Em um continente latino-americano mutante, o segundo turno das eleições no Equador, que serão realizadas no próximo domingo (2), será um guia. Embora o tema internacional esteja praticamente ausente na campanha, os resultados vão definir tendências e fortalecer alianças continentais.
Se Lenin Moreno, do partido Aliança País ganhar, será fortalecido o projeto de integração regional. Se o ungido presidente for o banqueiro Guillermo Lasso, candidato da aliança de oposição CREO - SUMA, o país sul-americano fortalecerá o pólo continental pró-neoliberal, alinhado com Michel Temer, no Brasil, e por Mauricio Macri, na Argentina.
No primeiro turno, em 19 de fevereiro, Moreno não atingiu os 40% por alguns décimos, mesmo tendo um milhão de votos a mais do que Lasso. Esse índice teria aberto a porta imperial para continuar a linha impulsionada nos últimos dez anos por Rafael Correa na presidência.
Conquistas
Os resultados do próximo domingo poderão ser entendidos como um plebiscito - positivo ou negativo - sobre o progresso promovido por o Rafael Correa e seu projeto "Revolução Cidadã".
Em particular na questão social e no desenvolvimento de obras públicas, estradas, pontes, aeroportos etc. Em um país de quase 14 milhões de habitantes, a pobreza foi reduzida em 6%** e cerca de 2 milhões de seus compatriotas saíram da pobreza extrema. Avanços significativos foram dados na área da saúde pública e 1,2 milhão de novos alunos foram contabilizados.
Em síntese, "realizações reais, mas limitadas em seu conteúdo. Não considerou adequadamente muitos aspectos, tais como o ritmo da mudança cultural, a erosão da soberania alimentar e os custos ambientais", aponta o religioso e sociólogo belga François Houtart, que há seis anos que vive em Quito e trabalha como professor universitário e assessor de movimentos sociais.
Apesar de sua amizade com o presidente Correa, Houtart não mede suas críticas ao modelo atual. “Estes números indicam progresso quantitativo na perspectiva de modernização da sociedade, mas sem transformá-la a fundo", diz Houtart em entrevista por telefone.
Houve, por exemplo, uma total ausência de políticas agrárias: "não houve nem reforma agrária, nem políticas camponesas", enfatiza o fundador do Centro Tricontinental (CETRI) em Lovaina, referindo-se a um estudo de 2013 que indicava uma pobreza de 44% em áreas rurais e 19,5% de extrema pobreza. O atual governo promoveu, ao invés disso, uma agricultura moderna de monocultura de exportação que destrói florestas e expulsa camponeses de suas terras. Em suma, "não houve, nestes anos, um projeto de transformação fundamental da sociedade, mas uma modernização do capitalismo". Se no início você poderia pensar que se tratava de um socialismo do século 21, uma "restauração conservadora" foi gradualmente introduzida no próprio projeto. A crise causada pela queda dos preços das matérias-primas acelerou a regressão, favorecendo os interesses do mercado.
Desilusão e "alinhamento político"
Uma parte dos movimentos sociais - incluindo organizações indígenas e forças de esquerda que originalmente apoiaram o processo - "sente-se profundamente decepcionada”, diz.
Quando o governo viu que esses movimentos lhe deram as costas, decidiu criar novas organizações sociais que respondessem ao seu projeto. Assim ocorreu uma divisão política e social muito profunda, que continua definindo a realidade social do país e que tem uma influência sobre o comportamento eleitoral de algumas pessoas, diz Houtart.
Alguns desses setores "agora preferem dar o seu voto a Lasso e não a Moreno. Optam por apoiar um representante do grande capital financeiro, argumentando que em todo caso a situação não mudaria muito".
Ao mesmo tempo, reflete, Lasso promove um discurso inteligente. Prometeu a anistia para alguns presos líderes sociais detidos; a abandonar julgamentos abertos contra líderes indígenas. Ele se prometeu a não autorizar atividades de mineração sem consulta prévia com os povos indígenas, tal como consagrado na Constituição, mas nem sempre respeitado.
Ocorre uma verdadeira "alienação política real desses setores sociais e indígenas que vão votar contra seus próprios interesses mais por argumentos afetivos do que racionais”, enfatiza Houtart. Alguns pensam que será mais fácil para eles lutar contra a verdadeira direita, do que contra a direita maquiada de esquerda. Subjetivamente, são setores que sofreram e vivem uma grande decepção com o modelo de Correa, o que define uma situação muito complexa, às vezes inexplicável e de difícil recuperação ou reconstrução, sintetiza Houtart com algum ceticismo sobre o futuro.
E se distancia um pouco desses argumentos. "Eu não concordo que Correa está implantando o neoliberalismo". Para ele, seu projeto é, como ocorre em outros países da região, pós-neoliberal mas não pós-capitalista. Um capitalismo moderno que agrega também como importante a luta contra a pobreza, mas que aumenta os níveis da dívida externa a níveis semelhantes aos de 2007, quando ele veio para o governo.
Crises conceituais
Ao longo do tempo, Correa deu prioridade a seu papel como líder carismático. Ele tentou instrumentalizar os movimentos sociais ou criou outros paralelos, estimulado a comunicação intensiva de cima e até mesmo criminalizando parte do protesto social.
Tudo isso, mantendo o seu discurso progressista original, o que complica muitas vezes a compreensão do que se debate no segundo turno eleitoral. É apresentado, argumenta Houtart, como uma luta entre a esquerda e a direita tradicional, quando na verdade é uma batalha entre a direita oligárquica tradicional, apoiada pelo império - expressada no candidato Guillermo Lasso, que busca desesperadamente recuperar o poder político -, e uma direita moderna em aliança com atores da esquerda, principalmente dos movimentos sociais dos anos 1970.
Em paralelo, os movimentos sociais tradicionais enfrentam uma crise profunda como em outras regiões do mundo. Eles perderam a visão estratégica de uma transformação profunda da sociedade e entraram plenamente no jogo político eleitoral de curto prazo, conclui.
** Nota da tradução: conforme dados da CEPAL (Anuário Estatístico 2007 e 2016) a pobreza no Equador diminuiu de 43,0% em 2006 para 29,8% em 2014. E a pobreza extrema de 16% para 10,1%.
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Tradução: Pilar Troya
Edição: Vanessa Martina Silva