Na Espanha, em 2011, uma série de protestos espontâneos se espalharam pelas ruas das cidades para pedir, principalmente, por reformas econômicas e eleitorais, suspensão de privilégios dos políticos e defesa dos direitos sociais. Conhecidas como Movimento 15M ou Indignados, as manifestações foram responsáveis por consideráveis mudanças na maneira de fazer política no país.
Seja através da experiência do Podemos, partido criado a partir do espaço aberto pelos protestos, ou na confluência dos Movimentos Cidadãos, que se elegeram para governos municipais em várias cidades espanholas, a Espanha mostrou um conjunto interessante de experiências políticas que podem servir ao Brasil e aos outros países da América Latina, na opinião de cientistas sociais.
O Podemos surgiu de forma repentina no cenário político da Espanha. Segundo Breno Bringel, professor do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (IESP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o partido foi constituído formalmente em janeiro de 2014, a partir de uma iniciativa de intelectuais, movimentos populares, pequenas organizações culturais e das esquerdas políticas que propunham “converter a indignação em mudança política”, segundo o manifesto escrito por seus fundadores.
Em somente quatro meses de existência, o novo partido conseguiu eleger cinco deputados para o Parlamento Europeu, somando mais de 1,2 milhão de votos. Já nas eleições gerais da Espanha, as primeiras pesquisas realizadas sobre a intenção de voto, em 2014, revelaram a preferência da população pelo novo partido. Segundo levantamento do instituto Metroscopia para o jornal El País, o Podemos seria o mais votado, com 27% dos votos, alcançando 1,5 ponto de vantagem em relação ao Partido Socialista (PSOE) e 7 acima do Partido Popular (PP), que são os dois principais partidos do país.
Vale lembrar que a Espanha tem um sistema de governo parlamentarista, apesar de seu governante ser chamado de presidente. Para formar governo, um partido precisa ter, em uma primeira votação, o apoio de 176 dos 350 membros da Câmara dos Deputados. No entanto, no resultado oficial das eleições, o Podemos atingiu apenas 71 cadeiras, ficando atrás dos dois partidos tradicionais.
“O Podemos não existiria sem 15M, mas também não é uma continuação automática desse movimento. É um partido que aproveitou o contexto político para aparecer e disputar espaço. Ele começa como um partido movimento, se organizando a partir de círculos e núcleos de base, mas vai perdendo fôlego ao longo do tempo. A partir daí a visão proeminente de um partido mais centralizado, seguindo uma organização mais clássica, se torna a visão hegemônica”, explica Breno Bringel.
De acordo com Breno, o Podemos avançou em um primeiro momento no país devido a vários fatores, próprios da conjuntura espanhola, e outros de metodologia desenvolvida por seus organizadores. Como complementa Salvador Schalvezón, antropólogo e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a principal estratégia foi conseguir mudar o discurso clássico da esquerda para ter maior aderência com a população.
“Há desenvolvimento de um discurso que projeta o Podemos como uma nova possibilidade, uma organização construída de baixo para cima, em oposição à casta (que seriam as elites). Essa construção abarca aqueles que não estão acostumados ou não se sentem identificados com as tradicionais bandeiras vermelhas da esquerda”, explica.
Na avaliação de Schalvezón, o discurso enfraquece a partir do momento que a disputa pelo governo espanhol torna-se mais proeminente dentro do partido. “Depois de não conseguir se eleger, houve uma proposta de aliança com o PSOE, que dividiu o Podemos entre os que concordavam ou não. Acabaram decidindo por não fazer a aliança, mas só a reflexão sobre ela causou um desencanto no partido. Os círculos e trabalhos de base foram diminuindo, mas o partido ainda tem uma considerável força política”, avalia.
Para Rodrigo Nunes, professor de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), o Podemos tem vivido uma crise de identidade e projeto político. “Como eles não lograram se tornar uma força eleitoral tão expressiva quanto se pensou que poderiam ser, o partido tem passado por uma série de debates internos, incluindo um racha no seu grupo dirigente e muitas críticas sobre sua estratégia e a excessiva centralização do aparato em torno de figuras como Pablo Iglesias e Iñigo Errejón. Ainda assim, a crise tem mais a ver com uma falta de crescimento do que com uma queda do partido; apesar de tudo, as pesquisas apontam que seu apoio se mantém estável”, acrescenta.
Como lembra Breno Bringel, para além das questões em torno da disputa eleitoral, o Podemos tem importante papel na conjuntura espanhola ao trabalhar para assegurar direitos sociais e ajudar a conter o conservadorismo.
