Há numa parcela da esquerda brasileira, em relação ao golpe e, mais especificamente, aos últimos eventos relacionados à delação dos donos da JBS, alguns equívocos de leitura que precisam ser corrigidos:
A ideia de que há um plano previamente traçado e fielmente executado, sem falhas, por aquela que seria a força todo-poderosa, onisciente e onipotente, do golpe: as Organizações Globo de Telecomunicações. Ora, é inegável que a Globo constitui o núcleo ideológico do golpe, tendo como satélites de menos peso, mas também relevantes, a Veja, a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo. O grau de oligopolização do setor de comunicação e a rede de subsidiárias das Organizações Globo são a chave de seu poder. Isso é ponto pacífico na análise. Contudo, não se pode hiperdimensionar esse poderio. As Organizações Globo também devem reagir às movimentações dos demais atores políticos, tanto inimigos quanto adversários, e os próprios aliados.
Penso que o mais sensato não seria supor que os representantes da Globo sentaram com os irmãos Batista da JBS e planejaram tudo desde o início. No meu entender, os donos da JBS já vinham sofrendo um cerco, respondendo a um processo, e, para terem cartas na manga, resolveram gravar a conversa com o presidente golpista. Atingida depois pela Operação Carne Fraca, disparada por um delegado da Polícia Federal em Curitiba, reagiu e apresentou a gravação à Procuradoria Geral da República.
O Procurador-Geral Rodrigo Janot vinha em rota de colisão com Michel Temer pela tentativa deste último de exercer ato discricionário inerente ao exercício da presidência de indicar o próximo Procurador Geral, que deverá assumir no segundo semestre. Insatisfeito com a inclinação de Temer em não indicar o mais votado em lista tríplice eleita pelo Ministério Público Federal, ou seja, em não respeitar a autonomia corporativa do MPF, Janot recebeu o material e articulou uma operação sigilosa. Nela, conseguiu implicar o seu desafeto de longa data, o tucano Aécio Neves, e ainda sobrou para o Ministro do STF Gilmar Mendes, com quem nas últimas semanas vem travando uma batalha pessoal (lembrar das acusações recíprocas de parentes de ambos que estariam trabalhando em escritórios de advocacia que prestam serviço a indiciados na Lava-Jato). A bomba estava chiando e deve ter chegado aos ouvidos de outros jogadores no campo político.
Buscando se antecipar ao óbvio desastre que se desenhava no horizonte, que inviabilizaria de vez o governo Temer e a aprovação das propostas de reforma da previdência e trabalhista, o grande empresariado, junto com o representante das Organizações Globo e a presidente do STF Carmen Lúcia, urdem um plano para se antecipar aos fatos. A bomba estourou no dia 17 e o resto nós temos acompanhado...
Ou seja, as Organizações Globo não é esse deus (ou diabo) onisciente que manipula unilateralmente a cena política. É verdade que ela joga sempre com cartas na manga. Para cada plano A, tem sempre um plano B ou C. Exemplo disso é a possibilidade de cassação da chapa Dilma-Temer, que sempre esteve guardada como saída caso as coisas derretessem com Temer em virtude de sua baixa popularidade. Mas nada levava a crer até semanas atrás que a Globo apostaria em cortar a cabeça de Temer, afinal, havia relativa estabilidade junto ao congresso para a aprovação das reformas.
O que mudou? Novos atores se movimentaram (inclusive por interesses particulares mesquinhos) e a Globo teve de fazer o mesmo. Que evidências nos permitem dizer isso? O fato de que não foi a República de Curitiba quem teve protagonismo nesse processo (pelo contrário, Sérgio Moro buscou a todo custo blindar Temer não autorizando as perguntas de Eduardo Cunha dirigidas a ele), mas a PGR. Essa divisão no seio dos aparelhos de Justiça também se repete nos grandes meios de comunicação, traduzindo que há uma autonomia relativa dos aparelhos do Estado no plano político e que não há um bloco monolítico em torno de uma saída para o impasse gerado pela entrada em cena da JBS.
A idéia de que, se as Organizações Globo defendem tal ou qual posição, automática e necessariamente, devemos nos posicionar no campo oposto. Ora, isso é verdade para quase todas as situações, mas jamais deveria ser tomada como princípio. Leonel Brizola denunciava acertadamente as Organizações Globo como porta-voz do que há de mais conservador e submisso ao Imperialismo, mas isso não pode se converter em dogma. Quando isso ocorre, a esquerda entra em parafuso: quem não se lembra da crise de alguns com a posição da Globo em oposição a Crivella (ligado à concorrente Rede Record)em 2016, beneficiando indiretamente ao candidato psolista Marcelo Freixo?
