A proposta de privatização dos espaços públicos apresentada pela gestão do prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), tem sido questionada por diversas organizações e especialistas na gerência da cidade.
Para o engenheiro Lucio Gregori, que foi secretário de Transportes no mandato de Luiza Erundina (PSOL) como prefeita da cidade em 1989, a proposta não passa de um “blefe”.
“Blefe para dizer que parece ser mais do que é. Ou seja, a prefeitura já constituiu empresas como a SPTuris [São Paulo Turismo] e a Emurb [Empresa Municipal de Urbanização] na sua origem para ter rentabilidade a partir de propriedades municipais. Nada de novo nisso”, diz o engenheiro.
Segundo Gregori, a novidade é introduzir, como forma de rendimento, bens públicos que não poderiam ser objeto de rendimento, como no caso do parque do Ibiraquera. “O parque em si não pode ser objeto de rendimento pelo setor privado. Você não vai poder cobrar uma entrada para entrar no parque. Se você fizer isso, você está transformando um bem público em bem privado, e isso é ilegal”, explica.
Gregori questiona ainda que, caso fosse necessário angariar lucros com esses bens públicos, a prefeitura poderia ser responsável por isso. “O parque é um lugar onde você pode ter múltiplas atividades rentáveis. Você pode ter restaurante, você pode ter shows, você pode alugar aquele espaço interno para entretenimento. Isso a prefeitura pode perfeitamente fazer ela mesmo, porque fazer isso pelo setor privado?”, questiona o engenheiro.
O Projeto de Lei (PL) 367 criado pela gestão Doria, é um pacote de concessões que inclui parques como o Ibiraquera, mercados municipais, estádios e até o Bilhete Único avança na Câmara dos Vereadores de São Paulo. Ele foi aprovado em primeira votação no começo do mês de julho e será votado novamente em agosto.
Para o engenheiro, um dos criadores da proposta Tarifa Zero, Doria é um “blefe” também como gestor, bandeira que o utilizou para se eleger prefeito de São Paulo.
“Como gestor, é um blefe também. Ele congela a tarifa de transporte coletivo sem nenhum projeto de financiamento disso”, diz. "Aí persegue estudante, caça passe livre estudantil, começa a perseguir velhinhos com essa proposta de que os aposentados vão ter que pagar passagens, faz cobrança de transbordo e coisas dessa natureza”, completa.
Confira os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Como você tem acompanhado esse projeto de privatização da gestão João Doria (PSDB) em São Paulo
Lucio Gregori: Primeiro, o termo privatização já vem carregado atualmente de coisas ideológicas. Parece que está sempre sendo feita uma comparação entre o público - ineficiente, caro - e o privado, supostamente eficiente, rentável. A prefeitura de longa data, aliás a prefeitura e vários outros órgãos do Estado, praticam vendas de bens que podem ser vendidos. Porque existem vários tipos de bens.
Existem os bens de uso comum do povo, e tem outros tipos de bens que podem ser vendidos. Os bens de uso público precisam ter autorização da Câmara para serem vendidos, entre eles prédios públicos, escolas, hospitais.
Há nisso [nessa proposta] uma enorme quantidade de blefe, blefe no sentido pleno da palavra. Blefe para dizer que parece ser mais do que é. Ou seja, a prefeitura já constituiu empresas como a SPTuris [São Paulo Turismo] e a Emurb [Empresa Municipal de Urbanização] na sua origem, para ter rentabilidade a partir de propriedades municipais. Nada de novo nisso.
Só que agora isso virou uma espécie de solução dos problemas dos governos em geral e da prefeitura, em particular. Ou seja, é vendido algo que não vai ser, por isso eu digo que é um blefe. Vai ser feito o que sempre foi feito, só que talvez em outra escala.
Sendo assim, a própria prefeitura não poderia ser responsável pela gestão desses bens e até lucrar com eles?
Esse é o ponto vital. Não é de hoje que bens municipais são objeto de exploração econômica por parte da prefeitura. Isso não é novidade nenhuma. O estádio do Pacaembu, quando os jogos eram realizados lá em grande quantidade, a prefeitura cobrava de quem ia lá usar o estádio municipal. Quem usa o Autódromo de Interlagos paga para a prefeitura, e assim por diante.
