No mês de abril, a Comissão Pastoral da Terra lançou a publicação Conflitos no Campo no Brasil onde registra um aumento de 26% na violência no campo de 2015 para 2016. Cresceram os assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte, agressões, encarceramento e ameaças de prisão em decorrência de conflitos no campo. Não importa por onde se olhe o campo está conflagrado.
A violência no campo brasileiro não é novidade, existem filmes, livros, relatos, uma infinidade de registros. Os números indicam que, entre 1985 e 2016, pelo menos 1.834 pessoas foram assassinadas em decorrência de conflitos no campo. Nestes 32 anos de acompanhamento, apenas 112 foram julgados, com 31 mandantes e 92 executores condenados, por outro lado 14 mandantes e 204 executores acabaram absolvidos pela Justiça. Dos 31 mandantes condenados, nenhum está preso.
Apenas do dia 19 de abril ao dia 01 de maio, três chacinas no intervalo de menos de duas semanas deixaram pelo menos 16 mortos. No dia 19, nove pessoas foram mortas no assentamento Taquaruçu do Norte, em Colniza, no Mato Grosso, os corpos foram amarrados e um deles teve uma orelha cortada indicando que houve tortura das vítimas. O grupo foi assassinado com golpes de facão e tiros de arma calibre 12.
Dez dias depois, no dia 29, moradores da linha 90 da Gleba Corumbiara, em Rondônia, encontraram três corpos carbonizados numa caminhonete incinerada. Dois dias depois, na segunda-feira (01/05), o mesmo cenário em Santa Maria das Barreiras, no sul do Pará, quatro corpos encontrados carbonizados dentro de uma caminhonete localizada dentro do assentamento Cristalino. Não fosse isso suficiente, tivemos no final de abril o horror do ataque publicamente planejado aos índios Gamelas no Maranhão com vários feridos e até mãos decepadas.
A violência no campo é o lado bárbaro, brutal e atual do velho coronelismo que Victor Nunes Leal expôs em sua obra seminal, Coronelismo, Enxada e Voto. Os coronéis, junto com as elites paulistas, desde 1932 sabotam qualquer tentativa de desenvolvimento brasileiro.
Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a Presidência e prometeu encerrar a Era Vargas, houve a ascensão destes setores ao poder pela via democrática. Isto iniciou uma desestruturação sem precedentes do Estado Brasileiro associado ao velho projeto derrotado em 1932, interrompido em 2003 com os governos petistas e retomado em ritmo acelerado após o golpe de 2016. Um projeto que preconiza uma inserção subalterna do país na divisão internacional do trabalho sob hegemonia das elites primário-exportadoras e financeiras de São Paulo.
Os ruralistas, como hoje são chamados os coronéis, não seguem apenas a pauta tocada pela Avenida Paulista. Têm sua própria agenda, como demonstram diversos projetos tramitando no Congresso Nacional. Para ficar em alguns exemplos, temos: a MP 759 que abre as portas da legalização da grilagem; a PEC 215 que propõe transferir do Executivo para o Legislativo a atribuição da regularização de territórios indígenas e quilombolas; ou ainda, o Projeto de Lei do deputado Mauro Pereira (PMDB-RS) – que conta com o apoio do Ministro-Chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, e foi redigido numa colaboração com os ruralistas, CNA e CNI – para permitir que todas as decisões sobre o rigor do licenciamento ambiental fiquem sob a responsabilidade dos Estados, até mesmo a decisão de não ter rigor algum.
De todas as surpreendentes medidas, o mais assustador começou como uma piada nas redes sociais. Jocosamente lançaram que do jeito que o governo vinha propondo a retirada de direitos via reformas trabalhista e da previdência, daqui pouco revogariam a lei áurea. Pois bem, o projeto de lei da Reforma Trabalhista Rural (PL 6442/2016), do deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (nome oficial da bancada ruralista) permite a remuneração de qualquer espécie, ou seja, o empregador rural poderá pagar o salário por meio de moradia e alimentação e não com dinheiro, sendo parte da produção ou a concessão de terras também meios de pagamento aceitos – isto é claramente inconstitucional, mas com o atual STF, vai saber.
