“Ex-presidente do Brasil, Lula enfrenta sexto julgamento por corrupção”, afirmou a manchete da Reuters na semana passada. Para quase todos os leitores da mídia internacional, era tudo o que precisavam saber. Após a sentença de nove anos de prisão proferida em 12 de julho, poucos teriam dúvidas quanto à sua culpa.
Lula, um dos presidentes mais populares da história do Brasil, deixou o cargo com 80% de aprovação. Ele também é o líder nas pesquisas para as eleições presidenciais do próximo ano. Claramente, seus oponentes — incluindo a maioria dos principais meios de comunicação do Brasil — gostariam de tirá-lo do jogo.
É sobre isso que essas julgamentos são? Vale a pena examinar as provas no caso em que Lula foi sentenciado, especialmente porque é possível que o juiz Sérgio Moro tenha começado com o mais forte dos seis processos abertos contra ele.
Lula é acusado de aceitar suborno sob a forma de um apartamento de propriedade da construtora brasileira OAS. A empresa comprou um prédio no qual Lula pagava prestações de um apartamento barato (cerca de US$ 67.000) ao proprietário anterior. De acordo com o tribunal, a OAS remodelou um apartamento muito maior, no valor de cerca de US$ 843 mil, e quando este ficou pronto, ofereceu-o a Lula pelo preço do apartamento original.
A primeira coisa que cheira mal é que quase todas as evidências contra Lula vêm das declarações de um criminoso confesso, José Adelmário Pinheiro Filho. Ex-executivo da construtora OAS, ele foi um ator-chave no escândalo infame da Lava Jato. O escândalo envolveu um esquema de corrupção maciça na empresa petrolífera estatal, no qual os subornos foram pagos pelas empresas de construção para receber contratos a preços inflacionados.
Pinheiro obteve redução de mais de 80% de sua pena de prisão de 16 anos em troca de seu depoimento contra Lula.
Claro que há muitos casos nos Estados Unidos e em outros países em que, por exemplo, uma máfia ou um chefe do tráfico de drogas foi condenado com a ajuda de testemunhos de alguém mais abaixo na cadeia alimentar. Mas, em tais casos, normalmente esperamos ver algumas provas corroborantes e sérias de que o réu cometeu o crime como alegado pela testemunha criminal – talvez documentos, testemunhas oculares ou evidências físicas. No caso contra Lula, pesquisa-se em vão a existências de prova na sentença condenatória de 238 páginas (mais sobre isso abaixo).
Além disso, de acordo com o sistema jurídico brasileiro, o juiz que preside o processo, neste caso, Sérgio Moro, também é procurador. Não só isso, mas ele também conseguiu manter as pessoas presas até que falassem. A International Bar Association (entidade que congrega sindicatos de advogados de todo o mundo) observa que “executivos seniores, mais acostumados a jatos particulares e hotéis de cinco estrelas, foram colocados em uma cela espartana, de 12 metros quadrados com banheiro aberto”, e observa que o CEO de uma grande empresa de construção e seu funcionário assinaram acordos de colaboração “após 105 dias de prisão policial e apenas cinco dias depois que os juízes derrubaram outro pedido de habeas corpus”.
O próprio Pinheiro passou cinco meses na detenção preventiva. O maior jornal do Brasil, a Folha de S.Paulo, informou, em junho de 2016, que as negociações de Pinheiro para o acordo de delação foram bloqueadas quando ele insistiu que Lula não teve nenhum papel na remodelação do apartamento e, de acordo com a transcrição, repetiu a mesma versão de Lula da história.
Sobre o juiz: Moro foi pego várias vezes forçando as escalas da justiça no caso de Lula. No ano passado, teve que pedir desculpas ao Supremo Tribunal Federal por ter vazado na mídia conversas telefônicas entre Lula e seu advogado, entre Lula e Dilma e entre a esposa de Lula e seus filhos. Moro também criou um enorme espetáculo midiático com a condução coercitiva de Lula para interrogatório — uma detenção desnecessária, já que o ex-presidente sempre se ofereceu para responder às perguntas. Mais de 200 policiais foram enviados à sua casa, com vazamentos antecipados para a mídia, para criar um drama televisionado de um ex-presidente que aparece como criminoso em todas as principais redes noticiosas.
