Todos os avanços históricos no combate ao trabalho escravo que o Brasil alcançou nos últimos 20 anos estão em xeque por conta das restrições orçamentárias que o governo Temer está impondo ao Ministério do Trabalho e demais órgãos públicos. O país pode em breve chegar a uma situação vergonhosa de ter “risco extremo” de escravidão contemporânea.
A atual situação do Ministério Público do Trabalho (MPT) é um bom exemplo: sem dinheiro para manter em plena atividade seu Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), que conta hoje com apenas quatro equipes – eram 10 em meados dos anos 2000 -, o MPT precisa fazer escolhas trágicas no dia a dia: de cada 10 denúncias de trabalho escravo recebidas, a equipe só tem condições de atender uma. E a situação tende a piorar.
“A realidade é que as operações de setembro já estão comprometidas. Se não houver medidas suplementares, não teremos orçamento suficiente para seguir com as operações”, afirma Tiago Muniz Cavalcanti, Procurador do Trabalho e coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) do MPT, em entrevista ao site Investimentos e Direitos na Amazônia, do Inesc.
Segundo Cavalcanti, todos os órgãos que lidam com a questão do trabalho escravo estão com receio do retrocesso que haverá na política de enfrentamento a essa prática. Para tentar reverter esse quadro, o MPT entrou com uma ação civil pública contra o governo federal para garantir a manutenção do combate ao trabalho escravo do Grupo Móvel, que pode parar pela primeira vez em 22 anos.
“O combate ao trabalho escravo é uma política pública que teve início na década de 1990, é um compromisso internacional e não do governo de plantão”, lembra.
Outro aspecto que tem grande impacto na fiscalização do trabalho escravo é a precarização da legislação trabalhista, que afeta todos os trabalhadores do país e impõe a terceirização irrestrita. Cavalcanti lembra que de cada 10 trabalhadores resgatados, nove são terceirizados.
O Brasil consegue hoje resgatar menos de um terço dos trabalhadores em condição análoga à escravidão que foram identificados – de acordo com estimativa da ONG Walk Free, existiam 161 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão em 2016. O Brasil figura atualmente na 33ª posição entre os países que mais praticam trabalho escravo, em um ranking de 198 países.
O combate ao trabalho escravo é uma política pública que teve início na década de 1990, é um compromisso internacional e não do governo de plantão. A administração atual não pode simplesmente dizer “que não é mais estratégico combater a escravidão”, esta é uma política de estado e deverá necessariamente continuar, independentemente de governo.
Sim. Sem dúvida teremos um número bastante diminuto de operações e de resgates em 2017. Os 680 resgates realizados em 2016 já representam uma queda histórica expressiva. Para dar uma noção mais precisa para a população: até julho desse ano conseguimos realizar somente 110 resgates. É drástico. A ação tenta fazer a auditoria do trabalho respirar um pouco, mas a verdade é que não há dinheiro em caixa e sequer a promessa de termos.
As fiscalizações de rotina no âmbito rural também estão comprometidas. Qual o cenário atual?
Já estão suspensas as fiscalizações de âmbito rural em vários pontos do país. Esse tipo de operação invariavelmente consegue identificar também o trabalho escravo. É comum a auditoria deflagrar operação rural e se deparar com situações de violação de direitos humanos. São recursos alocados no Ministério do Trabalho que repassa para as superintendências regionais. Não há dinheiro sequer para pagar a gasolina dos veículos. A fiscalização da legislação como um todo está seriamente comprometida em todo o território nacional.
Como a situação geral do combate ao trabalho escravo regrediu tanto em tão pouco tempo?
O combate ao trabalho escravo tem essa particularidade: é concentrado em Brasília para promover uma despersonalização da atuação regional. Com isso, dá proteção aos membros integrantes da força tarefa e tira da esfera de poder regionalizado no interior de determinados estados quando há pressões locais.
Mesmo não existindo ideologia político-partidária no enfrentamento à escravidão contemporânea, a situação de piora foi potencializada agora com arrocho fiscal ainda mais forte nesse governo. Em meados da década de 2000, nós tínhamos o dobro de pessoal comparado com agora (10 equipes contra 4), em contrapartida, agora temos o dobro de população economicamente ativa.
A ONG australiana Walk Free estima em seu relatório de 2016 que há cerca de 161 mil trabalhadores escravos no Brasil. Em 20 anos, conseguimos resgatar somente um terço disso. Ou seja: há um número muito superior de escravos do que os órgãos públicos conseguem se fazer presentes dentro da sua limitação.
Dos dez municípios com maior número de casos de trabalho escravo do Brasil, sete estão na Amazônia, sendo cinco deles no Pará, que também é líder na prevalência nacional, com 22,6% dos casos. Além de 25% dos trabalhadores resgatados virem do Maranhão. Quais os maiores desafios da fiscalização do trabalho escravo na Amazônia Legal e o que está sendo feito para que esse quadro melhore?
Concentração de terra, ambiente de difícil acesso e miséria, entre outros fatores, são todos ingredientes que alimentam o trabalho escravo e estão presentes na Amazônia Legal.