A novidade é introduzir, como forma de rendimento, alguns bens públicos que ele, em si, não pode ser objeto de rendimento pelo setor privado, como no caso de um parque. Você não vai poder cobrar para entrar no parque. Se você fizer isso, você está transformando um bem público, em bem privado, isso aí é ilegal. Praça, parque e rua é bem de uso comum do povo, portanto não pode ser objeto de renda.
Agora, o parque é um lugar onde você pode ter múltiplas atividades rentáveis. Você pode ter restaurante, shows, pode alugar aquele espaço interno para entretenimento. Isso a prefeitura pode perfeitamente fazer ela mesmo. Por que fazer isso pelo setor privado?
Vamos imaginar o inverso. O cidadão privado faz uma indústria. Constrói o prédio, põe as máquinas, faz tudo lá. Aí chama um terceiro para ganhar dinheiro com aquilo. Veja, o setor privado não torna público aquilo que é privado, mas o setor público torna privado aquilo que é público. Não tem sentido nenhum.
Nos projetos do Doria estão os termos concessão, ou seja, esses bens passaria para a gestão do setor privado. E entre as contrapartidas, cogita-se, por exemplo, a cobrança nos estacionamentos do parque do Ibirapuera.
Ele pediu autorização à Câmara exatamente para isso. Em alguns casos, ele até pode, eventualmente, vender, mediante essa autorização. Agora, os bens de uso comum do povo ele não vai poder privatizar stricto-sensu. Você não pode privatizar um parque.
Se a área é do parque, tem uma discussão a ser feita. Se área for adjacente ao parque, pode fazer o que quiser. A pergunta que fica é: vamos dizer que, mesmo que possa. Aí eu pergunto: por que não é a prefeitura que faz isso?
Porque você vai passar a um terceiro essa vantagem que você tem, de um espaço que é adequado para estacionamento junto a um grande parque, parque esse que foi criado por você prefeitura. Portanto, você criou as condições do negócio e, na hora H, você passa o negócio para terceiros. Não faz sentido.
O setor imobiliário, por exemplo, aproveita-se do parque. Em volta dele, os terrenos passam a valer bastante, muito mais do que valiam antes do parque. Tem gente que vai vender à vista para o parque do Ibirapuera. E a prefeitura não tira partido disso. Ela que criou aquele espaço que valorizou tudo em volta.
Na verdade, depois disso, tentou-se fazer uma contribuição de melhoria, exatamente para captar essa vantagem que você criou para terceiros. Ou a outorga onerosa, também é uma forma, ou próxima disso, de você obter vantagem de tirar lucros do investimento que a prefeitura fez.
Agora, os problemas da privatização vão na direção exatamente oposta. Você cria as condições para ter lucro e atividade econômica, e deixa isso para o outro, ente privado.
No pacote de privatizações está ainda o Bilhete Único. Quais os perigos dessa inciativa?
No caso do Bilhete Único, o setor privado só vai entrar nesse negócio se for um negócio para ganhar dinheiro. Ele pode ganhar dinheiro com o que a gente chamaria de "float", de flutuação, a diferença de tempo entre o momento que o cidadão compra o bilhete e usa isso em um tempo maior. Portanto, você pode aplicar esse dinheiro, porque só vai pagar o serviço que ele utilizou mais adiante.
Essa possibilidade não parece ser real. Porque se a SPTrans ganha "x porcento" com essa diferença de tempo, de uso do dinheiro, ela não vai cobrar a mais da privatização. O sujeito da privatização sabe o quanto isso rende. A menos que a SPTrans cobrasse mais do que ela ganha. Aí o cara não entra na concorrência.
A segunda possibilidade de ganhar dinheiro com Bilhete Único é produzir o bilhete, fazer a operação, administrar, gerenciar, aquela coisa toda. Isso aí não dá dinheiro e mais: possivelmente a SPTrans já faz isso. Ela não deve produzir o bilhete naquelas casinholas; ela contrata um terceiro para fazer aquilo e gerenciar as pessoas. Aí paga por mês. Portanto, essa parte também não é um grande negócio.
Então, o que pode ser rentável com a privatização do bilhete é o uso dos dados das pessoas, que hoje, sabe-se muito bem, é uma grande fonte de negócios, porque você vende esses dados para uso de marketing e rende bastante.
