Na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), o acesso à moradia é cada vez mais difícil para a maior parte da população. Cresce o número de pessoas que encontram nas ocupações urbanas uma alternativa. Embora elas tenham respaldo constitucional, sua luta muitas vezes é tratada como caso de polícia.
Sem saída
Soraia Regimare dos Santos, 40 anos, paga R$ 600 de aluguel por um barracão de cinco cômodos na comunidade Pedreira Prado Lopes, região Noroeste de BH, onde vive com quatro filhos. Para o aluguel e o sustento familiar, ela conta com R$ 937 do Benefício de Prestação Continuada do filho mais velho, que tem paralisa cerebral.
“O principal gasto é com a casa, não sobra quase nada. E eu já morei em lugares onde tinha que sentar no vaso para dar banho no meu filho, de tão pequeno que era o banheiro”, lembra Soraia, que divide seu tempo entre o cuidado da família, a escola onde cursa a Educação de Jovens e Adultos e as raras oportunidades de trabalho como garçonete. Com o que ganha, é impossível comprar a casa própria. “Cheguei a dar uma entrada de R$ 3 mil para a dona dessa casa onde eu moro, para comprar. Como não eu não consegui pagar o restante, tive que voltar atrás. O que eu dei ficou como aluguel”, lembra.
Em situação semelhante, na Região Metropolitana, havia 83.386 famílias, com renda de até três salários mínimos, gastando pelo menos 30% do que ganham com aluguel. São dados da Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio (PNAD) 2014. Além disso, a Grande BH tinha, naquele ano, 17.084 famílias vivendo em domicílios precários – como pontes, barracas, viadutos, entre outros –, 6.104 famílias com três ou mais moradores por dormitório e 54.512 famílias em coabitação familiar (mais de uma família por domicílio).
“Em nosso sistema, a terra e a moradia são tratadas como mercadorias e seu acesso se dá pela compra ou locação. Uma parcela da população, que não tem renda suficiente, fica excluída do acesso à moradia via mercado convencional”, explica a arquiteta Mônica Bedê. Para ela, isso é motivo para que muitas pessoas venham a morar em favelas, loteamentos ilegais e ocupações urbanas.
Foi o que aconteceu com Edilene Nascimento Lemos, que, há quatro anos, foi viver na ocupação Dom Tomás Balduíno, em Ribeirão das Neves. Antes disso, ela passou seis anos pagando aluguel. “Estava lá o terreno vazio. Se tivesse plantação ou alguma outra coisa, não tinha ninguém lá. Mas, como estava parado, precisava ocupar o lugar”, comenta.
Ocupações estão crescendo
Em junho de 2016, o Núcleo Práxis, da Escola de Arquitetura da UFMG, publicou um relatório sobre 24 ocupações urbanas da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Nelas, havia cerca de 14 mil famílias ou 55 mil pessoas, à época. O número, entretanto, é maior e não para de crescer.
“Há um movimento mostrando que não se avança na questão habitacional, pois a política colocada até o momento, que era o Minha Casa Minha Vida, já não dava conta de sanar o déficit. Essa política se esgotou e o déficit continua aumentando. O que resta às famílias são as ocupações urbanas”, explica Luís Fernando Vasconcelos, das Brigadas Populares.
Embora faltem dados quantitativos sobre os perfis de moradores das ocupações na região, percebe-se que há um nítido protagonismo da população negra, especialmente mulheres. “Em visitas a campo, vemos o predomínio da população negra. E é muito forte a presença de mulheres negras, sozinhas com filhos, liderando movimentos, lutando pela casa, por serviços públicos, água, rede elétrica”, explica a arquiteta Lisandra Mara Silva.
Ocupar não é invadir
As ocupações urbanas surgem da ação de famílias, apoiadas por movimentos, grupos de pesquisa ou entidades de direitos humanos, tendo como foco a luta por moradia, em áreas vazias, subutilizadas ou abandonadas. Juridicamente, elas se baseiam no direito à moradia reconhecido na Constituição de 1988, em seu artigo 6º, e no Estatuto das Cidades (Lei Federal 10.257/2001). Por outro lado, o direito à propriedade privada de um terreno ou um imóvel está condicionado ao cumprimento de sua função social.
“Se você tem um terreno, você tem que morar, produzir, plantar, fazer alguma coisa nele. Se o seu terreno está abandonado, você não está respeitando a função social da propriedade. Dessa forma, populações que não têm acesso à casa e ocupam esses locais agem conforme a lei. O Estado deveria apoiar essas ocupações, pois elas estão resolvendo um problema que o próprio poder público não está conseguindo resolver”, analisa Frederico Lopes, professor e mestrando em Educação pela UFMG. Ele estuda as ocupações Guarani Kaiowá e William Rosa, em Contagem.
