Transporte

Em todo o mundo, governos têm dificuldades para regulamentar aplicativos como Uber

Para socióloga, legislação tenta compreender fenômeno novo da "uberização" do mercado, que muda as relações de trabalho

Brasil da Fato | São Paulo |

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Motoristas do Uber protestaram contra a votação do PL 5.587/16 em Brasília na última terça-feira (4)
Motoristas do Uber protestaram contra a votação do PL 5.587/16 em Brasília na última terça-feira (4) - Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A disputa em torno da regulamentação de aplicativos da chamada "economia compartilhada", como dos serviços de transporte individual remunerado por meio de aplicativos de celular, ocorre em todo mundo.

No Brasil, o Projeto de Lei (PL) 5.587/16, que regulamenta este serviço e foi aprovado no plenário da Câmara dos Deputados nesta terça-feira (4), é um bom exemplo. O texto-base inicialmente beneficiaria empresas como a estadunidense Uber e a espanhola Cabify, mas seguirá para o Senado com emendas emplacadas pelo lobby de taxistas e que desagradaram os donos dos apps e motoristas do setor.

Segundo a pesquisadora Ludmilla Abílio, doutora em Sociologia do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), empresas como a Uber tem a estratégia de entrar nos mercados locais e se fortalecer antes da regulamentação. "Quando o Estado reage, elas já existem, já tem milhares de consumidores cadastrados e milhares de motoristas", diz a pesquisadora.

No próximo 18 de abril, a Uber vai encerrar suas atividades na Dinamarca, após a aprovação de novas regras que, entre outras coisas, exigem o uso obrigatório de taxímetros. A empresa estadunidense afirmou que não será capaz de operar no país a menos que esta regulamentação seja alterada.

Desde a chegada da Uber na Europa, em 2011, sindicatos, taxistas e políticos têm argumentado que, por não seguir a mesma legislação padrão dos táxis, a empresa impõe uma competição desleal no setor.

A Uber enfrenta inúmeros processos na Justiça e aguarda a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). A corte vai determinar, ainda este ano, se os apps serão definidos como um serviço de transporte ou uma plataforma digital.

Caso a compreensão do tribunal seja que a plataforma é um serviço transporte, a empresa deverá cumprir a legislação de segurança trabalhista existentes nos países europeus, além de seguir as regras aplicáveis ​​às associações de táxis tradicionais.

Na França, Alemanha, Itália, Espanha, Bélgica e Holanda, o serviço Uber Pool, categoria mais barata, já foi suspenso. Em Londres, a Justiça do Trabalho reconheceu, em outubro do ano passado, o vínculo empregatício de dois motoristas, que deveriam ter direito a salário mínimo, afastamento por doença e férias remuneradas.

Mesmo nos EUA, a empresa enfrenta problemas. Na cidade de Seattle, uma lei de 2015 permitiu que os motoristas se organizassem coletivamente para reivindicar direitos trabalhistas.

A iniciativa ataca um dos principais pilares do modelo de negócio das empresas: a independência dos contratos dos motoristas. Abílio explica que a economia compartilhada some com a materialidade da empresa, que se apresenta como mediadora entre motoristas disponíveis para o trabalho e consumidores que estão interessados em pagar menos.

"Parece que é apenas este desejo que está movendo esta relação", diz a pesquisadora. "O Uber aparece como mediador, mas, ao mesmo tempo, é a empresa que detém os algoritmos e as definições da plataforma que vão definir as regras dessa relação – quanto esse trabalhador ganha, seu ranqueamento, o acesso às corridas. Ou seja, o trabalhador está subordinado ao Uber", adverte.

Para ela, as empresas da economia digital estão reorganizando o mundo do trabalho "de uma forma nova que na verdade, não é tão nova assim". "Na verdade, a Uber é a ponta do iceberg. Neste tipo de regulamentações, o que está em disputa é, realmente, qual ainda é o papel do Estado nas regulações do trabalho", afirma a pesquisadora.

Disputa

No Brasil, o PL do deputado Carlos Zarattini (PT-SP) determina uma série de exigências para que esse tipo de serviço possa funcionar. No entanto, os parlamentares aprovaram uma emenda que retirou do texto a expressão "privado", logo após "transporte remunerado individual". Com isso, os serviços só serão legalizados se receberem uma autorização das prefeituras, como já acontece com os táxis.

