Há um discurso uníssono, oficial, no país: sem a reforma da Previdência Pública proposta pelo governo Temer, o país periga quebrar, ameaçando outros direitos sociais. A Previdência Social, como está, seria insustentável, garantem a grande mídia e o governo. A solução seria uma reforma que penaliza profundamente o povo e os trabalhadores. A reforma da Previdência, a reforma trabalhista recém-aprovada, a diminuição dos gastos sociais com saúde e educação, a entrega das riquezas nacionais, a volta do país a uma posição internacional subordinada, tudo isso faz parte de um objetivo: que o Estado beneficie uns poucos poderosos, pouco importando a imensa maioria da população.
Objetivo de um governo ilegítimo e, literalmente, reacionário - pois o espírito que o anima, que congrega todos que o apoiam, é a reação aos ganhos sociais que, mesmo insuficientes, caracterizaram a história recente brasileira. Chancelando esse programa, o discurso que garante: “o Estado está falido, gastou demais, de forma irresponsável e paternalista, com políticas públicas desarrazoadas, com direitos sociais excessivos. O jeito, agora, é fazer sacrifícios em prol da retomada do desenvolvimento, do emprego e da renda no futuro”. Sacrifícios sempre maiores para os mais pobres e futuro incerto, sempre postergado.
Mas há, realmente, desequilíbrio nas contas públicas? Se há, qual sua verdadeira origem? Maria Lucia Fattorelli responde que há, sim, desequilíbrio, mas que sua causa não é, de forma alguma, o investimento social, mas o gasto com uma dívida pública imensa, e deliberadamente mal explicada à população.
Auditora da Receita Federal por 30 anos, Maria Lucia Fattorelli tem estudado, há quase 20 anos, a dívida pública, como coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, uma organização sem fins lucrativos que tem se debruçado sobre um pesado jogo de interesses que traz ganhos nababescos a uma minúscula camada do setor financeiro e prejuízo ao povo e às contas públicas. Fattorelli tem o conhecimento de quem já estudou a fundo, munida da expertise de auditora, a dívida pública do Brasil e de países como o Equador e a Grécia. Na Grécia, ela fez parte, com outros especialistas internacionais, do Comitê pela Auditoria da Dívida Grega, trabalho semelhante ao que já havia feito, antes, no Equador, e que foi fundamental para o país reduzir em 70% o estoque de seu endividamento. No Brasil, na Grécia, no Equador, apesar das particularidades, a mesma situação básica: uma dívida pública que suga recursos do país e trava investimentos sociais. Uma dívida que é ilegítima e mesmo, em certos aspectos, ilegal. E numa época em que a corrupção está na ordem do dia, ela afirmou, certa vez: “a dívida pública pode ser vista como um mega-esquema de corrupção institucionalizado”.
A seguir, Maria Lucia Fattorelli explica e analisa essa questão crucial, mas (talvez por isso) tão pouco debatida, da dívida pública brasileira.
Rubens Campante: Você poderia começar explicando o que é a dívida pública, como ela se formou e como ela se desdobra em dívida externa e dívida interna, e como foi o trabalho da Auditoria Cidadã da Dívida no levantamento deste problema
Maria Lucia Fattorelli: Teoricamente, a dívida pública abrangeria empréstimos contraídos pelo Estado junto a instituições financeiras públicas ou privadas, no mercado financeiro interno ou externo, bem como junto a empresas, organismos nacionais e internacionais, pessoas ou outros governos. Pode ser interna ou dívida externa, de acordo com a localização dos seus credores e com a moeda envolvida nas operações.
A origem oficial, portanto, da dívida pública seriam recursos, empréstimos, recebidos pelo Estado brasileiro. Afinal, dívida, de forma geral, é a contrapartida pelo recebimento de algum tipo de recurso, e com a dívida pública não deveria ser diferente. Contudo, na prática, a Auditoria Cidadã da Dívida tem detectado a geração de dívida pública por meio de mecanismos meramente financeiros que não significam o ingresso de recurso algum.
