Movimentos populares voltados para a temática urbana lançaram um manifesto, nesta sexta-feira (14), que retoma e busca atualizar a proposta de reforma urbana no país.
Chamado “Por uma Frente Ampla em Defesa da Construção Social de um Projeto para as Cidades do Brasil”, o documento é fruto das discussões do Projeto Brasil, iniciativa que conta com 28 grupos de trabalho que discutem vários temas relevantes para o desenvolvimento nacional, envolvendo dirigentes de organizações, militantes e intelectuais.
O processo tem sido impulsionado por entidades como as fundações Perseu Abramo e Maurício Grabois, a Plataforma Política e Social e a Escola Nacional Florestan Fernandes. A maior parte dos envolvidos na construção do “Projeto para as Cidades do Brasil” são também vinculadas à Frente Brasil Popular.
“É urgente elaborar, por meio de uma construção social, um projeto para as cidades do Brasil, no médio e longo prazo, tendo como parâmetros a justiça espacial, intraurbana e regional; a sustentabilidade social, econômica e ambiental; o combate a toda sorte de desigualdade — social, racial e de gênero —, o respeito à diversidade geográfica e cultural, além do controle social e o respeito aos recursos públicos”, afirma o manifesto, que também defende o “protagonismo cidadão” motor de tais transformações.
Ainda é possível aderir ao documento nesta página.
“A oportunidade que nós temos é retomar a luta pela reforma urbana inserindo em uma luta mais geral. Retomar o caráter mais amplo de discussão sobre as cidades. Não se pode discutir habitação sem discutir mobilidade. A localização tem tudo a ver com transporte. É uma tentativa de politizar novamente esse debate”, diz Ermínia Maricato, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e uma das coordenadoras do processo de elaboração do manifesto.
Maricato concedeu entrevista ao Brasil de Fato explicando as concepções que nortearam a formulação do documento. Confira abaixo.
Brasil de Fato: O que motiva o lançamento deste manifesto?
Ermínia Maricato: O manifesto é oriundo das discussões da Frente Brasil Popular. Nós fomos convidados a coordenar o tema relacionado a um novo projeto para as cidades do Brasil, revendo a reforma urbana.
O projeto está sendo discutido e desenvolvido porque estamos em um evidente fim de um ciclo econômico e político no Brasil, mas também no mundo. Estamos atravessando um momento de transição. A Frente percebe que é hora de retomar a discussão de um projeto para o país.
O Brasil passou por mudanças muito fortes nos últimos 30 anos. Tivemos um ciclo democratizante e socialmente inclusivo em muitos aspectos. Passamos por uma desindustrialização e internacionalização da economia. Do ponto de vista do território nacional, há uma mudança significativa na dinâmica populacional, por exemplo, nos fluxo migratórios, que deixam de vir para a faixa litorânea, e passa a se dirigir para o centro-norte e centro-oeste do país. Deixa de vir para as grandes metrópoles e passa a acessar cidades de porte médio.
Qual o sentido de “construção social”, incluído no título do manifesto?
Não é um programa de governo. É uma construção social. E meu objetivo é juntar as forças vivas do país. Nesse sentido, não é de curto prazo. Claro que existem propostas de curto prazo, mas nós temos que recuperar aquilo que gerou o último ciclo democrático que nós tivemos, que foi a organização pela base. Como o Brasil mudou muito, nós temos que reinventar nas formas democráticas. Não é de projeto de intelectuais, embora eu particularmente considere que a presença de setores profissionais, acadêmicos e técnicos é fundamental, mas sim um projeto popular. Sem dúvida nenhuma, os movimentos sociais constituem o coração do projeto.
Se debate reforma urbana desde 1963. Essa discussão foi retomada na redemocratização. Como o manifesto se relaciona com esse legado?
Nós estamos partindo dessa construção que foi feita durante a luta contra a ditadura militar. Naquele momento, a proposta de reforma urbana foi retomada. Construímos, especialmente as prefeituras sob gestões chamadas democráticas e populares, um ciclo muito virtuoso. O auge desse ciclo foi o orçamento participativo, uma das coisas mais importantes que foi feito e que projetou o Brasil no mundo todo: democracia direta na discussão do orçamento público. Isso muda tudo e é uma pena que esse processo tenha sido abandonado. Esse ciclo também gerou um arcabouço legal.