De volta à evidência: a evidência documental consiste em comunicações internas da OAS indicando que algumas pessoas dentro da empresa achavam que o apartamento triplex estava sendo remodelado para Lula. Supondo que essas comunicações são genuínas (não temos como saber), no máximo isso indica que a OAS pode ter pretendido dar o apartamento remodelado de presente a Lula, a um preço bastante inferior ao seu valor de mercado.
Mas não há provas de que Lula ou sua esposa tenham aceitado o suposto presente ou tenham feito algum esforço para obtê-lo. Pelo contrário, há evidências muito fortes de que não o fizeram. Eles nunca compraram o apartamento e não há documentos que indiquem que eles pretendiam ou tentaram comprá-lo. E eles nunca sequer ficaram no apartamento, contradizendo claramente a teoria do “crime”, de que a OAS “deu” o apartamento a Lula mas disfarçou sua propriedade.
Vale notar que a acusação de “lavagem de dinheiro” que fazia parte das manchetes mundiais, “Lula condenado por corrupção e lavagem de dinheiro”, é apenas um corolário da mesma acusação: o dinheiro é “lavado”, aceitando um apartamento em vez de dinheiro. (Parabéns para Moro e amigos para estratégias de mídia inteligentes: mais uma vez, as manchetes dão a impressão de ações criminosas em larga escala e múltiplas.)
Uma vez que o apartamento triplex não terminou de ser construído até 2014, cerca de três anos depois que Lula deixou o cargo, o juiz Moro teve que se esforçar mais para convencer as pessoas de que Lula cometeu um crime. Como nos Estados Unidos, não é crime um ex-funcionário público no Brasil receber presentes de empresas — veja os milhões de dólares que Hillary Clinton recebeu de Wall Street. Então, o juiz teve que achar que o “presente” do apartamento do qual Lula desfrutou era suborno. A única “evidência” para essa conexão vem do testemunho do já condenado Pinheiro.
Quando a elite ostentosamente corrupta do Brasil organizou um golpe parlamentar para se livrar da presidenta eleita Dilma Rousseff no ano passado, ocorreu um golpe mortal para a democracia do país. O próprio promotor federal do governo concluiu que o delito pelo qual Dilma foi acusada não era um crime. Na verdade, era algo que presidentes e governadores anteriores já haviam feito.
O Partido dos Trabalhadores no poder foi uma afronta à elite tradicional do Brasil, alguns dos quais olham com carinho para a ditadura de apenas três décadas atrás. Imagine a ousadia das massas, eleger um ex-metalúrgico, seguido por uma ex-combatente da resistência guerrilheira contra a ditadura, em que ambos foram presos políticos por defender a democracia e os interesses da maioria pobre e da classe trabalhadora do Brasil.
Essas pessoas querem se certificar de que algo assim, algo que não deveria acontecer sob seu tipo de "democracia", nunca mais aconteça. Eles prejudicaram gravemente o estado de direito e a separação de poderes com o impeachment e remoção de Dilma, e agora eles estão indo atrás de Lula. Eles estão zombando da independência judicial. Mas nunca conseguirão devolver o país ao século 20, quando os avanços econômicos e sociais da era do PT ainda não haviam sido alcançados.
*Mark Weisbrot é co-diretor do Centro Pesquisa para Economia e Política em Washington, D.C., e presidente do Just Foreign Policy. Também é autor do livro "Failed: What the ‘Experts’ Got Wrong About the Global Economy" (2015, Oxford University Press). Você pode subscrever para receber seus artigos aqui.
Edição: Brasil de Fato