O ciclo atual do endividamento brasileiro teve início na década de 1970, na modalidade de dívida externa, e, a partir do Plano Real, ocorreu a explosão da dívida interna.
O forte crescimento da dívida externa brasileira, a partir de 1971, decorreu do fim da paridade dólar-ouro nos Estados Unidos, por iniciativa do Banco Central norte-americano (FED), que é privado e controlado por grandes bancos privados. Esse fato possibilitou a impressão de grandes volumes de dólares que passaram a ser ofertados pelos bancos privados internacionais a diversos países, inclusive o Brasil, a taxas de juros aparentemente baixas, porém variáveis. Os bancos privados que controlavam o FED eram em grande parte os mesmos credores da dívida externa brasileira e de outros países que caíram na sedução da oferta de créditos baratos vinculados a taxas flutuantes.
No final da década de 1970, o FED passou a elevar as taxas de juros, que alcançaram 20,5% ao ano no início da década de 1980, provocando a chamada “crise da dívida” de 1982, utilizada como justificativa para a interferência do FMI em assuntos internos do país. Assim, desde 1983, quando assinamos a primeira Carta de Intenções com o FMI, este organismo tem sido um dos grandes responsáveis pelo crescimento da dívida pública brasileira e pela submissão ao modelo econômico que emperra o nosso país e impede o nosso desenvolvimento socioeconômico.
Vários fatos graves marcaram as sucessivas negociações da dívida externa. Cabe ressaltar os seguintes aspectos, documentados durante a CPI da Dívida Pública, concluída em 2010, na Câmara dos Deputados:
1) Os contratos disponibilizados à CPI comprovaram apenas uma parte que não chega a 20% do estoque da dívida externa com bancos privados internacionais na década de 1970;
2) A partir de 1983, as dívidas do setor privado (nacional e internacional instalado no país) foram transferidas ao Banco Central do Brasil, mediante contratos firmados em Nova York e regidos pelas leis de NY, em completa afronta à soberania;
3) Em 1992, há forte suspeita de prescrição da dívida externa com bancos privados internacionais, que correspondia a quase 90% de toda a dívida externa brasileira;
4) Em 1994, essa dívida suspeita de prescrição foi trocada por títulos, no chamado Plano Brady, em Luxemburgo, conhecido paraíso fiscal;
5) A partir daí, esses títulos passaram a ser trocados por dívida interna (a juros que chegavam a 49% ao ano!) ou utilizados como moeda para comprar empresas privatizadas a partir de 1996.
A explosão da dívida interna se deu a partir do Plano Real e ela vem crescendo aceleradamente, principalmente devido à política monetária exercida pelo Banco Central: elevadíssimas taxas de juros (que não servem para controlar o tipo de inflação que existe no Brasil); operações de enxugamento de moeda com farta remuneração aos bancos por isso; a contabilização de juros como se fosse amortização, entre outros que geram centenas de bilhões de reais de “dívida pública”, sem contrapartida alguma!
Fica claro, portanto, que a dívida pública, historicamente, não tem funcionado como instrumento de financiamento do Estado, mas como uma engrenagem que promove contínua transferência de recursos públicos para o setor financeiro privado nacional e internacional. O privilégio do gasto com a dívida é revelado na execução orçamentária federal. No ano passado, quase 44 % do orçamento geral da União executado destinou-se ao pagamento de juros e amortizações da dívida.
Além de absorver quase a metade do orçamento federal e boa parte dos orçamentos estaduais e municipais, a chamada dívida pública tem sido a justificativa para contínuas contrarreformas, como a da Previdência; privatizações, além de outras medidas de ajuste fiscal, como o aumento da desvinculação das receitas da União (DRU) e dos entes federados (DREM) para 30%, e a Emenda Constitucional 95 que estabeleceu teto somente para as despesas primárias – por 20 anos! – para que sobrem mais recursos ainda para as despesas não primárias, que são justamente as despesas financeiras com a dívida.