Tivemos uma prática, construímos espaço institucionais, construímos partidos novos, centrais sindicais. A movimentação que estamos fazendo hoje, ao contrário de negar, é retomar o que esse ciclo tinha de fundamental. Mas nós também cometemos muitos erros. Essa nova agenda para as cidades tem que partir da nossa experiência recente.
A oportunidade que nós temos é retomar a luta pela reforma urbana inserindo em uma luta mais geral. Retomar o caráter mais amplo de discussão sobre as cidades. Não se pode discutir habitação sem discutir mobilidade. A localização tem tudo a ver com transporte. É uma tentativa de politizar novamente esse debate
Quais eram os elementos desse ciclo virtuoso ao qual você se refere?
Era olhar a periferia, a cidade ignorada, e falar: essa é nossa prioridade. Levar água, esgoto, iluminação, transporte, melhorar e produzir moradias. Produção de moradias com assistência técnica, a participação de arquitetos e engenheiros assessorando movimentos sociais, que geriam a obra, o que gerou conjuntos habitacionais de alta qualidade arquitetônica e baixo preço.
Que mais? Os Cieps [Centros Integrados de Educação Pública, no Rio de Janeiro] e os CEUs [Centros Educacionais Unificados, em São Paulo]. Começa com o governo Brizola, com a concepção do Darcy Ribeiro — que também vinha das reformas de base do pré-64. Havia um programa muito importante para a educação básica.
Os corredores de ônibus: uma lição que veio de Curitiba (PR) e que depois foi retomada no Brasil todo, ficou famosa, foi para o exterior e voltou com o nome estrangeiro bus rapid transit [BRT]. É uma criação nossa! Isso que é importante!
Esse ciclo foi um conjunto de ações absolutamente originais que a luta contra a ditadura criou desde os meados dos anos 1970 até os anos 1990. Por que quando o PT chega ao governo, cria o Ministério das Cidades, a gente começa a perder o controle sobre a política urbana?
Eu iria perguntar justamente isso: por que a experiência desse ciclo virtuoso se perdeu?
Eu escrevi um livro sobre 2013, ainda que a esquerda não tenha um análise fechada sobre o assunto. Eu defendo que a questão urbana pesou muito.
Por que a gente tinha uma rede tão forte e os capitais imobiliários tomaram conta das cidades?
Os indicadores estão claros. Por exemplo: as viagens diárias foram aumentando. Aumentou o tempo de viagem para todo mundo, mas para quem não tem automóvel aumentou muito. O governo federal decidiu investir muito em automóveis. Na região metropolitana de São Paulo, a viagem média dura 2h40. Isso todos os dias na vida das pessoas. Investiu também em mobilidade, mas levando em conta interesses do capital imobiliário.
Você se refere ao Minha Casa Minha Vida?
Quando você investe em algum lugar, você muda o preço da terra e dos imóveis. Nós passamos por muitos anos de ajuste fiscal, aí se discutia através da democracia direta onde se investiria o dinheiro do município, porque não tinha governo federal. Quando o dinheiro aparece, pelo Minha Casa Minha Vida e pelo PAC [Plano de Aceleração do Crescimento], há um assalto dos capitais em torno dos recursos. Há um boom imobiliário e automobilístico. O boom imobiliário aumentou o preço dos aluguéis, o metro quadrado de terrenos e imóveis e jogou os pobres para a periferia da periferia. Com o projeto desenvolvimentista baseado nesse modelo nós tivemos um impacto bárbaro sobre as cidades. A vida nas cidades piorou. Piorou no momento em que volta o investimento federal? É! Isso mesmo que eu estou falando.
