“Por que tanto niño migrante?” , pergunta, gritando, a salvadorenha Irma Deras. Avó de três meninos, um deles foi assassinado a poucos metros de sua casa por um dos maras – nome dado às gangues em Honduras, El Salvador e Guatemala. E é pelos assassinatos, sequestros, torturas e estupros cometidos por eles que, nos últimos cinco anos, 175 mil pessoas – maioria mulheres e crianças – fugiram do chamado Triângulo Norte da América Central (NTCA, sigla em inglês) para países como México e Estados Unidos.
Esse número, segundo as Nações Unidas, aumentou quase dez vezes nos últimos cinco anos. “O número de pessoas fugindo da violência nesses países cresceu a níveis sem precedentes”, disse ao MigraMundo Francesca Fontanini, oficial do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) no México. “Essa é uma situação de refúgio, não apenas um fenômeno migratório”, acrescentou.
“Bang, bang, bang. E eu sabia que era o meu menino”, conta Deras empunhando os braços para cima. Com o corpo do neto nos braços, ela gritou aos traficantes: “Deus vai julgar vocês pelo que fizeram ao meu niño”. O niño de dona Deras não aceitou fazer parte dos maras, por isso o mataram.
Os alvos dessas gangues são principalmente crianças e mulheres: crianças porque não podem ser presas por tráfico de drogas; e mulheres para serem suas “namoradas” – uma vez capturadas, elas são violentadas e mortas. De acordo com dados do ACNUR, foram 66 mil crianças desacompanhadas a requerer asilo nos Estados Unidos em 2014. No México, em um ano (2015 para 2016) o número de pedidos de asilo por parte crianças sem os pais aumentou 65% – já em três, de 2013 a 2016, o aumento foi de 416%. De acordo com a pesquisa Crianças em Fuga (Children on the Run, em inglês), feita pelo ACNUR em 2014, 48.6% das crianças requerentes de refúgio no México alegaram intimidação, ameaças e abuso sexual como causas de terem deixado seu país.
Maria estala os dedos ao falar de sua irmã, Isabel, que desapareceu quando Maria tinha 6 anos – e nunca mais a encontraram. “Temos certeza de que foram os maras”, diz a menina, que fugiu de El Salvador para o México com sua família. “A minha mãe estava tão triste pela Isabel que Melody nasceu prematura, ela tinha o tamanho de um pássaro e nós tínhamos medo que morresse.” A mãe de Maria, segundo ela, “nunca desistiu de Isabel”. “A minha mãe nunca desistiu de Isabel. Ela procurou por ela durante três anos, mas nós sabíamos que ela nunca voltaria”, disse a menina a uma das equipes do ACNUR.
Além de terem filhos e filhas violentados, perseguidos, torturados ou capturados, os pais se veem obrigados a pagar os altíssimos “impostos de guerra”. Em Honduras, a vizinha de Priscila não pagou. Dias depois foi encontrada morta junto com seus cinco filhos. De acordo com o Escritório da ONU para Crimes e Drogas, o percentual de assassinatos em Honduras é o maior do mundo, com 90.4 homicídios para cada 100 mil.
“De uma escala de 1 a 10, qual o nível da catástrofe humana nesses países?”, perguntou a reportagem à Francesca Fontanini, do ACNUR no México. “Dez”, ela responde. Mas apesar do nível máximo de catástrofe, com dezenas de milhares de mulheres e crianças em fuga e em perigo de vida, Francesca diz que “tal situação não conseguiu atrair tanta atenção quanto a dada à crise de refugiados na Europa”. Em nota, a ONU chama a situação na América Central de “crise silenciosa e ignorada.”
“Fechar fronteiras e impor restrições apenas complicam mais a situação e produzem rotas ainda mais perigosas para esses migrantes. O risco de serem sequestrados, traficados, estuprados ou mortos aumenta”, complementa Francesca.
Cooperação internacional
A brutalidade da violência e dos números de refugiados vindos dos países do NCTA chegaram aos ouvidos do ex-presidente norte-americano, Barack Obama. Em junho de 2014, ele foi à televisão chamar a atenção dos americanos para a “situação de crise humanitária” na região.