Por tudo isso, a Auditoria Cidadã da Dívida insiste na reivindicação de uma completa auditoria dessa dívida, com participação social, pois sequer sabemos para quem devemos, já que o nome dos detentores dos títulos da dívida pública brasileira é, por incrível que pareça, informação sigilosa!!!
É preciso levar essas informações a toda a sociedade que está pagando essa pesada conta. Por isso é importante incentivar a participação de todos na Consulta Nacional sobre Reformas e Auditoria da Dívida.
O Brasil passa, atualmente, por um período de reformas do Estado, sob a justificativa de que este enfrenta uma crise financeira profunda. Não só o atual governo federal tem proposto cortes profundos em investimentos e direitos sociais (e a reforma da Previdência está na pauta, punindo os trabalhadores), como os estados encontram-se, quase todos, em situação desesperadora. O que a questão da dívida pública tem a ver com isso?
A crise atual é uma crise totalmente desnecessária, fabricada principalmente pela política monetária suicida praticada pelo Banco Central, que, além de criar cenário de escassez de recursos, o que impede a realização de investimentos geradores de emprego e renda, gera despesa elevadíssima que sobrecarrega o orçamento público e cria mais dívida pública ainda.
Sob o argumento de “controlar a inflação”, o Banco Central do Brasil tem aplicado uma política monetária fundada em dois pilares: (1) adoção de juros elevados e (2) redução da base monetária, ou seja, do volume de moeda em circulação. Na prática, tais instrumentos têm se mostrado um completo fracasso.
Além de não controlar a inflação, os juros elevados têm afetado negativamente não só a economia pública %u212 provocando o crescimento exponencial da dívida pública, que exige crescentes cortes em investimentos essenciais %u212, mas também tem afetado negativamente a indústria, o comércio e a geração de empregos.
Por sua vez, a redução da base monetária utiliza mecanismos que enxugam mais de um trilhão de reais dos bancos, instituindo cenário de profunda escassez de recursos, o que acirra a elevação das taxas de juros de mercado e empurra o País para essa profunda crise socioeconômica.
Adicionalmente, o Banco Central remunera os bancos por esse volume brutal de recursos, onerando pesadamente o orçamento federal.
Segundo o famoso economista francês Thomas Piketty, seria um suicídio deixar de utilizar, em momentos de crise, o instrumento de emissão de moeda e a prática de juros baixos. No Brasil, o Banco Central tem feito o contrário e, adicionalmente, ainda alimenta o mercado com ração muito cara: operações de swap cambial que têm gerado centenas de bilhões de reais de prejuízos que são pagos à custa de emissão de mais títulos da dívida pública!
O rombo das contas públicas no Brasil decorre desses gastos financeiros. E dizem que são os direitos sociais que prejudicam o equilíbrio fiscal do Estado, mas, na verdade, é o sistema da dívida pública que quebra o Estado e impede os direitos sociais.
Então, a reforma da Previdência decorre dessa ganância insaciável do mercado financeiro, de abocanhar a fatia de recursos que ainda é destinada à Previdência, que atinge mais de 60 milhões de pessoas no Brasil e é o maior programa de distribuição de renda, para destiná-la ao pagamento de juros da chamada dívida pública.
Além do fato de aumentar enormemente o mercado de Previdência Privada...
Sim, certamente, a cada vez que o governo vem a público, com o falacioso discurso de “déficit”, ele presta um serviço ao mercado financeiro, pois muitas pessoas acabam sendo empurradas para adquirir planos privados de previdência, gerando um grande volume de negócios para o setor financeiro.
O sistema financeiro foi desenvolvido, originalmente, para ser um meio, e não um fim, isto é, sua função seria a de apoiar, de capitalizar, a economia real, da produção, do comércio. Mas parece que, de uns tempos para cá, a especulação financeira, os ganhos nababescos auferidos com um “dinheiro” que não tem lastro palpável, tornaram-se hegemônicos, e a economia real passou a ficar a reboque.