Em muitos casos, entretanto, o poder público trata as ocupações urbanas como problema de polícia, ignorando a Constituição. “Em Minas, já vi policiais fazerem vários despejos ilegais, sem autorização judicial, usando de uma interpretação errônea da lei, de que toda ocupação é esbulho possessório. O Judiciário é conivente com esse erro, pois defende a propriedade privada, embora a Constituição diga o contrário”, afirma Leonardo Péricles Vieira, dirigente do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB).
Relação com governos
O governo do estado, segundo Leonardo Péricles (MLB), é responsável por essa situação, pois, além de não resolver o problema, não impede os abusos policiais. “Quando o governador permite que a PM faça essas coisas e fica calado, está concordando com a PM. Estamos vivendo um Estado de exceção aqui em Minas Gerais e o governo não combate e não denuncia isso publicamente, como deveria”, critica.
Movimentos indicam que, nos últimos meses, houve avanços na relação com alguns governos municipais da RMBH. Em abril, o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PHS), visitou as ocupações Rosa Leão, Vitória e Esperança, na região da Izidora, Norte da capital. Durante a visita, ele prometeu fazer a regularização fundiária da área e levar serviços públicos ao local. Ao mesmo tempo, encaminhou à Justiça a desistência de duas ações de reintegração de posse na Izidora.
“Há uma diferença gritante para o [ex-prefeito] Lacerda, que era inimigo declarado das ocupações. Com Kalil melhorou, embora já tenha havido despejo com moradores em situação de rua e há mais de 100 processos de reintegração de posse”, pondera Leonardo Péricles, do MLB. Ele aponta como principal causa para os avanços a pressão popular dos movimentos. “O central é aumentar as mobilizações. Na Izidora, Kalil viu que o movimento não foi vencido nem mesmo pela maior construtora do Brasil. Ele não fez mais do que o que deve ser feito, olhando com prioridade para quem mais sofre”, afirma.
Quem se beneficia com os investimentos públicos
Se para as ocupações urbanas a resposta do poder público muitas vezes é a criminalização, em se tratando dos grandes proprietários, a postura tem sido a conivência. Não há outra explicação para o fato de muitos deles manterem imóveis ociosos, com vistas a se beneficiar da especulação imobiliária. Esse processo ocorre quando o preço do solo aumenta artificialmente, graças a melhorias no entorno. Tais melhorias frequentemente decorrem de investimentos estatais em infraestrutura, construção de equipamentos públicos, entre outros, financiados com dinheiro da população.
Nos últimos anos, aumentaram significativamente os recursos públicos destinados a políticas de habitação, entre outras, por meio de programas como o Minha Casa Minha Vida, por exemplo. Todavia, como não foi implementada, ao mesmo tempo, uma política que desse efetividade ao princípio da função social da propriedade, os investimentos acabaram sendo absorvidos na valorização de terrenos. É o que explica, em entrevista ao Brasil de Fato, a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato.
“Quando não se faz reforma fundiária, parte do recurso investido vai para o preço da terra. Em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, houve aumento de 200% em três anos no preço da terra e também dos aluguéis [novos]. Por meio do processo de circulação, o subsídio é capturado pelos proprietários, pelos incorporadores e pelas empreiteiras, obviamente”, afirma a arquiteta.
Frente Brasil Popular propõe saída
Intelectuais e movimentos organizados na Frente Brasil Popular elaboraram uma proposta intitulada “Projeto Brasil Cidades”, com uma agenda para a reforma urbana no país. Entre as propostas apresentadas, consta a defesa da ocupação de imóveis ociosos, como forma de se combater o problema da falta de moradia e a especulação.
“É inadmissível manter por longos anos imóveis vazios, bem servidos de infraestrutura resultante do investimento público, acumulando mosquitos e lixo, enquanto milhões e milhões de pessoas ficam sem alternativa de moradia, ocupando áreas de proteção ambiental como beiras de rios e córregos, morros íngremes, dunas, mangues, áreas de risco de desmoronamentos. Temos instrumentos legais suficientes para resolver esse gigantesco problema social e ambiental”, afirma o manifesto do grupo, disponível no site: brcidades.org. O site contém outras informações sobre o Projeto.
O documento pede, ainda, o fim da perseguição às ocupações e outros movimentos de luta urbana. “Devemos combater a desmoralização e a criminalização de organizações populares e movimentos sociais. É nossa tarefa reconhecer a importância deles na reconstrução de uma agenda urbana com protagonismo da sociedade e lembrar que muitas de nossas melhores políticas públicas foram criadas a partir de formulações de movimentos sociais”, conclui.
Edição: Minas Gerais