Na Ilha de Marajó, os agricultores sem a posse da terra eram obrigados a trabalhar em um regime próximo à servidão. Eles tinham que destinar metade da produção aos supostos donos daquelas terras. Quando as famílias obtiveram da União o direito de trabalhar o solo, deixaram de pagar o “imposto”. Foi aí que começaram os conflitos na região. Hoje, após 17 anos plantando e cuidando das criações de animais, Maria Rosilda da Costa Ferreira, de 48 anos, tem um prazo de menos de 30 dias para deixar o local que conhece como sua casa. O mesmo ocorre com Maria Berenilda Barbosa Furtado, de 50 anos, que vive há 25 na região.
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A situação das trabalhadoras escancara o problema criado com o uso equivocado do Cadastro Ambiental Rural (CAR) que, na Ilha de Marajó, é utilizado para legalizar a grilagem de terras, como aponta esta reportagem do Brasil de Fato. Isso ocorre porque o sistema permite a sobreposição de terras e, no estado, as áreas declaradas no cadastro já somam um território maior que o próprio Pará.
“Não importa se eu já tenho o meu cadastro rural... O outro joga o cadastro dele por cima, há uma sobreposição de cadastros. Aí o pobre não pode se defender, porque em cima dele tem um maior, que tem recursos, que tem o cartório, o Fórum, a delegacia do lado dele. O que ele faz? Ele fica oprimido, que é o caso das duas famílias com ordem de despejo para 30 dias. Então, qualquer um vai lá, faz o CAR, tira as famílias da terra e pronto”, critica a presidenta do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Ponta de Pedras, Ana Arlete Santos da Conceição.
Caso Rosilda
No mapa informado pelo site www.car.semas.pa.gov.br, a área maior em rosa é o cadastro rural do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Ilha Santana. Dentro da marcação, em amarelo, há um outro cadastro, registrado como Sítio Arrozal.
Na área em questão, onde há sobreposição de registros, mora a família de Maria Rosilda da Costa Ferreira, de 48 anos, mãe de nove filhos. Cinco deles moram com ela no lote chamado de Sítio Arrozal e que integra o assentamento. O cadastro no CAR individual sobreposto está em nome do antigo posseiro, atualmente falecido.
Para rever o lote, os parentes do posseiro entraram com um processo para reintegração de posse contra Rosilda e sua família. No dia 28 de março, em uma audiência no Fórum da Comarca de Ponta de Pedras, foi entregue a liminar informando que a família da agricultora terá que sair do sitio onde mora há 17 anos.
Para recorrer da ação, Rosilda e o filho foram para Belém acompanhados por Conceição para relatar ao Ministério Público Federal (MPF) o ocorrido.
No dia 5 de abril, Rosilda deu depoimento na sede do MPF. Durante a entrevista, ela teve dificuldade para explicar seu endereço, porque para o ribeirinho, o CEP é o nome de rios, furos e igarapés. Depois de algumas perguntas, foi possível ter mais informações de onde ela reside: no Projeto de Assentamento Agroextrativista Ilha Santana, no rio Fábrica, igarapé Arrozal, no sítio Arrozal.
Meeiros
Ao longo da entrevista, Rosilda relata que o pai já morava no sitio. Ela se esforça para puxar da memória o ano que ele morou e, depois de algumas recordações, acredita que seja mais ou menos pelos idos de 1988. Ela lembra que o pai mantinha uma relação de meeiro com antigo posseiro, relação que continuou com Rosilda.
Contudo, depois que ela recebeu da Superintendência do Patrimônio da União (SPU), em 2012, o Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS), a agricultora parou de dar a meia e a partir daí várias ameaças se sucederam.
O TAUS é um instrumento entregue pela SPU às comunidades tradicionais, cuja finalidade é garantir moradia e a utilização de forma sustentável dos recursos naturais disponíveis na orla marítima e fluvial. O termo garante a posse, mas não permite a alienação do lote.
Já meeiro, como explica Conceição, é a pessoa que trabalha e mora no lote e, como forma de pagamento pela moradia, entrega a metade de tudo o que é produzido na roça ao pretenso dono. A relação de muitas famílias foi assim por anos na região do Marajó, mas, de acordo com a líder sindical, a relação mudou a partir da entrega da autorização de uso, dando início a uma série de conflitos.
“Eles [“donos”] moram na cidade grande e deixam o caboclo lá tomando conta do terreno e tudo que ele [meeiro] constrói ou planta, como um cacho de banana, é dividido (...). É um trabalho praticamente escravo. Só que quando chegou o projeto da SPU na ilha do Marajó e começou a dar autorização de uso para as famílias ribeirinhas, quase todas as famílias se apropriaram desse documento. Por conta disso, eles [os donos das terras] ficaram muito revoltados, porque as famílias deixaram de ser meeiras. [Essas pessoas] muitas vezes trabalhavam sem ganhar nada”, relata a sindicalista.
Ela acredita que para tentar fragilizar o documento da SPU, entregue as muitas famílias da região, começou-se a fazer a inscrição do CAR, havendo uma corrida para o cadastro.
Berenilda
Além de Rosilda, Maria Berenilda Barbosa Furtado, de 50 anos, pescadora e agroextrativista, também teve que relatar seu caso ao MPF. Moradora há 25 anos no Sítio Conceição da Ponta, localizado em frente ao Projeto de Assentamento Agroextrativista Ilha Santana, às margens do rio Fábrica, ela conta que também era meeira e relata que quando chegou no lote não havia nada, uma arvore frutífera sequer e hoje vive da roça e da criação de pequenos animais:
“Não tinha plantação, não tinha nada. Chegamos lá, trabalhamos, pegamos a terra nua, plantamos, temos criações. Isso foi até 2006. Na época, o antigo posseiro havia falecido, a mulher e as filhas quiseram arrendamento [pagamento] até 2011. De 2011 para 2012 chegou o pessoal do SPU e fez o cadastro, dizendo que a terra era da União e que nós que estávamos lá teríamos a posse da terra para tomar de conta. Então, a gente deixou de dar o que a gente dava [a meia] e eles entraram na Justiça contra a gente” conta Furtado.
Reintegração
No mesmo dia da audiência de Rosilda, Berenilda recebeu a notícia que seria dada reintegração de posse aos antigos posseiros. As duas devem sair dos lotes até o dia 27 de abril.
O Juiz da comarca Jonas da Conceição Silva afirmou que, no caso de Rosilda, o processo ainda está em andamento, mas em um caso hipotético de uma família ser moradora de um assentamento rural legalizado pelos órgãos competentes, não seria possível a retirada da família. Contudo, não consta a informação no processo de que Rosilda seja moradora de um assentamento agroextrativista.
No caso Berenilda, como o lote de terra pertence a União, conforme mostra o TAUS da agricultora, segundo o juiz quando uma das partes se sente prejudicada, ela pode reivindicar a posse, como explica Silva: “nesses casos, os particulares podem sim buscar seus direitos através da possessória”. Ele acrescenta que “inclusive, temos vários casos também em que a União diz que não tem interesse nenhum no procedimento por não tratar de propriedade e sim de posse entre particulares”
Edição: Vanessa Martina Silva