Na segunda parte da sua entrevista sobre o atual cenário político latino-americano concedida em El Salvador, onde reside, o cientista político cubano Roberto Regalado afirmou que o governo progressista da Venezuela é alvo da mesma ofensiva política que, levada adiante pelos EUA e pelas oligarquias locais, resultou na troca de presidentes de esquerda por personagens direitistas no Brasil, na Argentina e em outros países. Segundo ele, o presidente Nicolás Maduro enfrenta uma situação extrema, em que o desafio é permanecer no governo e reconquistar a hegemonia popular. “Os nossos companheiros precisam se defender, seja de que jeito for”, disse, em referência às posições do governo da Venezuela e à convocação de uma Assembleia Constituinte naquele país.
Leia a primeira parte da entrevista aqui:
É preciso abrir um novo ciclo revolucionário na América Latina, diz pensador cubano
Como fundador do Foro de São Paulo e representante do Partido Comunista Cubano nos 25 anos de existência dessa articulação política, Regalado é um nome muito respeitado nos meios de esquerda da região. Isso o credencia a criticar o que, na sua opinião, foi um grave erro dos governos progressistas: o de apostar tudo na via institucional, deixando de lado o esforço para conquistar hegemonia ideológica na sociedade. “O poder formal acabou virando a história da Cinderela”, compara. “Quando chega a meia-noite, a carruagem se transforma em abóbora e os cavalos em ratos.”
Ou seja: o imperialismo estadunidense e as burguesias dos diversos países bloqueiam o alcance das mudanças sociais e em seguida se lançam à ofensiva para expulsar a esquerda dos governos. Regalado (que tem 63 anos e não 69, como afirmamos erradamente na primeira parte da entrevista) defende que, apesar disso, é importante que as forças de esquerda continuem participando dos processos eleitorais, mas agora com uma nova estratégia, que “já não é progressista e sim revolucionária, no sentido de que é preciso revolucionar a sociedade”. Para ele, “se o nosso único objetivo é voltar a ganhar eleições, então nós estamos mal”.
BdF: Como você encara a atual crise política na Venezuela?
RR: Entre os processos políticos recentes na América Latina, sem dúvida o que mais avançou em termos de transformação política e social foi o da Venezuela. Lá se juntaram vários fatores importantes: o potencial de sua enorme economia petroleira, a liderança excepcional de Hugo Chávez, uma política social avançada, que se tornou realidade por meio das missões. E, no entanto, vemos que também lá, assim como nos demais países latino-americanos com governos progressistas, permaneceu um déficit de construção de hegemonia. Sim, na Venezuela houve uma grande transformação no que se refere às estruturas estatais de poder, mas ainda assim houve um déficit na construção de hegemonia popular. Abriram-se brechas que a direita agora está conseguindo aproveitar.
Parto da premissa de que ninguém ganha uma guerra apenas porque seja muito forte, pois é preciso considerar também as debilidades do inimigo. Os erros das forças de esquerda na América Latina abrem brechas que o outro lado está tratando de aproveitar, assim como nós, da nossa parte, também sempre soubemos tirar proveito dos erros dos nossos inimigos.
Qual o desafio do governo de Nicolás Maduro perante a ofensiva direitista?
Na Venezuela está em curso, de forma intensa, a estratégia imperialista de expulsar a esquerda dos espaços de poder que conseguiu ocupar. Diante disso, os nossos companheiros precisam se defender, seja de que jeito for. Precisam rearticular seus espaços de poder e a partir disso reverter a correlação de forças.
É preciso levar em conta que quando a direita ganhou as eleições para a Assembleia Nacional (em dezembro de 2015), aquele fato esteve muito longe de ser um triunfo arrasador. O que houve foi a presença muito forte do que eu chamo de abstenções de castigo. Precisamos ter em mente que em nenhuma das eleições em que a esquerda venceu, sobretudo nas primeiras, essa vitória aconteceu apenas graças às suas próprias forças. Isso ocorreu também pelas debilidades do inimigo. E um voto importante que viabilizou o triunfo de (Hugo) Chávez, de Lula, de (Néstor e Cristina) Kirchner, de Evo (Morales), de (Rafael) Correa, foi o voto de castigo contra os governos neoliberais. É claro que os votos nossos, populares, foram decisivos. Mas também foram decisivos os votos de castigo contra os neoliberais.
