Memória e Verdade

Livro do MPF detalha 27 ações abertas de 2012 a 2016 contra a ditadura

Apesar de algumas decisões favoráveis em primeira e segunda instâncias, quase todas as ações propostas estão paradas

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Professor Moreira: "No Brasil, a predominância dos juristas é de aceitar a tradição da legalidade autoritária brasileira"
Professor Moreira: "No Brasil, a predominância dos juristas é de aceitar a tradição da legalidade autoritária brasileira" - Reprodução/TVE

Foram 27 ações penais de 2012 a 2016, envolvendo 47 agentes do Estado em 43 crimes, cometidos contra 37 vítimas. Apesar de algumas decisões favoráveis em primeira e segunda instâncias, quase todas as ações propostas estão paradas. São tentativas do Ministério Público Federal (MPF) de responsabilizar agentes que cometeram violações durante o período da ditadura (1964-1985), em esforço que ainda enfrenta resistência no Judiciário, ora sob o argumento da anistia, ora com base em alegação de prescrição. Um histórico desse processo por memória e justiça está reunido no livro Crimes da Ditadura Militar, lançado neste sábado (24) durante ato no Memorial da Resistência, na região central de São Paulo.

"Estamos prestando contas desse trabalho. São 27 casos de 37 vítimas, as histórias e as circunstâncias em que elas foram presas, mortas e desaparecidas. Muitas delas neste prédio", diz o procurador da República Sergio Suiama, lembrando que o local do lançamento abrigava o antigo Dops. Coordenador do grupo de trabalho sobre Justiça de Transição do MPF no Rio de Janeiro, ele observa que o Brasil corre o risco ser novamente condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que está julgando o caso Vladimir Herzog, o Vlado, jornalista morto sob tortura no DOI-Codi paulista em outubro de 1975, mantendo uma "posição lamentável de não cumprir sentenças e assegurar impunidade aos torturadores".

Ao mesmo tempo, o procurador diz alimentar uma "expectativa de mudança de posicionamento do Judiciário", especialmente do Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2010, a principal Corte brasileira manifestou-se contra a revisão da Lei da Anistia, de 1979. Ao comentar mais adiante esse episódio, o professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) gaúcha José Carlos Moreira da Silva Filho, ex-vice-presidente da Comissão de Anistia, contará ter acompanhado "desgostoso" o voto do relator, o então ministro Eros Grau, e dirá que foram cometidas "perversões históricas" durante aquele julgamento.

Decisões judiciais

Autor de um livro sobre Justiça de Transição, Moreira acredita que ainda falta avançar na democratização interna do sistema judiciário brasileiro. Além disso, é preciso apurar "qual foi o nível de cumplicidade" desse poder com a ditadura.

Sobre as ações, ele aponta algumas decisões recentes até desrespeitosas, como foi o caso de um juiz de Petrópolis (RJ) no caso da militante Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da chamada Casa da Morte, naquele município. Sobrevivente depois de sofrer com torturas e estupros, em 1971. O caso foi denunciado à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 1979, durante o período da "abertura" política. O juiz não só desconsiderou os argumentos dos procuradores como pôs em dúvida a credibilidade da vítima. Investigações levaram a identificação do estuprador, apontado pelo MPF como sendo o militar Antonio Waneir Pinheiro Lima, o "Camarão".

Moreira cita outras decisões, o que leva Suiama a comentar: "Não é só ignorância. Algumas afirmações beiram a má-fé". Lembra que o juiz de Petrópolis ainda questionou o fato de a vítima não ter procurado uma delegacia na época, como se isso fosse possível, e comenta outro caso, do operário Manoel Fiel Filho, também morto no DOI-Codi de São Paulo, menos de um ano depois de Vlado, em que um magistrado fala em prestigiar a anistia, que "abrangeu os dois lados da disputa". Que dois lados?, questiona o procurador, lembrando que o trabalhador foi preso arbitrariamente e "suicidado" por agentes. Em 2015, o MPF em São Paulo denunciou sete deles pela morte do metalúrgico. E recorreu após a denúncia ser rejeitada em primeira instância.

O livro traz informações detalhadas sobre a situação de cada caso: número da ação, autor, denunciados, data do ajuizamento, crimes, local de distribuição. Das 27 ações, 10 foram abertas em 2016, seis em 2015, quatro em 2014, três em 2013 e quatro em 2012. São 11 imputações de homicídio, nove de falsidade ideológica, sete de sequestro e seis de ocultação de cadáver, entre outros crimes.

Dezenove ações foram abertas em São Paulo, quatro no Rio de Janeiro, três no Pará e uma em Goiás. Há 21 denunciados do Exército, nove da Polícia Civil, oito do Instituto Médico-Legal (IML), sete da Polícia Militar, um do Corpo de Bombeiros e um "cachorro" – termo que identifica um civil infiltrado a serviço da repressão. No primeiro grau, foram 17 decisões contrárias e quatro favoráveis. No segundo, sete e duas, respectivamente. No STF, três contrárias. 