Em 4 de Agosto de 2015, foi assinado o Acordo de São José, onde os países-destino desses migrantes, tais como Canadá, EUA, México, Belize, Costa Rica e Panamá, se comprometiam a combater a violência nos países da NTCA, a melhorar seus programas de asilo e refúgio tanto nos países de trânsito como nos de destino e a promover cooperação regional.
Mas, em 2017, o cenário mudou após a eleição de Donald Trump nos EUA. De acordo com o jornal The Guardian, o governo Trump cortou pela metade o número de refugiados a serem aceitos por ano pelos EUA, de 110 mil para 50 mil. “Entrar nos EUA como refugiado é o meio mais difícil de entrar nesse país – o processo pode levar até 36 meses e já incluí uma passagem para checagem por 12 a 15 agências de segurança, incluindo Departamento de Segurança Interna, Departamento de Defesa e CIA”, diz Jennifer Sime, diretora do programa norte-americano do Comitê Internacional de Socorro, que ajuda no reassentamento de refugiados.
Com uma mudança de cenário, o México passou a não ser mais país de trânsito, mas sim de destino. Segundo dados do ACNUR, o número de crianças e famílias em busca de proteção internacional no México já vinha crescendo exponencialmente. Entre 2011 e 2016, o número de requerentes de refúgio e asilo cresceu 1050%. “O ACNUR prevê que mais 20 mil pessoas pedirão asilo no México, com base no percentual de 8,3% de aumento que temos por mês no número de requerentes de asilo que temos desde janeiro de 2015.”, aponta Francesca.
Coiotes, prisões e deportações
Depois de terem fugido de violências de morte, esses refugiados ainda precisam ter dinheiro para pagar os coiotes e sobreviver à travessia de fronteiras cada vez mais fechadas. Ivan tinha “muitos filhos”, três foram assassinados pelo MS e o Mara 19 (gangues locais). “Você quer ouvir a minha história? Infelizmente, é uma das boas”, diz ele. O seu filho mais velho foi assassinado com dez tiros ao sair às 06h30 do trabalho depois do turno da noite em uma fábrica de papel. O outro filho recebeu uma ligação ao chegar em casa, pediram que ele saísse de casa se não todos seriam mortos. Ele saiu e foi assassinado. “Ele disse que voltava logo”, disse Ivan, arrasado. O outro filho de Ivan foi atropelado pelos maras. Os três foram mortos depois de recusarem ingressar nas gangues locais.
Depois disso, ele e a família deixaram tudo o que tinham – “para que não matassem nossos outros filhos” – e enfrentaram outra tragédia, a travessia até o México. No caminho para a Cidade do México, eles foram roubados e só conseguiram chegar até Tapachula, cidade fronteiriça da Guatemala com o México. Ao chegarem ao México, foram presos, ele e a família toda. “O período em que ficamos detidos foi uma tortura”, conta Ivan. “Nós, que estávamos fugindo dos maras, agora estávamos num território onde eles mais poderiam estar, na prisão”.
As situações de prisões de refugiados atingiu a casa das centenas de milhares. De acordo com o ACNUR, 214 mil refugiados foram presos no México e EUA e mandados de volta em 2016. No mesmo ano, 34 mil crianças desacompanhadas foram deportadas. “Depois de sobreviverem a situações traumáticas e a viagens perigosas, ao finalmente chegar a um país seguro, os refugiados precisam encontrar um ambiente acolhedor onde os seus direitos são respeitados e onde ele terá ajuda em suas necessidades básicas”, defende Fontanini, complementando. “Todos os governos da região devem manter suas fronteiras abertas para assegurar a essas pessoas um acesso seguro.”
Ivan e sua família foram encontrados pelo ACNUR e hoje vivem em um quarto de hotel no México, onde aguardam a resposta a seus pedidos de proteção internacional.
Maria, que estala os dedos ao lembrar de sua irmã Isabel desaparecida, hoje vive também no México e frequenta um centro de apoio à criança na região. Ela gosta de desenhar no caderno que trouxe de El Salvador – um dos poucos pertences que salvou em sua fuga desesperada. A menina, com 14 anos agora, sonha em viver no Japão, se formar em desenho gráfico e ser arquiteta. Sobre os assuntos mais sérios, Maria diz querer ter um aquário e colecionar caranguejos azuis.
Edição: MigraMundo