Por Eliane Pereira
O filme “Polícia Federal: a lei é para todos” estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (7) e conta a história da operação Lava Jato desde quando ainda era um investigação de doleiros e tráfico de drogas até o dia em que foram divulgados os diálogos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a então presidenta Dilma Roussef.
Os produtores do longa metragem classificam o filme como thriller político. A produção segue quase toda a receita do gênero: cenas eletrizantes de perseguição de carros, pessoas encrencadas com a justiça fugindo da polícia, muita inteligência e dedução lógica nos bastidores da investigação que ficou conhecida como a maior operação de combate à corrupção do Brasil. Mas deixa de cumprir um dos pré-requisitos do gênero: falta suspense.
O filme conta a história da operação Lava Jato pelo ponto de vista da Polícia Federal. O ângulo ajuda a aproximar o público dos protagonistas, os delegados interpretados pelos globais Antonio Calloni, Flávia Alessandra e Bruce Gomlevsky. Mas ao escolher o olhar da polícia, o filme repete versões e fatos pisados e repisados pela imprensa e acaba se tornando previsível. Pontos controversos da operação que revelam mais abuso que inteligência foram esquecidos pela narrativa, como o grampo clandestino instalado na cela do doleiro Alberto Youssef ou os vazamentos que ajudaram a criar o clima propício para o impeachment de Dilma Roussef.
Outra ausência do filme são os meios de comunicação, em especial, a dobradinha Globo & Polícia Federal. Qualquer jornalista que tenha acompanhado uma única operação da PF já sabe como funciona o esquema: a TV Globo recebe as informações a tempo de preparar equipes, recuperar imagens, fazer entrevistas e levar ao ar cenas quentes e espetaculares das investigações policiais. Os outros jornalistas, salvo raras exceções, são avisados na hora em que os mandados já estão sendo executados pelos policiais. Esse trabalho afinado não aparece no filme.
A imprensa, que teve papel determinante na Lava Jato, aparece como simples figurante no thriller. É representada por uma coleção de atores desconhecidos que tentam imitar os trejeitos dos jornalistas escalados para cobrir anos de operação. Uma única personagem ganha destaque em meio à massa amorfa: uma repórter estridente e raivosa, que parece representar uma caricatura dos blogueiros de esquerda.
“O interessante do filme é mostrar também o contraponto. Se eu pegar a imprensa e colocar ela como sendo pró o pensamento deles [delegados da Operação Lava Jato], eu não estou trazendo nada de novo”, explica o diretor Marcelo Antunez. Ele categorizou os jornalistas do filme em dois grupos: “quando a imprensa aparece, ela aparece de duas maneiras. Ela aparece de uma maneira completamente imparcial (...) e tem uma pergunta no momento em que começa a esbarrar na política [referindo-se à pergunta da repórter raivosa se a Lava Jato quer prejudicar o PT]. A gente queria mostrar muito esse contraponto que estava de questionamento que eu acho que é saudável”. Chama atenção o cuidado de Antunez em não usar o antônimo de “imparcial” para se referir aos jornalistas que dão o tom desse contraponto fazendo críticas à Lava Jato. Antunez também não discute porque o tal contraponto se aproximou tanto do estereótipo do “petralha”.
Parcialidade
Escolher a voz da imprensa para marcar o contraponto de opiniões sobre a Lava Jato afasta a ficção da realidade. Para o cientista político da UERJ, João Feres, um dos coordenadores do site de monitoramento da grande mídia Manchetometro, a maior carência da cobertura da Lava Jato foi justamente a imparcialidade. “A cobertura da Lava Jato, a partir da eleição da Dilma em 2014, ganha um impacto muito grande na cobertura da política em geral. E o que você vê é a Lava Jato sendo associada à Dilma, à Lula e ao PT. A cobertura da política foi escandalizada e ela foi usada para atingir particularmente esses atores políticos”.
Para Bia Barbosa, do coletivo Intervozes, que defende a democratização da mídia, a parcialidade da cobertura jornalística da Lava Jato não está restrita a tendências partidárias. Ela lembra que os próprios métodos controversos da operação não ganham visibilidade. “Existe um debate acontecendo no Brasil sobre os limites da operação Lava Jato, a ponto de você ter especialistas do campo jurídico falando que a operação está sendo conduzida completamente à margem da lei. Mas a mídia não dá voz a esse debate”.
