Pela primeira vez na história, o governo de Brasília (DF) decretou um racionamento de água por tempo indeterminado na capital federal e cidades satélites no entorno. O mais alarmante é que a crise hídrica ocorre exatamente no bioma cerrado, o mesmo que é considerado o berço das águas brasileiras. Nele estão os três principais aquíferos da América do Sul: Guarani, Bambuí e Urucuia. Nessa região estão as principais nascentes que abastecem grandes rios no Brasil, inclusive oito das doze regiões hidrográficas no país.
O segundo maior bioma nacional, que abrange doze estados, por outro lado, teve quase metade da sua vegetação nativa devastada nos últimos cinquenta anos. Na última década perdeu territórios que equivalem ao estado do Rio de Janeiro. De acordo com o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o nordeste goiano está no mapa mundial das áreas mais vulneráveis às mudanças climáticas.
Nesse cenário, a expansão da soja está em marcha com o projeto chamado Matopiba (áreas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). E é dessa região que vem o atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi, ex-governador do Mato Grosso, também conhecido por Rei da Soja, um dos maiores expoentes do agronegócio no Brasil.
Tudo isso em meio a uma imensa biodiversidade com mais de 13 mil espécies de plantas e centenas de aves e mamíferos. De acordo com o professor Altair Salles Barbosa, do Instituto Trópico Sub-Úmido-GO, o rio São Francisco está secando, haverá cada vez menos água em Brasíla e a cidade de São Paulo precisará conviver com racionamentos.
O arqueólogo e antropólogo baiano estuda há quase 50 anos o papel do cerrado na regulação dos rios da América do Sul. Segundo ele, a predatória destruição do bioma está afetando a rede de raízes que alimentam os aquíferos que levam água para todas as regiões do país.
“Os dados oficiais mostram que o Cerrado tem 54% de área preservada. No entanto, o método de avaliação é baseado em censoreamento remoto, que só fotografa a copa das plantas. Já os gramíneos, típicos da região, não aparecem. São eles que protegem o solo, pois absorvem a água da chuva, alimentam os lençóis, aquíferos, nascentes e rios. Em poucas décadas rios desapareceram, diminuíram sua vazão ou estão morrendo". Tudo isso em função das grandes corporações mundiais, que mandam no Estado Brasileiro, na opinião do professor Salles Barbosa.
Com a extinção da vegetação nativa, que tinha um sistema esponjoso capaz de manter o equilíbrio da água no solo, os territórios estão muito mais vulneráveis ao efeito estufa devido às mudanças climáticas naturais e promovidas pelo homem. Nesse ritmo de desmatamento, as águas desaparecerão num período muito mais curto e a esfera magnética que nos protege já está sofrendo mutações.
O intelectual defende o modelo organizacional e econômico dos indígenas e ribeirinhos. “Os indígenas fundaram um exemplo de sociedade com equilíbrio ao mundo moderno, que sabia se relacionar com a caça e cultivar determinadas espécies vegetais. A forma mais perfeita de organização humana é a tribal ou clânica desses povos”.
O papel do indígena na preservação
É fundamental atentarmos para a capacidade de produção e conservação das águas realizada pelos povos indígenas, já que muitas das nascentes do cerrado que desembocam em importantes rios estão em seus territórios. Quem explica é Terezinha Dias, pesquisadora da Embrapa do departamento de Recursos Genéticos e Biotecnologia, que desenvolve trabalhos relacionados a sementes crioulas junto aos indígenas.
Segundo ela, essas comunidades prestam um serviço à humanidade por conta da sua relação harmônica com as florestas.
“Esses territórios se configuram como ilhas de vegetação conservando a biodiversidade no Brasil no meio de extensas áreas desmatadas. Precisamos quantificar e perceber a importância desses territórios para a conservação da água”.
O território da etnia Krahô, por exemplo, no nordeste do Tocantins, é um importante fornecedor de água limpa na região. São 302 mil hectares extremamente conservados. Já os territórios indígenas do Parque Nacional do Xingu, que é o maior do Cerrado, enfrentam muitas dificuldades com a contaminação das águas pois suas nascentes estão fora da área demarcada.
Essas discussões culminaram na construção do Plano Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas, que foi pressionado pela bancada ruralista e sofreu algumas perdas, como a questão das faixas livres de transgênicos no entorno tomado pelo monocultivo de soja com agrotóxicos.
“Esses povos têm uma relação muito forte com os elementos da água. O governo, a própria ciência e pesquisa, além da política, não está atentando para a importância desses territórios em termos de conservação de água, que é um bem importantíssimo. Escorre água dos territórios indígenas conservados para servir vários agricultores não indígenas no entorno. São territórios bioculturais, cuja forma de vida tradicional mantém a agrobiodiversidade, produz, conserva e fornece água para o entorno”, conclui.
Reflorestamento para o futuro
Ao ressaltar que a situação do cerrado está bastante crítica, Thomaz Enlazador, do Instituto Biorregional do Cerrado (IBC), reforçou que é preciso tomar decisões para além da ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.
“É importante garantir a conservação dos 240 mil hectares e os corredores ecológicos. Mas sem impedir o avanço descontrolado da agricultura e dos grandes conglomerados, não surtirá o efeito esperado no longo prazo. Se não for possível recuperar de alguma forma o cerrado, pelo menos tentar impedir essa monocultura, que está afetando toda a biodiversidade da Chapada", sustenta o ambientalista.
Edição: Daniela Stefano