A prefeitura cria um bilhete único que obriga o cidadão que quiser tê-lo a fornecer determinados dados. E eu não estou falando de dados pessoais que não podem ser usados e ja há legislação a respeito. Falo dos outros dados que interessam ao mercado.
Aproveito para dizer também que está havendo uma discussão sobre o sistema de Wi-Fi gratuito que está sendo planejado na cidade de São Paulo, que não inclui o sistema de proteção de sete pontos de dados que já existe nos Estados Unidos. De modo que também, de novo, o Wi-Fi vai ser uma enorme fonte de informações de mercado, de interesse para o setor privado.
E sobre a gestão do prefeito, como você tem avaliado este período de Doria à frente de São Paulo?
A primeira observação que eu faria é que não sei se ele está agradando a todos que nele votaram. Uma parcela que votou no Doria, sem dúvida alguma, pensa de maneira ideológica sobre a eficiência do Estado. Mas uma parte enorme que votou nele, e não foi por outra razão que ele ganhou no primeiro turno, votou porque ele não era político. Porque os políticos estão com cotação zero no mercado.
Aí é o que eu chamo de blefe. O blefe é você dizer uma coisa que você não é, ou que você tem uma coisa que você não tem. Ou seja, o Doria vendeu a ideia de que ele não é um político e é um gestor. Mas ele é um mal gestor, e a gente pode usar alguns exemplos disso... Ele é um politicão de velho estilo, um estilo Jânio Quadros, mais antiquado que se possa imaginar. Ou de [Fernando] Collor, "Caçador de Marajás", ou de Jânio Quadros, "Varre Varre Vassourinha". Ele é um político que se vende como gestor e, por isso, que eu o chamo de blefe.
Agora, como gestor, é um blefe também. Ele congela a tarifa de transporte coletivo sem nenhum projeto de financiamento disso. O resultado é que ele tem que começar a catar dinheiro em tudo quanto é lugar para bancar isso aí. Aí persegue estudante, caça passe livre estudantil, começa a perseguir velhinhos com essa proposta de que os aposentados vão ter que pagar passagens, faz cobrança de transbordo e coisas dessa natureza.
Na verdade, a leitura que setores podem fazer da gestão Doria é: ele multiplicou a Cracolândia por vários espaços de uso de crack agora; criou um problemão na Praça Princesa Isabel; criou um problemão com o congelamento da tarifa de ônibus sem nenhum projeto adicional; os semáforos entraram em pane na cidade como um todo. Tem muita coisa nessa gestão que beira o ridículo, patético. É doloroso ver uma cidade do porte de São Paulo nessa situação.
Eu fiquei rigorosamente escandalizado com a frase que ele fala na Folha de São Paulo, quando foi para a China: "Eu vou para a China vender São Paulo". São Paulo elegeu o quê? Um prefeito ou um vendedor? Parece que elegeu um vendedor.
Os críticos da gestão Doria afirmam que, quando Fernando Haddad (PT) era prefeito, as pessoas tinham mais acesso à cidade. É possível recuperar isso?
Eu não gostaria de falar coisas que pareçam soluções definitivas. Não tenho essa pretensão, mas eu resumiria a questão dizendo que qualquer espaço urbano no planeta, em São Paulo mais ainda, pelas razões de sua história, necessita de condições de convívio entre as pessoas, pluralidade no convívio.
Também que tenha a possibilidade de as pessoas acessarem os vários aspectos que são propiciados pela cidade, que é a grande vantagem que a cidade tem em relação à vida rural. Se você não tiver as condições de mobilidade para acessar todos esses espaços da cidade, ela não tem vantagem nenhuma para essas pessoas. Ela é ineficaz.
Outra coisa, que vem junto com a pluralidade e a acessibilidade, é que isto seja feito com segurança. E essa segurança não passa pela polícia em si, mas pelo fato de, através desse convívio múltiplo e diversificado, a violência deixar de ser algo necessário.
Uma outra seria que não dá para pensar uma cidade boa, adequada, se o país ainda é preconceituoso. Somos um país de "Casa Grande e Senzala". Então não dá para você ter uma cidade democrática, digamos assim, em um país que não é democrático.
Edição: Camila Rodrigues da Silva