A professora Vera Karan, diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, escola onde Sérgio Moro também dá aulas, está entre os especialistas que fazem crítica à Lava Jato. A princípio, ela torcia para que o filme ajudasse a registrar as controvérsias da operação. “Eu gostaria que esse filme problematizasse e colocasse as contradições que estão tanto no sistema de segurança pública, quanto no sistema de justiça, para que aquele que assistisse formasse seu juízo”. Para ela, as pessoas não tiveram a chance de fazer isso, justamente porque a mídia não tem pautado essas questões ao assumir apenas “uma versão da história”. Depois da entrevista, a professora assistiu ao trailer do filme. Numa segunda conversa, disse que enterrou as esperanças de ver uma narrativa mais sofisticada da Lava Jato.
CIMENTANDO A VERSÃO
Além dos jornalistas interpretados por atores, o filme também lança mão de uma matéria da repórter veterana da TV Globo, Delis Ortiz, que foi ao ar no turbulento 16 de março de 2016. Delis fechou a matéria do Jornal Nacional sobre a nomeação do ex-presidente Lula como ministro chefe da Casa Civil, medida que foi interpretada como subterfúgio para garantir foro privilegiado ao ex-presidente. “Argumentos à parte, fato é que Lula no Ministério implica o direito ao foro privilegiado, ou seja, ele escapa das mãos do juiz Sérgio Moro em Curitiba”, sintetiza Ortiz.
Perguntado por que usar a jornalista global para ajudar a contar a história na ficção, Marcelo Antunez é categórico. “Acho que dá uma credibilidade. Eu, particularmente, quando vejo filmes baseados em fatos reais e vejo assim (…) cara isso é legal! Eu gosto. Acho que dá uma... sabe, dá uma credibilidade para o que está sendo dito. Sei lá, eu acho interessante, foi uma decisão que eu achei bacana. Eu podia mesmo ter colocado uma atriz lá, sei lá... Eu curti assim”.
No filme, assim como no Jornal Nacional, a versão que predomina é de que o ex-presidente tentou fugir das mãos da Justiça.
Bia Barbosa vê com desconfiança essa sintonia entre a narrativa ficcional e o discurso global. “Quando você completa essa narrativa jornalística e, portanto supostamente verdadeira, com um filme que vai ser lançado e que vai alcançar um público que muitas vezes não acompanha a operação do ponto de vista jornalístico, você aciona o imaginário de uma parte da população com outra linguagem audiovisual que, diferente do telejornal, tem todas as suas prerrogativas de maior liberdade de criação. Você cria um componente bastante perigoso de como a população vai consolidar sua visão sobre essa operação”.
Porém, a equipe de “Polícia Federal: a Lei é para Todos” nega qualquer tentativa de cimentar uma visão sobre a Lava Jato e adotou como uma espécie de mantra a ideia de que o único objetivo do filme é fomentar um debate saudável na sociedade. Durante a coletiva de imprensa realizada em São Paulo, em uma das pré-estreias do filme, a palavra debate e suas variações foram usadas 17 vezes por diferentes integrantes da equipe. A entrevista durou 64 minutos.
Mas apesar do discurso bem amarrado, a atriz Flávia Alessandra, que interpreta a delegada Érica, deixa escapar desejos de influência mais explícitos. Faz isso ao falar sobre o que espera dos jovens em relação ao filme. “Eu acho que para os jovens, a melhor forma de aprender, de se inteirar é via arte. Pode ser um caminho pros jovens que já votam, que talvez ainda estejam meio perdidos, que não tenham ainda entendido, conhecer a história de quando eles tinham 12, 13 anos, de quando tudo começou, e pra eles serem mais conscientes. Porque, não é piegas o que a gente vai falar, mas eles são responsáveis, sim, pelo nosso futuro. Eles são maioria, eles vão votar”.
Se depender do cronograma de distribuição e exibição do filme, os desejos de influência tem tudo para se concretizar. Depois da estreia nos cinemas, “A Lei é Para Todos” vai ser exibido na Rede Telecine, rede de canais por assinatura da Globosat, que pertence ao Grupo Globo. A data ainda não foi definida, mas o contrato de parceria foi firmado desde o início, segundo o produtor do filme Tomislav Blazic. Blazic também garante que o filme vai para a TV aberta. Claro, a Globo. Se as contas de especialistas do mercado cinematográfico estiverem certas, o tempo médio para um filme sair dos cinemas e alcançar a TV aberta varia entre 4 a 5 meses. Vai dá para começar o ano eleitoral de 2018 vendo a história da Lava Jato na Tela Quente.
Os Globais e a Lei
O elenco de “Polícia Federal: A Lei é Para Todos” é formado por atores que ganharam fama pelas novelas da Rede Globo. No mercado cinematográfico, contar com estrelas globais é meio passo para boa bilheteria.
