A nova Lei da Migração, sancionada em maio deste ano, traz o desafio de pensar uma política para proteger migrantes, refugiados e apátridas que escolhem o Brasil como novo lar, permanente ou temporário. Em todo o mundo, 65,5 milhões de pessoas fogem de situações de guerra, violência, perseguição e crises econômicas em seus locais de origem. Essa legislação substitui o Estatuto do Estrangeiro, de 1980, e flexibiliza a entrada e saída de pessoas no país.
Apesar dos 20 vetos de Michel Temer (PMDB) ao conteúdo geral da proposta, a nova lei representa um avanço no sentido de descriminalizar a presença de imigrantes no território brasileiro. É o que avaliam os especialistas participantes da Audiência Pública realizada na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) na manhã desta segunda-feira (26). O evento debateu a nova Lei da Migração com o objetivo de esclarecer o novo cenário legal para a migração e elencar os papéis da sociedade civil nesse momento. A iniciativa da audiência partiu do Conselho Estadual dos Direitos dos Refugiados, Migrantes e Apátridas do Paraná (CERMA/PR), e da realização da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alep, presidida pelo deputado estadual Tadeu Veneri (PT).
O texto que chegou ao executivo sofreu vetos importantes, mas avançou em conceitos que protegem crianças, migrantes, refugiados e apátridas da vulnerabilidade. Segundo o doutor em Direito Internacional pela Universidade de Paris X e consultor legislativo do Senado Federal, Tarciso Dal Maso Jardim, a lei é fruto de uma intensa luta coletiva no congresso. “É até difícil explicar como conseguimos avançar com uma legislação mais progressista num momento político como esse”, afirmou.
A professora do departamento de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Tatyana Friedrich, sinaliza que as medidas legais em vigor trazem grandes conquistas, mas também grandes desafios. “Temos muito a regulamentar. É preciso recuperar os avanços que perdemos com os vetos e atuar na mudança da consciência dos brasileiros quanto ao acolhimento desses imigrantes”, explica.
Adaptação à Constituição
Segundo Tarciso Dal Maso Jardim , o novo projeto retira quase todos os tipos penais de criminalização, exceto o do tipo coiote, que designa quem entra ilegalmente ao país. “Sob a nova lei, não se pode mais repatriar categorias de vulnerabilidade, como crianças e adolescentes desacompanhados, por exemplo”, explica. “O projeto luta contra condições políticas e limitações institucionais colocadas pelo antigo Estatuto do Estrangeiro”.
Esse estatuto foi substituído por, dentre outros motivos, definir pontos incompatíveis com a Constituição de 1988. “A Constituição garante o direito universal à saúde, assistência social, educação e manifestação política, dentre outros. Até então, pessoas sem nacionalidade brasileira tinham dificuldade para acessar esses direitos no país, quando sobressaía o critério da nacionalidade, que não pode suprimir garantias universais”, situa a coordenadora do departamento de Proteção do Centro de Referência para Refugiados da Caritas de São Paulo, Larissa Leite.
“O estatuto do estrangeiro também não permitia cumprir acordos internacionais, como a proibição de ‘devolver’ um estrangeiro a um local de onde fugiu ou onde sofre risco de vida”, complementa.
A representante da Caritas explica que a xenofobia é incompatível com condição de deslocamento forçado em um mundo globalizado. “Nós tiramos proveito de mercadorias que cruzam fronteiras e de trocas internacionais. Mas também queremos que esse processo acompanhe as migrações humanas e acolha os mais explorados pela globalização”, diz.
Somos todos migrantes
O diretor de relações institucionais da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Rabah, ressalta o problema da islamofobia em todo o mundo. “A ONU aponta um número maior que seis milhões de palestinos refugiados em uma população de quase 14 milhões espalhados em várias regiões do planeta. Essa proporção de refugados é incompatível em qualquer regra de três”, contextualiza Rabah.
Para ele, a islamofobia foi escolhida como motivo para que as correntes conservadoras atacassem mais fortemente a legislação. Agora, a nova lei é capaz de trazer um corpo sólido, íntegro e civilizatório para circunstâncias difíceis que os migrantes enfrentavam, o que impedia que vivessem uma vida normal no país.
“Nessa mesa somos todos migrantes. Todas as nossas famílias vieram de fora para o Brasil. Mesmo assim, muitas pessoas se aproveitam da situação irregular dos imigrantes e da precariedade de suas condições para explorá-los”, avaliou na audiência Ualid Rabah, que é filho de migrantes palestinos.
“As novas políticas públicas podem promover uma maior inclusão social. Conheço um palestino que tem doutorado e teme não obter o reconhecimento e trabalho na sua área. Ele viria para contribuir cientificamente, e na Palestina ele não pode ficar”, define.
A comunicadora Ana Paula Dorig, da Organização de Direitos Humanos 'O planeta é um só', reconhece que a xenofobia e as limitações do discurso social podem desanimar o cidadão que quer ajudar, mas não sabe bem como contribuir. “Quem pode atuar nacionalmente, atua. Se não, vai pro estado, município, para a rua de casa. Pode haver um haitiano ao lado que precisa de um documento! A cidadania não pode ficar só nas mãos de entidades, é tarefa de cada indivíduo nesse planeta”, destaca.
Hospitalidade é ato poético
Sob a coordenação da professora Tatyana Friedrich, a UFPR promove o projeto de extensão “Refúgio, migrações e hospitalidade”, por meio do qual a Universidade busca cumprir o papel social de atender à comunidade. No projeto, 60 estudantes de letras, 45 de direito, 60 de ciência da computação e seis de psicologia, todos voluntários, prestam atendimento aos refugiados em Curitiba. “Nosso principal objetivo é resgatar a alteridade, ou seja, a capacidade de acolher a diferença do outro, que também nos constitui enquanto seres humanos”, define a professora.
Tatyane defende que todo ato de hospitalidade é, antes de tudo, uma poética. “Ser hospitaleiro não deve depender de critérios como o nome, o país de origem ou os dados do RG. É uma atitude com o ser humano. O migrante vive entre a saudade e a esperança, e nós podemos concretizar essa esperança para que ela seja maior do que a saudade”, disse. E finalizou sua fala na audiência com versos da poetisa paranaense Helena Kolody:
Arfa, no porto, o mar.
Soluça dentro dalma do emigrante
o longo apito do navio em despedida.
Treme, na lágrima do olhar,
a paisagem da pátria.
Mas, o apelo fascinante do mar
acorda seu desejo de aventura,
o anseio de partir
em busca de uma terra prometida.
Quem dilacera assim,
entre a saudade e a esperança,
o coração do emigrante?
Ë a vida... é a vida... é a vida.
Edição: Ednubia Ghisi