E agora, o que o imperialismo e as oligarquias estão tratando de fazer? Querem que as pessoas se esqueçam, porque a memória é curta, do que foram os governos neoliberais e suas consequências, difamando-nos. Mas eles também se aproveitam dos nossos erros para fomentar contra nós aquele mesmo voto de castigo e conquistar aquele eleitor que nunca foi nosso, mas que em algum momento se voltou contra os governos neoliberais e hoje pode se colocar perfeitamente contra nós. A direita busca potencializar esse voto e busca também a abstenção de castigo, ou seja, influenciar aquele eleitor nosso que é incapaz de votar em (Mauricio) Macri, que jamais votaria na direita, mas se sente frustrado com o governo de esquerda e por isso prefere ficar em casa no dia da eleição.
O que afetou fortemente nossos companheiros venezuelanos e os levou a perder o controle do Legislativo foi, em parte, o voto de castigo, que se voltou contra eles. Mas o fator principal foi a abstenção de castigo, ou seja, sua própria gente que não saiu de casa para votar. Isso reflete o problema sobre o qual estamos falando, o da instalação de um poder formal sem a construção da hegemonia. Isso é que é preciso reverter. O que posso dizer é que em situações extremas, como a que estamos vivendo na Venezuela, é preciso acima de tudo tratar de não cair, de manter o governo nas mãos da esquerda. Essa é uma situação tão extrema como aquela que o Brasil viveu recentemente. Fizeram um julgamento político e destituíram a presidenta. Por que deixamos que a situação chegasse a esse ponto?
Sim, o que você considera que aconteceu para que a situação da esquerda na América Latina se tornasse tão desfavorável?
É preciso fazer uma análise muito profunda sobre tudo isso. Eu me lembro da euforia por ocasião da primeira vitória de Lula (em 2002), as pessoas saindo às ruas com suas bandeiras, me lembro da Revolução Bolivariana (a partir de 1998), e me pergunto: por que nós perdemos a iniciativa? Vale a pena recordar que, naquele período, os triunfos da esquerda estavam acompanhados da projeção de uma nova imagem. A linguagem do PT não era uma reprodução dos códigos da esquerda tradicional. Era algo novo. Também me lembro de um momento em que, no auge do governo de Chávez, veio até mim um companheiro e me disse: ele acertou naquele ponto em que nós falhamos. Porque nós, ao defender a revolução, falávamos em Rosa Luxemburgo ou no que Lênin disse, que Marx ou Engels disseram isso ou aquilo, e a maioria das pessoas não nos entendia. Chávez contava histórias da velha luta contra os espanhóis, trazia à memória peripécias da história popular venezuelana, com heróis locais. As pessoas gostavam, entendiam.
Com o tempo, nós fomos nos institucionalizando, voltamos a utilizar certos códigos de linguagem que para a nossa militância funcionam, mas, quando você vai conversar com as pessoas comuns, já não fazem sentido. Então nós temos de ser capazes, outra vez, de falar de tal forma que qualquer um entenda. E eu mesmo me considero parte dos confundidos. Eu fiz parte dos que acreditaram ser possível fazer uma transformação política profunda com uma mudança das Constituições, se não como uma garantia absoluta, ao menos como o pilar fundamental.
Percebo agora que para saber qual é o pilar fundamental é preciso reler os clássicos, reler Gramsci. E lá está que o pilar fundamental é a hegemonia. Nosso erro foi deixar de lado a construção da hegemonia. Então eu quero deixar claro o meu respaldo total à Revolução Bolivariana, eu desejo que ela se defenda da maneira pela qual tenha de se defender. E a grande lição para os venezuelanos e para todos nós é que não deveriam ter esperado tanto para dar prioridade a esse esforço de conquista da hegemonia que é a proposta da Constituinte.
Que outras lições nós podemos extrair da crise venezuelana?
