No início de março, o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão (PMDB) sancionou a lei aprovada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) que permite a venda da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). A medida foi aprovada mesmo após inúmeras manifestações contrárias. No entanto, militantes e movimentos populares estão se reorganizando para evitar a privatização seja concluída. Nos anos 2000, uma massiva mobilização popular conseguiu expulsar uma transnacional que geria o sistema de água e esgoto de Cochabamba, região central da Bolívia. Para compartilhar a experiência da Guerra da Água, o sindicalista boliviano Oscar Olivera esteve no Rio de Janeiro à convite do mandato do vereador Renato Cinco (Psol). Em entrevista ao Brasil de Fato, Oscar falou sobre o processo de mercantilização da água e as semelhanças entre as privatizações da Bolívia e do Brasil.
Brasil de Fato: Na sua avaliação, como se tornou natural ter que pagar pela água?
Oscar Olivera: Eu acredito que é uma visão urbana que traz a mercantilização da água. Nas áreas rurais a água é considerada como bem comum. Na Bolívia, em particular, não se paga pelo serviço da água nas áreas rurais. Lá há uma relação de reciprocidade do homem e o meio ambiente, preservando a água. Assim, não existe o dinheiro como forma de intercâmbio para o seu consumo. Nas zonas urbanas sim, porque que o capitalismo alcançou esses espaços com muita força, não só nos negócios, mas também nas relações sociais. Acredito que é parte de uma ideologia capitalista que incorpora o dinheiro não somente como geração de lucro mas também para romper com um hábito espiritual, moral e de sentimento da convivência social entre as pessoas.
E como se dá esse processo?
As pessoas são vistas pelo que tem não pelo que são. É antes de tudo a imposição de uma ideologia. E essa ideologia, como todas as outras, tem uma estrutura que vê o dinheiro como o controlador das coisas, como a única forma para viver melhor, como troca também nas relações sociais. Isso opõe a toda a natureza humana, baseada em valores tão profundos que estão se perdendo, como a reciprocidade, a solidariedade, a transparência. Estamos vivendo uma grande luta ideológica e se não vencermos estaremos acompanhando um processo de fortalecimento ainda maior do capitalismo. Por isso a água pode ser considerada como ouro nesse ciclo, porque o capitalismo transformou a água em uma forma de poder. Todos os conflitos de água no mundo tem essa característica. Quem controla a água domina e manipula os povos.
Como avalia o avanço das privatizações no Brasil?
Hoje estamos assistindo um processo em que é preciso barrar as privatizações e trabalhar para construção política. Uma barreira contra o individualismo, o neoliberalismo e a morte. É momento de devolver às palavras seu verdadeiro sentido. Antes se falava abertamente em privatização, mas quando os neoliberais viram que era uma palavra muito forte, eles trocaram por concessão. É uma forma sutil de privatização. Quando o povo recupera o verdadeiro conteúdo das palavras, ganha força porque meias palavras impedem a mobilização. A privatização, da perspectiva dos que sofrem com ela, significa expropriação. Não somente das riquezas naturais, mas do patrimônio coletivo, que são as empresas públicas, construídas com esforço de gerações e gerações. Toda privatização significa expropriação de algo que tem a ver com a construção coletiva. Nesse sentido, temos que retomar também o sentido da democracia, que é o mesmo que depositar um voto, de quatro em quatro anos, para que não mude nada? Ou significa dar voz a quem vai, de fato, nos representar? A democracia representativa já não funciona do jeito que está, é preciso recuperar não só a palavra mas a ação democrática.
Qual a aproximação com o que aconteceu na Bolívia e o que está acontecendo no Brasil?
Os processos de privatização são similares em todos as partes do mundo. Acredito que o que aconteceu em Cochabamba, está acontecendo aqui no Brasil, com maior dureza, porque faz 17 anos da privatização em Cochabamba e o neoliberalismo aprendeu e estabeleceu táticas mais cruéis contra o povo. Portanto, o processo de expropriação é mais duro e por isso a resposta da população tem que ser mais forte, mais organizada, mais digna. Porém, as pessoas não têm a possibilidade de enfrentar e resistir sozinhas.
De que forma deve se formar essa resistência?
Hoje, acredito que o Rio de Janeiro e o Brasil, precisa do apoio de outros povos. Em Cochabamba não houve, porque não havia a internet como existe, o Whatsapp, o Facebook, tantos elementos que possibilitam uma comunicação imediata. Porém, essas coisas mudaram e o Brasil terá que resistir acompanhado. A privatização significa corrupção, um desconhecimento do que estão negociando. A privatização ignora a existência das pessoas, do território, onde vivem humanos e também os animais, as plantas, toda uma biodiversidade. A privatização da Cedae afetará 7 a 10 milhões de pessoas, em Cochabamba afetou um pouco mais de 1 milhão, as dimensões são diferentes, mas as ações vão ser as mesmas. Os processos de privatização são iniciados pelos mesmos em todas as partes do mundo: as mesmas transnacionais, os mesmos bancos, os mesmos governos cúmplices das privatizações, a mesma polícia que reprime a população e também, por outro lado, as pessoas que se organizam e estão dispostas a resistir. Essa luta brasileira, em toda a América Latina, consideramos como uma luta nossa.
Acredita que as pessoas aqui estão aceitando a privatização passivamente? O que falta para uma grande mobilização?
Minha presença aqui é justamente para compartilhar experiências e ideais que vivi na Bolívia e acompanhei em outras partes do mundo. Também é importante compartilhar as preocupações e os fracassos que tivemos. De todo modo, vim aqui para ajudar a levantar o ânimo das pessoas. Os processos de privatização acontecem em muitas partes do mundo, se convertendo em um confronto direto entre os povos e os grandes poderes políticos e econômicos ou se tornam processos de negociação dentro de um barco institucional. Em 2004, por exemplo, no Uruguai quando o povo obrigou o governo estatal a colocar uma cláusula que coloca um ponto final na disputa pela água. Já na Bolívia se instaurou uma guerra, com mortos e feridos, que ninguém queria. Cada povo tem sua característica, somos diferentes.
Qual principal ensinamento que você deixa aos brasileiros?
Uma das coisas mais importantes que os brasileiros podem fazer é difundir informação. Um povo desinformado é um povo derrotado. Aqui os jornalistas têm o papel importante. Eu não acredito em uma imprensa independente e, sim, comprometida com a resistência dos povos. Informação é uma arma importante na organização das pessoas. Formas organizativas que permitem uma verdadeira participação das pessoas, sem hierarquias, sem autoritarismos, organizações horizontais, como as que aconteceram na Bolívia, Equador, Argentina, nos Estados Unidos, com o Ocuppy, na Espanha, com os Indignados, na Grécia, Itália. Vários povos que se uniram para enfrentar os poderes e derrotá-los. A organização e mobilização das pessoas é importante para que os poderosos vejam que existimos, porque se não nos tratam como invisíveis e, assim, podem dar prosseguimento a suas políticas de expropriação e de crime.
Edição: Vivian Virissimo