Há 18 anos, teve início o projeto da Expressão Popular, livraria e editora militante construída pelos movimentos populares. Poucos podem contar tão bem sua história como Carlos Bellé, que todo dia se dirige ao mesmo endereço no bairro da Bela Vista, em São Paulo, onde se localiza a sede física do projeto desde 2010. É meio da tarde de uma quinta-feira quando o encontro com uma pilha de livros a serem lidos e revisados nos próximos dias. Mesmo na correria, é com prazer que ele me conta do projeto que integra há quase um terço de sua vida, e que acaba de lançar o Clube do Livro, que possibilita que os leitores se associem à editora e passe a receber todo mês um novo lançamento da Expressão.
Bellé, como é chamado por todos que o conhecem, compõe a equipe da Expressão Popular desde seu início. Não há, no entanto, um cargo fixo para o definir. Conhecendo de tudo um pouco, hoje ele ajuda em todas as tarefas da editora e livraria: desde a edição das obras, até a ponte solidária de relação com organizações externas.
“Nós fazemos o trabalho de formação político-ideológica através do livro, que é uma das formas de elevar o nível de consciência da sociedade”, conta o integrante da editora. “Eu confio nesse projeto. Sei que esse mundo pode e vai mudar. E eu aposto nele, estou junto”, declara com carinho quando pergunto sobre o significado da Expressão na sua vida.
A origem
Hoje com mais de 500 títulos publicados e caminhando com autonomia, a editora surge no bojo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em fins da década de 1990.
“Estávamos naquele recuo político da queda do Muro de Berlim, do ‘não existe alternativa’, ‘o capitalismo venceu’, ‘não tem mais outro jeito’, ‘vai ter que viver nessa miséria de divisão da sociedade entre ricos e pobres’”, comenta Bellé, referindo-se ao período de alargamento do neoliberalismo, privatização de empresas estatais, como a Vale do Rio Doce, e rearticulação dos setores da esquerda em meio ao qual nasce a Expressão Popular.
Em suas palavras, também havia, na época, um enfraquecimento das escolas de formação de organizações populares, sociais e político-partidárias do campo da esquerda brasileira que tinham surgido no período da redemocratização. A sociedade buscava um projeto popular para o Brasil e, nos movimentos populares, urgia a necessidade de revalorizar a formação política ideológica de seus membros.
“A Expressão surge no sentido de produzir materiais para essa formação da militância social brasileira, que estava inconformada e resistia”, diz Bellé.
Em um período de crise no debate do socialismo enquanto possibilidade de transformação, enfraquecimento da formação política e dificuldade de vislumbrar alternativas de superação do modo capitalista de produção, nasce uma editora popular, que anseia fazer o debate de ideias na sociedade e reafirmar o livro como uma das ferramentas de mudança social.
Para construir esse projeto, a sabedoria necessária veio dos movimentos populares. "O mundo não acabou, o modo de produção capitalista não é eterno, os conflitos sociais são permanentes e vão se acirrar, as crises econômicas e políticas vão continuar, e você só entende isso se você for ler na história da humanidade as experiências concretas de como os povos se reuniram, construíram sua teoria, seu pensamento e as alternativas aos conflitos existentes em cada período. E isso está registrado no livro”, conta Bellé.
Com esse espírito, escolheu-se o primeiro livro a ser publicado: “Lênin e a Revolução Russa”, de Oziel Gomes. A obra recupera os elementos da organização social a partir da história da experiência russa e da classe trabalhadora.
Como fazer nascer um livro?
Propor uma alternativa ao cenário neoliberal vigente e formar politicamente os militantes não foram os únicos objetivos da Expressão Popular. Era preciso que esse projeto pertencesse, de fato, ao povo. No centro de sua proposta social, estava a produção de livros baratos e acessíveis à militância e aos trabalhadores em geral.
“O preço a ser pago é o preço do produto do trabalho, nós não estamos explorando, fazendo acúmulo no processo. E isso já nos diferencia do bojo do mercado editorial vigente”, diz o integrante da Expressão.
Justamente o baixo preço dos livros da Expressão Popular, que fogem à lógica do mercado livreiro, trouxe dificuldades de inserção para a editora em seus primeiros passos. Muitas livrarias acreditavam que a venda não compensava, já que o interesse econômico não era o prevalente.
“Eu diria que o maior problema das pequenas editoras não é a concorrência com as grandes, mas sim a rede livreira, a distribuição.” Quem comenta isso é Flamarion Maués, historiador e pesquisador com ênfase nas editoras de oposição no Brasil.
Na época do nascimento da Expressão, Maués era coordenador editorial da Fundação Perseu Abramo. Foi com ele que Carlos Bellé conversou para entender as questões técnicas do processo de nascimento de um livro. “Eles estavam aprendendo e com essa humildade de ir atrás e perguntar para as pessoas quais que eram os passos, como é que se fazia o livro”, comenta.