Nós passamos pela experiência do fim do socialismo real e, ainda assim, persistimos numa atitude de achar que, apesar de erros e problemas, no fundamental “tudo está bem”. Dessa maneira vamos deixando de lado os problemas, simplesmente não falamos sobre eles. Alguém diz: “Temos um companheiro que não está fazendo as coisas direito.” Ou que temos um método demasiado vertical. Ou que não estamos sendo consequentes perante as demandas sociais. E aí nós dizemos: “Sim, mas no fundamental tudo está bem.” Então enfiamos os assuntos desagradáveis debaixo do tapete.
Isso, entre muitas outras coisas, é o que levou os processos revolucionários a fecharem os olhos e dizerem “no fundamental, tudo está bem”. Assim foi se acumulando um montão de problemas que, se por si mesmos já eram graves, eram aproveitados por uma maquinaria inimiga que sempre buscou detectá-los e passar a fatura para nós. Isso é terrível. Outro problema é o da unidade dentro da diversidade. Muitos de nós temos uma visão da luta de classes como um processo monolítico, em que todos os trabalhadores pensam da mesma forma, mas não é assim. Existem questões étnicas, culturais, e é preciso obter a unidade dentro dessa diversidade, e também aceitar a diversidade dentro da unidade.
Você acredita que ainda há espaço para uma mudança progressista na América Latina dentro do capitalismo?
Eu creio que esse período em que o PT ganhou quatro eleições, o kirchnerismo ganhou três vezes, esse período tinha um horizonte de tempo limitado. Não era possível continuar eternamente com as mesmas regras do jogo, com este Senado, esta Câmara de Deputados, estes governadores, este sistema judiciário, estes partidos políticos, estes esquemas de corrupção. Isso não podia continuar eternamente. Na minha opinião, é inconcebível acreditar que os partidos de esquerda conseguiriam governar e executar um projeto transformador sem modificar as regras do jogo. Não faz sentido imaginar que um governo de esquerda possa passar dois mandatos distribuindo riquezas e democratizando o Estado, e aí perde a eleição e nos dois mandatos seguintes o neoliberalismo assume e volta a concentrar a riqueza e o poder, e aí a esquerda regressa e começa tudo de novo.
A própria direita está demonstrando que isso é impossível. Ela está deixando claro que não está disposta a permitir a alternância de governo. Vão tratar de prender Cristina Kirchner. E todas as figuras do que foi a Frente para a Vitória (coligação política de esquerda e centro-esquerda na Argentina, liderada pelo casal Kirchner) que tenham alguma capacidade de liderança também irão para a prisão, e é exatamente isso que estão fazendo no Brasil e em toda parte. É disso que se trata. Mesmo que a gente queira a alternância, mesmo que a gente dê à direita o benefício da dúvida, o sistema não vai permitir que isso aconteça.
A esquerda está preparada para superar os limites da democracia liberal?
Essa é a pergunta, se nós estamos preparados para dar esse passo. Eu, da minha parte, já cheguei à conclusão de que aquele ciclo político em que nós chegávamos ao governo e a partir daí fazíamos mais ou fazíamos menos, esse ciclo já se encerrou. É claro que onde somos governo vamos tratar de ficar até que nos expulsem, e onde nos tiraram do governo vamos tratar de regressar. Mas aí tem de ser com um projeto de transformação, com um horizonte maior. Vamos imaginar que há uma nova eleição no Brasil e a esquerda ganha outra vez. Com este mesmo Senado? Com esta mesma Câmara? Com este mesmo sistema judiciário?
Qual foi o principal erro que a esquerda cometeu no período em que governou a maioria dos países da América do Sul?
Nosso erro foi o de construir poder formal sem exercer a hegemonia. O poder formal acabou virando a história da Cinderela. Quando chega a meia-noite, a carruagem se transforma em abóbora e os cavalos em ratos. Estamos preparados para evitar que isso aconteça de novo? Eu creio que não. Estamos preparados, isto sim, para lançar novas candidaturas de esquerda, existe organização suficiente para isso. O desafio é construir uma nova correlação de forças políticas e sociais, uma hegemonia popular, para que não seja uma eleição a mais e sim que ocorra um processo profundo de transformação. É uma tarefa muito difícil, muito complexa, mas, para que isso se realize, é importante que desde já se estabeleça essa nova visão estratégica.