Exemplificando na prática: uma região crítica de trabalho escravo era, e ainda, é o sul do Pará, na região de Marabá e da reserva do Bico do Papagaio. Mas tivemos uma melhora significativa lá exatamente por conta da reserva e também pela presença de organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Centro de Defesa de Direitos Humanos (CDDH). Com o grande número de denúncias que recebemos e a expansão da fronteira agrícola, outras regiões também têm se tornado crítica, como é o caso do oeste do Pará, na fronteira com o Amazonas, que tem uma ausência do Estado muito severa.
Em determinadas regiões que não recebemos denúncias, o Estado precisa ser pró-ativo. Mas isso fica mais difícil no cenário que vivemos porque já priorizávamos as denúncias. Imagine: como vamos investigar o que não temos de denúncias se já temos um passivo muito grande? Nós realizamos escolhas trágicas, a cada 10 denúncias que recebemos, atendemos somente uma, por falta de estrutura do aparato estatal.
No plano ideal, que está muito distante, claro que conseguiríamos fazer os dois, mas não temos estrutura necessária para isso. Na Amazônia, criamos alguns grupos interinstitucionais e temos pessoal que atua na questão dos ribeirinhos no Acre e no rio Amazonas com um projeto especifico para atender aquela comunidade.
Antonio Carlos Mello, da OIT, disse em entrevista para o Amazônia INESC que o Brasil “corre o risco de regredir 25 anos no combate ao trabalho escravo” em função de diversos retrocessos recentes. Que avaliação você faz da posição do país hoje frente a esse problema?
A avaliação de todos os órgãos é de que estamos em um cenário de retrocesso na erradicação de trabalho escravo. Nosso enfrentamento, que é reconhecido internacionalmente como modelo, teve início na década de 1990 e não foi espontâneo, não foi de uma hora para outra. Foi um enfrentamento forçado por parte da comunidade internacional. O caso José Pereira que deflagrou isso. Por não termos dado uma resposta adequada a esse caso de violação de direitos humanos nós iriamos ser condenados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim, o Brasil assinou um acordo reconhecendo a escravidão nas terras brasileiras e se comprometeu a tomar medidas. A partir de 1995 de fato o estado começou a implementar políticas públicas, por exemplo o Grupo Especial de Fiscalização Móvel e a Lista Suja (colocar link).
Hoje temos um extenso rol de políticas públicas que enfrentam a escravidão contemporânea, mas que está seriamente comprometido porque temos uma série de retrocessos em vista.
No plano legislativo, vários projetos de lei objetivam alterar o conceito de trabalho escravo e no plano executivo temos muitas outras sinalizações, sendo a maior delas a reforma trabalhista, além do projeto que pretende alterar o trabalho rural. Para se ter uma ideia do que causa a terceirização irrestrita, a cada 10 trabalhadores escravos, nove são terceirizados.
Isso tudo tem impacto na fiscalização. Por exemplo, com o limite imposto pela PEC do teto dos gastos públicos, a própria auditoria do trabalho e os órgãos que levantam essa bandeira, como a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal, têm hoje o seu orçamento relacionado ao enfrentamento da escravidão contemporânea seriamente comprometido.
Nos últimos anos, o cruzamento de dados da lista de trabalho escravo do Ministério do Trabalho com financiamentos do BNDES revela que o banco concedeu empréstimos superiores a R$ 89 milhões para empresas pegas usando trabalho escravo somente na Amazônia Legal. Falta uma análise mais rigorosa das instituições financeiras e um controle social mais firme para esses financiamentos?
Sem dúvida. Nós temos um grupo de trabalho específico na coordenadoria exatamente com a finalidade de estudar esse tipo de política e responsabilidade social de instituições financeiras para verificar se de fato estão ou não cumprindo suas obrigações. A atuação do grupo acontece junto, por exemplo, com a construção da Lista Suja (do Trabalho Escravo), que tem recomendações para instituições públicas e privadas, inclusive com anuência da Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), para que não sejam feitos esses empréstimos. Isso tem que ser analisado com cautela e parcimônia para tomar inclusive medidas contra as instituições financeiras que concederam crédito.
Segundo o procurador-geral do Trabalho, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, a reforma trabalhista “legaliza fraudes que eram praticadas”. Vivemos tempos de retrocessos históricos nos direitos dos trabalhadores?
A reforma é indubitavelmente precarizante das formas de trabalho existentes no país. Trabalho escravo é fruto do vazio da proteção jurídica. Se nós estamos desprotegendo os trabalhadores, estamos favorecendo a eclosão de relações trabalhistas que se tornem escravas e violem direitos humanos. Que é exatamente o que a reforma trabalhista faz.
A terceirização é um elemento forte, por ser uma forma de contratação que traz desproteção aos trabalhadores e que, se você permite a ampla e irrestrita terceirização, como faz a reforma trabalhista, isso favorece a explosão do número de trabalhadores em situação de escravidão. Todas as reformas que estão em curso nesse sentido criam condições muito favoráveis para a profunda violação de direitos humanos, repito.