“Hoje o partido é uma das maiores forças de oposição ao PSOE e ao PP. Através de seus deputados, tem implementado medidas de preservação da saúde, educação, acesso a moradia de maneira mais democrática, enfim, garantia dos serviços públicos em geral. Também tem trabalhado em oposição a onda conservadora na Europa, principalmente quando trata-se de imigração”, explica.
Movimentos cidadãos
Além do Podemos, outras experiências políticas também surgiram a partir do 15M na Espanha. Uma delas, considerada por muitos analistas como a mais positiva, são os Movimentos Cidadãos. Tratam-se de confluências locais de movimentos populares, base social organizada e representação política. Uma nova forma de organização que disputou as eleições municipais nas principais cidades espanholas, sendo eleita em cinco delas: Madri, Barcelona, Zaragoza, A Coruña e Cádiz.
“É como se fossem uma outra parte da mesma estratégia do Podemos, formado por outros grupos, em caminho paralelo mas convergente. São plataformas amplas, com trabalho de base territorial e formado a partir de parcerias entre movimentos populares. Essas experiências trazem, de fato, o espírito do 15M”, explica Breno.
Em Madri, Manuela Carmena foi eleita, em 2015, tirando do poder o conservador Partido Popular (PP), que desde 1991 governava a cidade. Sua representação chamada de Ahora Madrid tem como meta até o final do mandato algumas medidas que causaram certa polêmica entre os mais conservadores. Entre elas, a revisão de contratos municipais para devolver à Prefeitura vários serviços públicos, como o de limpeza urbana, a elevação dos impostos às grandes empresas e a diminuição das tarifas de transporte público.
Em Barcelona, Ada Colau, uma ativista especializada em paralisar despejos hipotecários de pessoas que ficariam sem casa, foi eleita em 2015. Sua representação chamada de Barcelona en Comú, também apresentou um plano corajoso para o mandato. No campo social, a prefeita pretende multar os bancos que executem desalojamento por dívidas hipotecárias, além disso, taxar as empresas elétricas, ampliar a gratuidade do cartão do transporte público e implementar uma renda municipal para famílias pobres.
Segundo Rodrigo Nunes, a principal transformação trazida pelos Movimentos Cidadãos está no próprio formato "confluência", que não é nem um partido, nem uma coalizão de partidos, mas um espaço comum de que participam diferentes partidos, movimentos sociais e pessoas não afiliadas. “Esse formato enfraquece a lógica de competição entre forças políticas em prol de uma lógica cooperativa. Também cria maior participação, aumentando o controle que a base tem sobre seus representantes e dificultando a tendência a que o jogo se reduza a acordos de cúpula ou disputa entre aparelhos”, explica.
Rodrigo destaca que há ainda o efeito que a emergência dessas confluências locais tem no cenário como um todo, que é a quebra de monopólio da representação política. “No momento em que o Podemos poderia ter se tornado o único instrumento eleitoral da nova esquerda espanhola, tornando os movimentos mais dependentes dele e portanto menos capaz de controlá-lo, as confluências embaralharam o jogo, fazendo com que a liderança do Podemos tivesse que levar em conta diversas outras forças políticas e particularidades regionais, que se veem assim representadas com mais precisão”, acrescenta.
Para Breno Bringel, as experiências espanholas, tanto do Podemos quanto dos Movimentos Cidadãos, podem ajudar pensar alternativas dentro da realidade brasileira. “A esquerda no Brasil tem que pensar em uma forma de fazer política que seja transformadora para que possa romper com a polarização, entre coxinhas e petralhas. É preciso criar uma gramática que transcenda, que possa ir além dos jargões clássicos da esquerda. Não podemos nos articular apenas em contexto de perda de direitos, mas também devemos pensar numa agenda proativa, que proponha alternativas concretas e viáveis, tanto no discurso quanto na política”, conclui.
Rodrigo Nunes, por sua vez, aponta que crises políticas com a profundidade da que está acontecendo no Brasil dificilmente podem ser resolvidas por dentro dos mecanismos existentes. Por isso, um dos caminhos para resolver este impasse seria oferecer às pessoas maior controle sobre seus representantes.
“Uma das maneiras de aumentar o controle é quebrando o monopólio da representação. As pessoas não querem ficar inteiramente dependentes de um partido, mas preferem ter uma diversidade de opções que atravessam as formações partidárias; os partidos são instrumentos que servem às pessoas, e não o contrário”, afirma, lembrando de experimentos como o “Cidade Que Queremos”, em Belo Horizonte, e a “Bancada Ativista”, em São Paulo, que apontam nesta direção.
“Estas alternativas mostram uma lógica cooperativa, baseada nos comuns e na participação, ao invés do fortalecimento de aparatos competitivos e lideranças centralizadoras”, conclui.
Edição: Vivian Virissimo