Isso é um elemento fundamental de uma crise mundial que não é só econômica, mas social, com o aumento da desigualdade e da exclusão, e também política, com o recrudescimento da extrema direita, do racismo, da xenofobia, da violência etc. Você concordaria com essa avaliação a respeito da hegemonia do sistema financeiro especulativo e de suas consequências? Se sim, qual o papel que a dívida pública desempenharia nessa situação?
O atual modelo capitalista entrou em uma fase de financeirização cada dia mais aprofundada. O setor financeiro domina o poder político na maioria dos países, bancando campanhas eleitorais; e ele domina não só o próprio mercado financeiro, como detém a propriedade de empresas estratégicas, adquiridas nos questionáveis processos de privatizações mundo afora.
Um importante estudo acadêmico realizado em 2011 - A rede de controle corporativo global, revelou a impressionante concentração de poder e propriedade, de parte relevante da economia mundial, nas mãos de reduzido grupo de instituições bancárias, A investigação partiu da amostra composta pelos 43.000 maiores negócios do mundo e descobriu a existência de mais de um milhão de vínculos de propriedades entre eles. Revelou que 40% do controle daqueles 43.000 maiores negócios mundiais está concentrado nas mãos de apenas 147 instituições proprietárias, que conformam um núcleo altamente conectado entre si. A maioria desse núcleo - 75% - são entidades financeiras, e a propriedade dessas 147 instituições está nas mãos de pouco mais de 50 grandes bancos, que possuem o controle do núcleo.
Essa concentração de poder, controle e propriedade dos negócios mundiais nas mãos dos bancos tem permitido a interferência deles em políticas e decisões governamentais estratégicas, concretizada nessa hegemonia financeira que você mencionou.
A dívida pública tem sido um dos principais alimentos desse capitalismo financeirizado, favorecendo a concentração de renda no setor financeiro e aumentando ainda mais o seu poder. Por isso, o endividamento é um problema presente em quase todos os países capitalistas.
No Brasil, estatísticas do próprio Banco Central demonstram que em 2015, apesar da desindustrialização, da queda no comércio, do desemprego e da retração do PIB em quase 4%, o lucro dos bancos alcançou o patamar de R$ 96 bilhões e foi 20% superior ao de 2014.
Você acha que o problema da dívida pública, que ultrapassa a questão meramente econômica, recebe a devida atenção na Academia, na mídia e em outros canais de discussão e expressão?
Infelizmente, não. É um tema bloqueado até mesmo nas faculdades de economia, onde a dívida aparece apenas de passagem, como uma das variáveis econômicas, comparada com o próprio dinheiro, como se a dívida fosse uma outra forma de recurso, de moeda. Ou seja, uma visão totalmente descolada do papel que a chamada dívida pública exerce na prática.
Poucas pessoas se dedicam ao estudo do endividamento, dissecando os contratos desde a sua origem e os mecanismos que geram dívida continuamente. A maioria parte do senso comum, de que se existe uma dívida, houve o ingresso do recurso e estaria tudo certo. Mas não é bem assim. A experiência de auditorias cidadãs, tanto no Brasil como em outras partes do mundo, tem demonstrado a atuação do que denominamos “Sistema da Dívida”, que corresponde à utilização do endividamento público às avessas, ou seja, em vez de servir para aportar recursos ao Estado, o processo de endividamento tem funcionado como um instrumento que promove uma contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente ao setor financeiro privado. É por isso que é tão importante realizar a auditoria dessas dívidas, a fim de mostrar a verdade e segregar o que é dívida legítima e ilegítima.
Já que é tão importante, realmente, conhecer e discutir essa questão da dívida pública, essas informações que a senhora passa estão disponíveis e acessíveis em algum local?
Sim. Temos diversos artigos e publicações disponíveis em nossa página e no Facebook. O respaldo das informações que mencionei aqui pode ser verificado também nas Análises Técnicas que realizamos para a CPI da Dívida Pública.
*Rubens Goyatá Campante é Coordenador do Núcleo de Pesquisas da Escola Judicial do TRT-3ª Região.
Edição: Carta Maior