por exemplo, está pronta, mas fechada, um elefante branco. Enquanto isso, as mulheres morrem. E nesta perda de direitos são as mulheres mais pobres e a mulheres negras que sofrem o maior o impacto”, lamenta.
Para ela, todo este cenário tem por trás um fundamentalismo terrível que assola o Congresso Nacional, as assembléias legislativas e câmaras municipais. “Um patriarcado, uma cultura do medo muito grande que ainda coloca a mulher como segunda categoria. A discriminação ainda é muito grande. Precisamos falar de interrupção da gravidez”, defende.
Com relação aos programas voltados à área de saúde da mulher nos governos petistas, Isadora tem uma posição diferente. “Minha opinião é que os governos petistas não avançaram. Claramente foi uma das questões, além da indígena, dos LGBTs, da negritude, que passaram bem longe de serem prioridades destes governos. As sinalizações que foram feitas nos governos foram conservadoras, no sentido de manter a legislação e não de criar e ampliar as políticas públicas que efetivem o acesso das mulheres aos procedimentos”, analisa.
Para ela, mesmo nos casos previstos por lei, as mulheres, por tantas dificuldades enfrentadas, acabam procurando os serviços clandestinos. “É muito difícil falar de dados por ser um tema tão abafado pelos setores conservadores. Não tem qualquer tipo de preocupação em mapear estes dados, em saber quantas mulheres buscam o serviço público. O que a gente sabe com certeza é que uma entre cinco mulheres já realizou o aborto. Isso é uma realidade. Agora, a dificuldade de acesso a informações, inclusive para qualificar o debate, é muito ruim”, afirma.
A pesquisa citada mostrou ainda que, entre 2013 e 2015, um total de 5.075 mulheres foram à rede pública em várias partes do País para realizar o procedimento, mas apenas 2.442 tiveram êxito.
Edição: Juliana Gonçalves
Edição: Juliana Gonçalves