Apesar das dificuldades, em sua avaliação, aquilo que para muitos talvez fosse uma fraqueza da Expressão Popular, na verdade a ajudou bastante. Isso porque, na busca de alternativas para expandir o alcance de seus livros e ideias, a editora e livraria contou e conta com a militância social, ou a chamada “distribuição militante”, de pessoas que acreditam no projeto e vendem os livros em feiras e eventos pelo Brasil.
“Hoje, já é consolidada em termos nacionais essa ideia da editora dos movimentos populares, de bons e baratos livros: a editora que agrega a solidariedade e valoriza isso”, comenta Bellé. Mas para chegar aqui, muitas são as histórias que se somam no caminho.
O peso da cultura
Uma dessas histórias é a de Vera Lúcia Fernandes Freire. Potiguara de 68 anos, atualmente ela vive na Paraíba, com seus dois filhos e seu neto, onde é responsável pela livraria da Expressão Popular.
Seu primeiro contato com o projeto da editora aconteceu há cerca de 12 anos, quando Vera Lúcia participou do curso Realidade Brasileira promovido pela Consulta Popular no estado. O material da Expressão Popular foi usado no curso e logo ela se apaixonou pelos ideais da editora e pela “preocupação com a cultura”. A inquietude de transformar a sociedade já estava presente em sua vida, bem como a paixão pela literatura, e foi com a Expressão que ela encontrou um lugar para defender o que acreditava.
“Acho que eu sempre me preocupei com as questões sociais, mesmo quando morava nas cidades do interior e ainda não entendia muito das coisas. Essa desigualdade social me preocupava muito”, conta Vera.
Foi assim que ela fez parte da rede de solidariedade Cáritas Brasileira. Com o trabalho assistencialista e o contato com uma realidade de extrema desigualdade social e miséria, que a angústia e a vontade de transformação tomaram conta dela. “O que você faz para mudar isso?”, se questionava. Foi quando Vera Lúcia, hoje aposentada, conheceu e ingressou voluntariamente na Expressão Popular.
Hoje, na capital paraibana, João Pessoa, ela e a equipe dividem-se entre a recém sede da Expressão no estado, localizada em frente à Universidade Federal da Paraíba (UFPR) desde janeiro de 2016, os eventos dos quais participam com as banquinhas de livros e com as vendes realizadas todo mês, do dia 1° ao dia 15, na Praça da Alegria.
Ela conta os desafios enfrentados no início. “Agora está mais fácil, mas no início foi muito difícil. Andei com bolsas cheias de livros de ônibus, carreguei caixas na cabeça”.
Esses desafios, comuns a um projeto que se propõe a fazer um contraponto a tudo que é hegemônico, também são lembrados por Carlos Bellé. “Nós costumamos dizer que literalmente sabemos qual é o peso da cultura, porque carregamos as caixas de todos os livros da Expressão Popular. Além de produzir, você distribui, realmente é o processo completo”.
Ao longo de mais de uma década envolvida com o projeto, hoje Vera Lúcia enxerga a Expressão Popular tanto pelo seu valor social, quanto pelo valor em sua própria vida. “Como eu já sou ‘de idade’, acho que não teria uma atividade que pudesse me fazer melhor do que essa. Estar vendendo esses livros, divulgando, é uma forma de me manter viva e não envelhecer tanto; até fisicamente, por essa movimentação de livros, de colocar de um canto para o outro. É uma forma de não me deixar envelhecer. Revigora a vida.”
Daqui para a frente
Além da distribuição militante, da página na internet que conta com mais de três mil títulos à venda e da livraria física na capital paulista e em outros estados, a editora começa, agora, um novo projeto: o Clube do Livro.
Inspirado em ideias já existentes no Brasil, a ideia possibilita que os leitores recebam mensalmente um lançamento da Expressão Popular, e diferentes formas de adesão são disponibilizadas. Mais uma vez na batalha das ideias cotidianas, Bellé adianta que cada obra escolhida será pensada de modo a demarcar o período da conjuntura nacional brasileira e qualificar o debate na sociedade.
O primeiro lançamento pelo Clube do Livro foi a reedição de “O significado do protesto negro”, do sociólogo e educador Florestan Fernandes. A recém-reedição foi feita em parceria com a Fundação Perseu Abramo.
Em meio à luta pelas eleições diretas no país e pelo fim das reformas impopulares, o livro de Florestan, lançado pela primeira vez em 1989, defende que não haverá democracia real ou superação do modelo capitalista enquanto o país não reconhecer e colocar fim ao racismo.
“Buscamos colocar o livro como um dos elementos de associação das pessoas, o livro enquanto projeto político. Ao desenvolver esse tipo de relação, estamos buscando uma adesão solidária e direta entre editora, leitor e projeto”, finaliza Bellé.
Edição: Luiz Felipe Albuquerque