Após ter a publicação suspensa em 2015 e 2016, a Lista Suja voltou a ser publicada este ano. É possível que essa base de dados passe a ser divulgada com a frequência e transparência anterior?
A lista suja é um dos mais importantes instrumentos no Brasil para combater a escravidão, porque eles temem mais a lista suja que qualquer outra punição imposta. Essa é a grande importância da lista suja, além de dar publicidade e transparência para a sociedade.
Ela teve início em 2003 e funcionou ininterruptamente até o final de 2014. Foram 11 anos funcionando bem. Em 2014, uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias resultou na decisão do ministro Ricardo Lewandowski de suspensão da publicação da lista suja.
No ano passado, em maio de 2016, o próprio Ministério do Trabalho reeditou a portaria que a regulamentava, e isso fez com que a ministra Carmem Lúcia, do STF, extinguisse a ação, afirmando que a nova portaria sanava pontos contestados na ação, como o rito para o empregador exercer sua defesa. Portanto, desde maio de 2016 não existia nenhum impedimento jurídico para a publicação da lista. O que se esperava era que o governo publicasse a lista imediatamente, e isso não ocorreu.
É uma omissão e uma negligência deliberada e absolutamente injustificada, porque não existe qualquer justificativa plausível para deixar de publicar, inclusive do ponto de vista dos acordos internacionais assumidos pelo Brasil.
Fizemos várias reuniões, protocolamos documentos e pedidos de informação, mas não fomos atendidos. O MPT ajuizou uma ação no fim de 2016, e recentemente teve uma decisão liminar da vara de trabalho de Brasília, e agora em maio de 2017 foi determinada a publicação da lista suja por força de ação judicial do MPT. Um cumprimento forçado, não espontâneo. O fato é que essa ação ainda tem decisão final pendente. Não sabemos se o governo de fato irá cumprir como deve, considerando todo o processo recente.
57% dos municípios onde nasceram os trabalhadores resgatados entre 2003 e 2017 possuem pelo menos um terço de seus habitantes vivendo em domicílios nos quais nenhum morador tem ensino fundamental completo, e 91% dos trabalhadores resgatados da escravidão entre 2003 e 2017 nasceram em municípios cujo Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) de 1991 era considerado muito baixo: de acordo com os indicadores e pesquisas, além da fiscalização, qual o arcabouço de políticas públicas que tem mais impacto para diminuir essa incidência?
Temos a noção de que o combate se faz através de uma vertente preventiva. A prevenção primária, que é quando o crime ainda não ocorreu, exige políticas públicas de acesso ao direito social sagrado, como educação, saúde e trabalho digno, para evitar que potenciais vítimas se tornem de fato vítimas. Sobre a prevenção estatutária, quando o crime já ocorreu, precisamos qualificar essas pessoas para evitar que se tornem novamente vítimas e possam ser inseridas no mercado de trabalho digno.
O nosso gargalo é a vertente preventiva. Nisso, o Brasil não é modelo: ao contrário, deixamos a desejar bastante na prevenção primária e secundária, mas o grande gargalo é o acolhimento dessa vítima.
Como foi o processo de organização e consolidação das informações e desenvolvimento da plataforma do Observatório Digital do Trabalho Escravo? Qual a importância dele, na sua visão, para o acesso ao conhecimento, transparência e controle social?
O Observatório é uma iniciativa do Comitê de Gestão de Informações do MPT, que fez uma parceria com a OIT para gestão de informações relacionadas ao trabalho escravo. Tanto o comitê, quanto a OIT, requisitaram uma série de informações constantes de banco de dados públicos e governamentais, a maioria do próprio MPT, que tem uma série de sistemas e informações que não conversavam entre si. O desafio foi organizar e sistematizar as informações .
Por exemplo, hoje nós não temos apenas dados relacionados aos trabalhadores, em determinados municípios e regiões, mas temos informações de evidências de que uma grande parte dos trabalhadores estão sendo aliciados em todo o território nacional. Isso ficou evidente através da análise dessas informações por esse instrumento.
É um projeto em curso, que não está acabado. Temos outros bancos públicos para travar esse diálogo. Tivemos recentemente os bancos de dados do Bolsa Família e pretendemos fazer uma vinculação de quantos trabalhadores resgatados recebem ou não o Bolsa Família. Temos a vinculação com o banco de dados de óbito do SUS para saber se de fato eles morrem mais cedo que os que não estão submetidos ao trabalho escravo. É o pontapé inicial para algo maior que vamos desenvolver.
O Observatório serve tanto para o público em geral, porque qualquer pessoa pode acessar e também dá transparência a esse combate à escravidão contemporânea feito pelos órgãos públicos. Mas, sobretudo, faz com que os próprios órgãos e entidades que hasteiam a bandeira possam se utilizar dessas informações e evidências para aprimorar o combate a escravidão contemporânea.
Isso subsidia os nossos inquéritos, inclusive ações judiciais e projetos e direciona a implementação de políticas públicas. Por isso ele é tão importante.