Então o regresso da esquerda ao governo por meio das eleições já não deve ser prioritário da forma como era antes?
Em todo esse ciclo de governos progressistas, a eleição presidencial sempre foi encarada como uma vitória em si mesma. Inclusive a partir desse triunfo já se começavam a fazer concessões, velhas promessas e velhas ideias eram logo esquecidas, enquanto a esquerda passava a apostar tudo na institucionalidade. Esse tempo acabou. Acredito que devemos continuar lutando eleitoralmente, é claro que sim. Não vejo a curto ou médio prazo a possibilidade de que o caminho revolucionário assuma a forma insurrecional. Talvez isso se coloque em algum momento menos distante, caso as condições de vida continuem se agravando, tanto em escala mundial quanto aqui mesmo, na nossa região. Mas obviamente isso não está colocado no contexto atual.
Ainda estamos assistindo à resolução negociada do conflito mais antigo do continente, que é o colombiano. Estamos vendo as dificuldades que o processo de paz está enfrentando. A direita não se limita a arremeter contra os governos de esquerda, ela também está arremetendo contra o processo de paz na Colômbia. Isso está claro. Mas também está claro que a nossa vitória não pode se resumir ao fato de ganhar a eleição. Se esse é o nosso único objetivo, então nós estamos mal. Se estamos pensando em ganhar uma eleição, isso deve ser encarado como um elemento importante de reposicionamento estratégico, de abertura de um ciclo que já não é mais progressista, e sim revolucionário, no sentido de que é preciso revolucionar a sociedade.
Então o que deve mudar é a nossa postura em relação aos processos eleitorais e às instituições?
Sim, porque a eleição pela eleição não vai dar resultado. Eleição acompanhada de um projeto transformador, isso sim pode dar resultado. Mas esse não é um desafio que se resolva na base do voluntarismo. O ponto de partida é reconquistar a confiança do povo, recuperar o seu apoio e a nossa capacidade de mobilizar essa parcela da população que se deixou confundir pelo neoliberalismo. Porque realmente... Votar em Macri? Os argentinos por acaso se esqueceram do que foi o governo de Carlos Menem? Esqueceram o breve período de Fernando de la Rúa? Esqueceram o “que se vayan todos”?
Como você a avalia a chegada de Donald Trump à Casa Branca? Acredita que a atitude crítica que ele tem demonstrado em relação aos acordos de livre-comércio cria oportunidades para a América Latina recuperar uma posição mais autônoma nas suas relações econômicas?
Na próxima reunião do Foro de São Paulo (em julho deste ano) vamos fazer uma análise profunda da eleição do Trump. O imperialismo enfrenta um problema de fundo: a sociedade estadunidense consome muito mais do que produz. Nenhum presidente dos EUA tem coragem de dizer isso à população, porque se suicidaria politicamente. Por isso, de tempos em tempos, regressa à cena pública estadunidense o discurso da “América grande”.
Os EUA se depararam com um efeito secundário da política de globalização que eles impuseram ao mundo inteiro em favor do próprio interesse estadunidense. É o fato de que os custos de produção em outros países são muito mais baixos do que nos EUA. Para uma empresa de produtos eletrodomésticos, como a Westinghouse ou a General Eletric, sai muito mais barato produzir na China e depois transportar para os EUA, ou fazer a mesma coisa no México e em outros lugares.
Diante disso, Trump está propondo a adoção de uma política comercial unilateralista pela qual os EUA vão continuar aproveitando todas as vantagens da globalização neoliberal que os beneficiam, mas, naquelas áreas onde eles percebem que estão sendo prejudicados, nessas eles vão fazer mudanças. Trump está adotando uma política de protecionismo seletivo. Os EUA vão proteger sua economia interna, sem deixar de depredar os nossos países.
(*) Igor Fuser é jornalista, cientista político com doutorado na USP e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC)
Edição: Brasil de Fato