O projeto pretende ainda cortar elementos que protegem a saúde e segurança do trabalhador rural, inclusive estendendo a jornada de trabalho de acordo com a necessidade do patrão, abrindo a possibilidade da venda integral das férias e postergando o descanso semanal. Se aprovado, poderá se tornar facultativo banheiro, água potável e local de descanso para frentes de trabalho de “difícil acesso” e será reduzido o adicional noturno, entre outros direitos que deverão desaparecer. Há ainda, pelo menos, três propostas no Congresso Nacional para reduzir o conceito de trabalho escravo.
Não obstante, o moderno agronegócio segue fortemente dependente de subsídios governamentais e de recorrentes perdões de dívidas dos ruralistas, que segundo o noticiário o Congresso já articula. Ninguém se importa que os débitos com o governo dos proprietários rurais se aproxime de um trilhão de reais. Muitas dessas dívidas são com a previdência, como é o caso da J&F Participações, controladora da JBS, que aparece não apenas na recente operação da Polícia Federal, Carne Fraca, como também lidera a lista dos sonegadores da previdência que o governo tanto anseia reformar.
É, aliás, importante, lembrar dos impactos da reforma da previdência no campo. Com a necessidade de comprovação de tempo de contribuição, o que, na prática, extingue a aposentadoria rural, haverá um incentivo ao trabalho assalariado no campo. Deste modo, o agricultor familiar e o assentado da reforma agrária terão desincentivos a trabalhar em suas propriedades, preferindo empregos que assegurem o tempo de contribuição necessário à aposentadoria.
De forma cruel, se promove a desestruturação das cadeias ligadas à reforma agrária e à agricultura familiar em favor do agronegócio empresarial, com impacto direto na oferta de alimentos e sério risco inflacionário no médio prazo. Isso num cenário que, segundo o Censo Agropecuário do IBGE de 2006, cerca de 4,3 milhões de estabelecimentos da agricultura familiar ocupam somente 24,3% da área agricultável, produzem 70% dos alimentos consumidos no País e empregam 74,4% dos trabalhadores rurais, além de serem responsáveis por mais de 38% da receita bruta da agropecuária brasileira.
Aliás, não à toa que os ruralistas no poder retiraram uma série de questões do próximo censo agropecuário, eles entendem que esses números não podem voltar a aparecer. A influência dos coronéis na produção dos dados também retirou questões referentes ao uso de agrotóxicos. Isso revela o descaso dos senhores do atraso com a saúde do povo brasileiro.
Apesar de ser o Brasil campeão mundial do uso de veneno na comida, os ruralistas já encaminham com o governo golpista uma Medida Provisória afrouxando as regras do uso de agrotóxicos. Como se não fosse suficiente, também conseguiram que o governo proibisse a ANVISA de divulgar as informações sobre alimentos contaminados.
A cereja do bolo é o relatório Final da CPI do INCRA e da FUNAI no qual servidores públicos são indiciados por terem feito seu trabalho, lideranças de movimentos sociais, indígenas e a própria antropologia são criminalizados.
O grupo político mais influente hoje são os ruralistas, a nova face dos coronéis da República Velha. Isso torna fácil entender o crônico subdesenvolvimento brasileiro. Se para o campo progressista é evidente, até teóricos do desenvolvimento do campo conservador como Rostow entendem, como pré-condição de uma das etapas que descreve do desenvolvimento, a ruptura com as elites tradicionais. Esse enfrentamento jamais foi feito e se manifesta na renitente influência que os setores atrasados do campo mantiveram e mantêm na política brasileira.
O golpe de 2016 acentuou o poder absoluto das elites tradicionais desobrigando-as das concessões feitas não apenas no governo Lula. Elas querem todos os anéis cedidos em troca dos dedos desde a revolução de 1930. Talvez, pelo conjunto da obra, como pudemos ver, os ruralistas brasileiros mereçam uma caracterização que Norberto Bobbio impingiu aos fascistas: eles praticam a maldade. A dúvida que permanece é se estamos de volta à República Velha ou se é o tempo do Império escravocrata. Como cantaram Os Paralamas do Sucesso: “Parabéns, coronéis, vocês venceram outra vez / O Congresso continua a serviço de vocês”.
Edição: Brasil Debate