Olhar para trás

Com 350 páginas, o livro publicado pelo MPF – também disponível em edição eletrônica, no site www.mpf.mp.br – oferece ainda embasamento teórico, com as teses adotadas pela instituição, abordando o caso Araguaia, em que o Brasil foi condenado em 2010, e fundamentos do Direito Internacional. "Embora os juízes tenham uma formação intelectual x, y, z, há uma grande ignorância intelectual em relação a diversos assuntos", comenta o professor Moreira. "Grande parte dos magistrados não faz ideia do que seja Justiça de Transição, crimes contra a humanidade. No Brasil, a predominância do jurista é de aceitar a tradição da legalidade autoritária brasileira."

Para a subprocuradora-geral da República Luiza Cristina Frischeisen, coordenadora da Câmara de Coordenação em Matéria Criminal do MPF, é preciso convencer os juízes que o país assinou o Pacto de São José da Costa Rica sobre direitos humanos e que está submetido à Corte Interamericana. "O nosso trabalho todo é nesse sentido", diz, ao relembrar que crimes contra a humanidade não prescrevem. "(Mostrar que) não prescreveu e que ali (na ação) há elementos de crime e de materialidade. Se a gente não conseguir convencer (os juízes), não vai haver condenação penal."

É preciso olhar para trás, defende Moreira, "no sentido de acolher aquelas narrativas sufocadas e confrontar os traumas". Um dos presentes ao evento no Memorial da Resistência é Paulo Carvalho, pai de uma vítima da tragédia da boate Kiss, em Santa Maria (RS), que resultou em 242 mortes, quatro anos e meio atrás. Ele está sendo processado por ter feito críticas ao Ministério Público do Estado e vê indícios de uma "ditadura" no Judiciário. Moreira observa que o parecer do MPE não apontou dolo das autoridades. "Há o risco de os primeiros condenados da boate Kiss serem pais das vítimas", afirma, considerando o caso "assustador".

A subprocuradora da República comenta recorrentes afirmações de quem considera que a ditadura não foi tão má assim. Confrontados com a vivência cotidiana, diz, "todo mundo vai ter uma experiência de medo". O principal impacto, acrescenta, "era o medo a falta de liberdade de expressão". O período autoritário atingiu não apenas as liberdades políticas, mas a individual. "Quem defende a ditadura na verdade defende que o outro não possa ser aquilo que ele quer ser."

É a "experiência dispersa da repressão", comenta Vera Paiva, filha do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido em 1971 e morto sob tortura. Seu corpo nunca foi localizado. "Ainda temos um movimento de resistência muito invisível", diz Vera. Para ela, é preciso valorizar quem fez um "trabalho de formiguinha", o que é importante também para o momento atual. "Essas pessoas têm que falar."

Ajuizado em maio de 2014, o caso Rubens Paiva está no livro do MPF. Foram cinco denunciados, incluindo o general reformado José Antonio Nogueira Belham, comandante do DOI do I Exército entre 1970 e 1971. Com decisões favoráveis em primeira e segunda instância, o processo encontra-se suspenso no STF. O procurador Suiama refere-se ao episódio como "imensa farsa" e informa que, de acordo com documentação, a embaixada dos Estados Unidos soube da morte do parlamentar apenas cinco dias depois. A família teve de esperar décadas.

No debate, convidados e plateia lembram dos efeitos cotidianos e permanentes da ditadura, com a violência policial e institucional. O professor Moreira cita o recente caso da violenta reintegração de posse na ocupação Lanceiros Negros, em Porto Alegre, em que a Brigada Militar, por decisão judicial, poderia atuar em qualquer horário e dia. "Está aumentando assustadoramente o nível de violência cometido pelas autoridades", diz, apontando ainda retrocesso em atividades relacionadas a direitos humanos em nível federal, com cortes no repasse à Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e interrupção das atividades da Comissão de Anistia e das Clínicas do Testemunho. 

Presente como perito à sessão de julgamento do caso Vlado na CIDH, Sérgio Suiama conta que ouviu da advogada representante da União a pergunta: o senhor reconhece que o Brasil hoje é um Estado de direito? Isso ocorreu, lembra, no mesmo dia em que Michel Temer baixou decreto para instaurar "lei e ordem" em Brasília, após marcha de centrais sindicais e movimentos sociais (recuaria depois), e da chacina de 10 trabalhadores rurais no Pará. 

"Chega a ser irônica essa pergunta de um representante do Estado brasileiro na atual situação", diz o procurador, destacando a violência presente "em qualquer rua de São Paulo, em qualquer morro do Rio de Janeiro".

"Temos de reconhecer que há ponto de ruptura (com a ditadura), mas há pontos de continuidade, de prosseguimento", afirma. "Essa luta por igualdade, democracia, direitos humanos, se faz no dia a dia."

Edição: RBA