Para Everaldo Pereira, presidente do Sindicato dos Motoristas de Transportes Privados Individual de Passageiros por Aplicativos do Estado de Pernambuco (Simtrapli-PE), as emendas são como um "Frankenstein", que deixam a proposta "complexa". "Vamos nos transformar em uma segunda linha de táxi", reclama o sindicalista.

Além disso, o projeto altera as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana para determinar que este tipo de serviço é de responsabilidade dos municípios, a quem caberá a regulamentação, a identificação (que funcionaria como uma espécie de alvará) e a fiscalização. "Esperar que as prefeituras façam essa regulamentação fará com que a Uber e outras empresas saiam do país", critica Pereira.

Já para o presidente do o Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores nas Empresas de Táxi do Município de São Paulo (Simtetaxi) Antônio Matias, a votação da Câmara "foi excelente" e traz "uma disputa leal".

"Eles terão direito a uma concessão dada a cada município, onde vai ser regulado e vai dar mais transparência ao usuário e mais tranquilidade para os colegas que trabalham com estes aplicativos", disse Matias. Para ele, a regulamentação vai trazer qualidade e honestidade de ambos os lados. "Tem espaço para todo mundo", afirma.

Em nota enviada por e-mail pela assessoria de imprensa, a empresa estadunidense afirmou que o PL em votação no Brasil "não regula a Uber no Brasil, mas tenta transformá-la em táxi, proibindo, entāo, este modelo de mobilidade".

Já a 99, empresa brasileira que oferece tanto serviço de táxi quanto de motoristas privados, a votação não gera nenhum efeito prático para a população. "A supressão do termo 'transporte privado' do texto do Projeto de Lei é tecnicamente inconsistente", afirmou a empresa, também por meio de nota.

Precarização

O presidente da Simtrapli, Everaldo Pereira, pontua ainda que a discussão do projeto no Brasil, centrada na regularização, não prevê nenhuma proposta trabalhista. Segundo ele, a precarização do trabalho dos motoristas, que são apresentados pelos apps como empreendedores, também é uma preocupação dos sindicatos.

Desempregado há quase dois anos, o engenheiro mecânico Saulo*, 55, foi atraído pela facilidade de entrar para o ramo dos aplicativos. Ele conta que foi uma alternativa encontrada para conseguir renda extra. "Se eu quisesse ser motorista de táxi, os alvarás já estão praticamente todos vendidos. O mercado está estagnado", observa.

No entanto, Saulo deixou de utilizar o app da Uber quando percebeu que deveria se dedicar muitas horas para uma conseguir uma remuneração média. Ele conta que trabalhava até dez horas por dia no trânsito para ganhar, no máximo, R$ 200.

"Não tem fundo de garantia, nem contribuição para o INSS… Todas essas coisas de CLT não existem. Mas também a Uber não fica te ligando para cobrar se você não trabalhou nem ameaça de descadastramento", afirma. Para o engenheiro, a regulamentação, do jeito que foi encaminhada ao Congresso Nacional, vai "praticamente acabar" com os aplicativos.

Ludmilla Abílio refuta a ideia de que os motoristas do Uber e similares sejam empreendedores. Segundo a pesquisadora, os trabalhadores se engajam nesta atividade porque não conseguem um estatuto profissional como forma de sobrevivência.

Para ela, os governos locais parecem estar mais preocupados com a forma como podem arrecadar impostos do que, de fato, com a condição dos trabalhadores.

"A uberização é um futuro possível no mundo do trabalho, ainda mais com as reformas que estão sendo aprovadas [no Congresso Nacional]. É a ideia de que a empresa provê a infraestrutura, e você é um parceiro da empresa, quase em uma relação de trabalho de igualdade, que sabemos que é falsa", afirmou.

O governo federal espera que as emendas prejudiciais ao serviço sejam derrubadas pela base aliada no Senado. Mas o Congresso pode derrubar o eventual veto presidencial às emendas. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), mostrou-se favorável às aprovações das alterações.


* O entrevistado pediu anonimato do sobrenome

Edição: Camila Rodrigues da Silva