É preciso dizer que o Minha Casa Minha na modalidade Entidades construiu muita coisa boa, uma herança dos governos democráticos e populares. Mas essa modalidade teve 2% do orçamento total do programa. Havia uma concepção desenvolvimentista que apontava urgência na construção. Trouxe emprego entre 2009 e 2014. A construção civil cresceu mais que a média do PIB. Mas acabou [do ponto de vista urbanístico] com as cidades. O resultado disso tudo precisa ser trabalhado.
O que faltou ao programa?
O coração do projeto de reforma urbana é a reforma fundiária. A função social da propriedade. Barrar a especulação imobiliária e a especulação urbana. Quando não se faz reforma fundiária, parte do recurso investido vai para o preço da terra. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, por exemplo, houve aumento de 200% em três anos no preço da terra e também dos aluguéis [novos]. Por meio do processo de circulação, o subsídio é capturado pelos proprietários, pelos incorporadores e pelas empreiteiras, obviamente. Houve uma explosão por conta do nível de investimento do Minha Casa Minha Vida. E houve uma explosão da própria cidade, sua dispersão horizontal. Isso torna a cidade inviável. O que nós sempre consideramos sustentável é uma cidade compacta de uso misto: você vai no mercado à pé, à padaria de transporte. Isso explodiu como modelo. Toda cidade que eu vou é isso: novos bairros populares a quilômetros de distância dos locais de trabalho e entre eles áreas vazias.
Nossa proposta de reforma urbana tinha isso como questão central e ela desapareceu. Foi uma coisa impressionante perceber que isso aconteceu. Eu não desconheço a importância das políticas sociais de Lula. Só um cego não reconheceria. Mas as cidades, em um certo momento, saíram da agenda.
De outro lado, havia possibilidade de participação institucional da sociedade civil no governo, não?
A experiência mostrou que não basta ter espaço participativo dentro das instituições.
Era um governo que ampliava cada vez mais as alianças para ter governabilidade. E o Lula tem razão! A esquerda precisa entender: é preciso negociar. De outro lado, é preciso entender também a que preço. Os partidos e os movimentos haviam perdido força. Houve uma perda na correlação de forças. É preciso escolher.
Na democracia burguesa, o que garante avanços é a luta social, não basta eleger governos. Eu fui governo duas vezes. Sem movimentos fortes, você não faz nada. O Estado acaba capturando [o governo]. Pega a questão orçamentária: enquanto todo mundo comemora a passagem do ano, os lobbies estão atuando nos Parlamento. Eles não dormem.
Nós temos um arcabouço legal avançadíssimo no país. Entretanto, ele não é aplicado. O Ministério Público e o Judiciário desconhecem. São casos que não acabam: a função social da propriedade é ignorada quando se dá despejo contra população que ocupa imóveis abandonados há anos. Foram conquista formais e institucionais importantes, mas frágeis.
Como funcionou a elaboração do manifesto e como ele vai se desenvolver a partir de agora?
Nós começamos como grupo de trabalho. Hoje estamos com apoios e parcerias impressionantes: Federação Nacional dos Engenheiros, Federação Nacional dos Arquitetos, Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Confederação Nacional das Associações de Moradores, Central de Movimentos Populares, Movimento Nacional da População em Situação de Rua. A academia está entrando em peso: laboratórios da USP, da UFRJ, da UFF, da UFGM. Os parceiros que debatem saúde pública também estão bastante envolvido, porque sabem que não se debate epidemia sem debater cidades.
Nós já temos núcleos estaduais funcionando. Isso tudo antes de o projeto sair às ruas. É uma construção que não temos de forma completamente clara o caminho. Nós não temos vinculação formal a partidos, os que quiserem podem entrar. Em todas cidades que vamos, quem nos acolhe é o Levante Popular da Juventude, o Movimento dos Trabalhadores por Direitos e a Frente Brasil Popular.
O grande desafio é saber como sistematizar todas contribuições. Nós não precisamos inventar nada, os movimentos já existem nas cidades. A gente quer constituir uma rede. Estamos pensando em realizar um fórum. Não se trata de uma agenda única para todas cidades, dada a variedade brasileira, mas algumas questões são nacionais.
Edição: Vanessa Martina Silva