E se tem uma coisa que podemos aprender com a Globo é isto: ela tem claro seu objetivo estratégico e não tem principismo no plano tático. Diferentemente de parte da esquerda, que aplica à tática uma rigidez de princípios que só deveria existir no plano estratégico, o que impede uma política de alianças flexível. A Globo quer agora o “Fora Temer” para posteriormente eleger indiretamente alguém de sua confiança, com força para fazer passar as reformas regressivas.
Para tanto, ela abre brechas na sua programação para atrair o campo progressista que, neste momento, compartilha do mesmo objetivo tático imediato. Neste exato momento, dá espaço para as mobilizações convocadas pela esquerda. Nada mais explícito do que as mensagens de Noblat em sua conta pessoal no Twitter , em que afirma literalmente: “Esquerda perplexa com a posição de O Globo, que também é a dela, em relação a Temer”; “Esquerda e O Globo só discordam quanto ao desfecho da crise q poderá levar Temer a sair: ela quer diretas, já; o jornal, o q manda a lei.” Sem falso pudor, afinal o nome do jogo é Política. Atingido o objetivo tático do Fora Temer, a "aliança" (muitas aspas aqui) se desfaz. É uma manobra ousadíssima, em que a Globo pode ter errado (sim, para espanto de alguns a Globo não acerta sempre), o que só os próximos desdobramentos nos permitirão avaliar. No momento ela confia que tem hegemonia sobre as massas, e de fato tem. Depende de nós ganhar as massas para as “Diretas Já”.
Lembremos do caso dos bolcheviques quando da Revolução de Fevereiro de 1917, que derrubou o Tsarismo em meio a I Guerra Mundial. Para viabilizar o retorno à Rússia dos dirigentes bolcheviques exilados, foi feito um “compromisso” ou uma “aliança” com a Alemanha, a qual estava em guerra contra Inglaterra, França e Rússia. Os alemães tinham interesse no retorno dos bolcheviques (entre eles Lênin) pois estes defendiam a paz imediata, o que os beneficiaria na medida em que um dos integrantes da aliança militar inimiga poderia se retirar da guerra.
Os bolcheviques sabiam que o governo provisório manteria a guerra imperialista pela profunda associação com as burguesias inglesa e francesa e não poderia cumprir a promessa de paz. Levantando a consigna de Pão, Paz e Terra, poderiam ganhar as massas para a tomada revolucionária do poder pelo proletariado no elo frágil do capitalismo, que era a Rússia, na expectativa de que a Revolução Mundial se alastrasse e triunfasse também na Alemanha. Eis os objetivos estratégicos de cada interessado na aliança, completamente díspares. A aliança tática se deu num dado momento em que ambos tinham interesse no objetivo tático imediato de derrotar o governo provisório russo (por razões e caminhos completamente diferentes).
Isso não impediu que os bolcheviques depois levassem à frente uma conseqüente política de apoio à Revolução Alemã liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht (desgraçadamente derrotada em 1919) ou que a burguesia alemã levasse adiante as agressões militares contra o Estado Soviético apoiando o exército branco durante a guerra civil. Ora, certamente os alemães não contavam que os bolcheviques seriam triunfantes e naquele exato momento a “aliança” parecia pender para o lado alemão. Foi a confiança dos bolcheviques no proletariado russo, sua firmeza ideológica no plano estratégico e a identificação de que havia uma janela histórica aberta numa conjuntura acelerada que os fez surpreender o mundo.
Ou seja, numa aliança o fundamental, é saber para onde se quer ir. "Se um homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável", dizia Sêneca, pensador romano. A Globo sabe bem o porto a que deseja chegar. E essa parte da esquerda? Vai abandonar a consigna do “Fora Temer” e, por conseguinte, das “Diretas Já”, para apostar em “Fora Meirelles” ou qualquer outra coisa só porque a Globo agora veio junto? É evidente que a palavra de ordem “Fora Temer” por si só já não basta para dar conta do momento atual.
As palavras de ordem não são eternas, também nos ensina Lênin em “A Propósito das Palavras de Ordem” (julho de 1917). A qualidade que ela precisa agregar é a associação com as Diretas Já. Mas não nos iludamos de que haverá Diretas sem Temer cair, ainda que caia derrubado pela Globo. Interessa-nos que o impasse no campo golpista se arraste, que Temer sangre e sustente o impasse (cedo ou tarde ele vai cair), mas por coerência é preciso manter diante das massas o “Fora Temer”, fazendo as “Diretas Já” ganhar a mesma capilaridade. É preciso que estejamos seguros de nossos objetivos estratégicos, confiarmos no povo brasileiro e aproveitarmos essa fissura no exército inimigo para rompermos o cerco. A História está em aberto. Seguremos firme no leme.
*Henrique Gonçalves Dantas de Medeiros é médico, militante da Consulta Popular e integrante da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares.
Edição: Luiz Felipe Albuquerque