Com análise prevista para agosto no Congresso Nacional, a proposta de reforma política tem incendiado debates dentro e fora do Legislativo. Entre os pontos que vêm sendo discutidos, surgiu, no cenário parlamentar, a proposta de voto conhecida como “distritão”, modelo que se baseia na eleição dos candidatos individualmente mais votados.
Com isso, o país adotaria um formato de pleito dentro da seguinte lógica: não existira mais o voto de legenda e o eleitor escolheria o candidato sem que necessariamente houvesse uma vinculação deste a um programa político-partidário. Isso porque o modelo está orientado para o desempenho individual dos eleitos, independentemente de propostas programáticas coletivas.
O novo formato seria, por exemplo, terreno fértil para a proliferação de candidatos capazes de vencer a eleição pela fama que possuem entre o eleitorado, como é o caso de artistas, ou por serem tradicionalmente vinculados ao aparato econômico vigente, como ocorre com candidatos de perfil ruralista, empresarial, entre outros.
É o que dizem, por exemplo, os integrantes da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, grupo criado por movimentos sociais para debater uma proposta popular de reforma política. Recentemente, a plataforma lançou uma nota repudiando a iniciativa dos parlamentares defensores da medida — quase todos eles vinculados a legendas como PSDB, PMDB e ao chamado “centrão”.
Interesses econômicos
O filósofo José Antônio Moroni, membro da plataforma e também do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), afirma que, em primeiro plano, o modelo serviria como sustentáculo para garantir a reeleição dos parlamentares proponentes, agravando a opressão da elite econômica sobre os interesses populares.
“A estratégia do poder econômico hoje é, por termos eleição proporcional, apoiar vários partidos e candidaturas, aí eles ficam bem, independentemente de quem ganhe. No distritão, eles podem, por exemplo, concentrar recurso e força política em 40 [candidatos] e eleger esses, ou seja, eles vão ter muito mais poder do que têm hoje”, analisa Moroni.
Com isso, o modelo não só levaria ao fortalecimento dos tradicionais grupos que dominam o ambiente político como agravaria o problema da sub-representação das chamadas minorias políticas, que incluem mulheres, negros, quilombolas, população LBGT e outros segmentos.
Para se ter uma ideia, nas eleições de 2014, 69,1% dos candidatos eram homens; 55,1% eram brancos; e apenas 0,3% tinham origem indígena, por exemplo — atualmente, o Congresso Nacional não conta com nenhum representante indígena.
O mapa da diversidade no Parlamento estaria, então, diretamente vinculado não só aos valores tradicionais da sociedade brasileira, mas também às distorções do atual sistema político, ainda incapaz de promover mudanças mais radicais rumo à construção da igualdade. Para Moroni, o modelo do distritão tenderia a agravar esse problema.
“Quem vai ser eleito nesses distritos provavelmente vai ser o homem branco, rico, proprietário, etc. Dificilmente serão eleitos uma mulher, algum negro ou negra, alguém ligado à juventude, porque ele inviabiliza a representação das minorias e radicaliza o modelo que nós já temos”, avalia Moroni, acrescentando que seria necessário revisar também as regras atuais.
A plataforma de movimentos sociais defende o modelo de voto a partir de lista pré-ordenada, resultante da escolha coletiva dos nomes, em uma ordem que respeite a alternância de sexo e passe pelo sistema de prévias partidárias. “Seria uma forma mais democrática de lidar com o voto”, finaliza o filósofo.
Política e religião
Na arena dos debates políticos, destaca-se também a atuação de grupos religiosos de caráter fundamentalista, um aspecto considerado preocupante pela pastora luterana Romi Bencke, do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (Conic). Ela aponta a relação desses setores com outros segmentos de viés conservador e elitista.
“A gente já sabe — e isso está amplamente comprovado por pesquisas — que existe uma interação muito forte entre eles e setores como os do agronegócio, da indústria armamentista e da mineração, que defendem agendas absolutamente contrárias a qualquer valor que possa fortalecer a construção da equidade no nosso país”, salienta Bencke.
A força dos referidos grupos está expressa em números. A Frente Parlamentar Evangélica, por exemplo, que tem destacada atuação na defesa de pautas conservadoras, conta hoje com 198 deputados e quatro senadores, o que corresponde a mais de 30% do total de congressistas. Boa parte deles é ligada ao Partido Social Cristão (PSC), mas muitos integrantes também pertencem a siglas como PR, DEM e PMDB, geralmente identificadas com o conservadorismo.
Para a pastora, a conexão entre esse tema e a discussão sobre o voto “distritão” é latente: ao favorecer candidatos que tenham mais verbas e aparato de financiamento eleitoral, o modelo tende a comprometer o bem comum quando se trata das discussões sobre o Estado laico.
“Esse é um tema até bastante ambíguo no país. A Constituição fala da separação entre religião e Estado, mas não cita exatamente o termo ‘laico’. Ela garante a cooperação entre as duas partes, mas com vistas ao bem comum, mas o problema é que o bem comum pode ser um monte de coisa”, destaca Bencke, apontando para as distorções que surgem em decorrência das diferentes leituras.
“Alguém lá da bancada evangélica que apoia os ruralistas ou algumas outras bandeiras polêmicas pode dizer que está cuidando do bem comum. Mas como parlamentares que se dizem cristãos vão fazer, por exemplo, discursos misóginos, homofóbicos, tudo em nome da fé? Como vão incitar a violência, defender o porte de arma, quando tudo isso é contrário a qualquer pressuposto religioso? Não se pode utilizar a fé para defender esse tipo de postura”, argumenta a pastora.
Partidos
Outro problema que vem a reboque da proposta do distritão seria o incentivo ao caráter personalista das candidaturas, uma vez que o modelo enfraquece a lógica partidária, de construção coletiva dos programas. O advogado Luciano Santos, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), destaca a importância do fortalecimento das legendas.
“É importante ter partidos fortes porque é através deles que se fazem as cobranças da realização dos programas, não individualmente. Quando se vai para a cobrança individual, você tem que cobrar de 513 deputados, 81 senadores e uma quantidade enorme de vereadores e deputados estaduais”, ressalta Santos, que também é membro da plataforma dos movimentos sociais para a reforma política.
Para o advogado, a atual configuração do Legislativo, com recorrentes fissuras internas nas siglas e casos de infidelidade partidária, ocorre por conta do enfraquecimento das legendas.
“Os partidos enfraquecidos servem simplesmente como um instrumento para as pessoas que têm poder ou condições de lançar o mandato se utilizarem da legenda sem terem nenhum compromisso, tanto com a eleição e com a sociedade quanto com os próprios partidos”, finaliza Santos, reforçando que a solução para o problema estaria também no caminho oposto, com o fortalecimento dos partidos e o consequente aumento da pressão popular.
Edição: Vanessa Martina Silva