Antonio Calloni, Flávia Alessandra e Bruce Gomlevsky são os protagonistas. Ary Fontoura, Marcelo Serrano e Roberto Birindelli, coadjuvantes. Eles interpretam personagens de destaque na história recente do país. Longe dos roteiros de ficção, também assumiram posições políticas em relação à Lava Jato. Veja quem é quem na ficção e na vida real:
Antonio Calloni/Ivan Romano
Antônio Calloni dá vida a Ivan Romano. O delegado que coordena as investigações na ficção foi inspirado em Igor Romário de Paula, coordenador da Lava Jato na Polícia Federal de Curitiba. Em outubro de 2014, Igor deixou transparecer que compartilhou uma foto em que o então candidato à presidência, Aécio Neves, aparecia cercado de mulheres e escreveu: “esse é o cara”.
No dia seguinte, compartilhou o editorial da revista The Economist, que defendia o voto em Aécio Neves para o bem do mercado. Já o global Antônio Calloni pediu “Fora Dilma”, mas acha que depois do afastamento da presidenta não adianta ficar pedindo “Fora Temer”. Defende a reforma política e se joga de cabeça no discurso de combate à corrupção. Calloni não esconde a estima que guarda pela turma da República de Curitiba.
Ary Fontoura/Lula
Ary Fontoura interpreta Lula, que no filme continua sendo Lula. A participação só acontece no final, na cena da polêmica condução coercitiva do ex-presidente. Ary Fontoura é veterano na Globo e comemorou 60 anos de carreira no Domingão do Faustão a uma semana da aprovação do impeachment de Dilma Roussef.
Nesse dia, defendeu a saída da presidenta e refutou o uso da palavra golpe para se referir ao impeachment. O ator também faz duras críticas a Lula e não quis se encontrar com o ex-presidente para ajudar a compor o personagem.
Bruce Gomlevsky/Márcio Anselmo
Bruce Gomlevsky vive o delegado Júlio Cesar, inspirado em Márcio Anselmo. Na vida real, Márcio foi o primeiro coordenador da Lava Jato.
Bruce Gomlevsky tem carreira fértil no teatro e vive de papéis secundários na TV Globo. O que chama atenção é o alinhamento político do personagem interpretado por Bruce em “A Lei é Para Todos”. Enquanto Júlio, o delegado inventado, declara no meio do filme que fez campanha para o PT, Márcio Anselmo fazia campanha para Aécio em 2014. Em fevereiro, Márcio Anselmo foi transferido para a corregedoria da PF no Espírito Santo.
Flávia Alessandra/Érika Mialik Marena
Flávia Alessandra encarna Beatriz, personagem que tem como referência a delegada Érika Mialik Marena, que batizou a Lava Jato. Em novembro do ano passado deixou de integrar a equipe da Lava Jato e assumiu a superintendência da PF em Santa Catarina.
Já a atriz Flávia Alessandra é ativa nas redes sociais, mas passa longe do debate político. A atriz, que também é advogada, defende as 10 medidas contra a Corrupção e ajudou a convocar as pessoas para a manifestação no dia 4 de dezembro contra as alterações propostas pelo Congresso no projeto do Ministério Público.
Marcelo Serrado/Sérgio Moro
Marcelo Serrado encarna o juiz Sérgio Moro. A participação do personagem Moro no filme é contínua, mas pontual, quase um pano de fundo. O juiz ganha mais destaque quando é preciso decidir pela condução coercitiva do ex-presidente Lula.
Já o global Marcelo Serrano foi ativo nas passeatas contra corrupção e encabeçou o grupo de estrelas que pediu o impeachment. Trocou as camisas da CBF pelo amarelo do #MoroBloco, grupo de seguidores do Moro e que compartilha carros de som com grupos de extrema-direita como o MBL e o Vem Pra Rua.
Serrado está no time dos artistas que fez campanha para Aécio Neves, com direito a depoimento em horário eleitoral. Sérgio Moro, o juiz, também mostra certa proximidade com os tucanos. A foto mais emblemática é a da conversa ao pé da orelha com Aécio Neves.
Roberto Birindelli/Alberto Youssef
O ator uruguaio Roberto Birindelli é outro global de papéis secundários. No filme também não é protagonista, mas interpreta um personagem chave: o doleiro Alberto Youssef. Birindelli recusou o papel várias vezes.
Em entrevista ao site AdoroCinema, explicou o receio: “fazer um filme da Lava Jato é uma insensatez (...) Não há o distanciamento histórico e nem a compreensão necessária”. Mas disse que acabou aceitando o convite pela complexidade do personagem.
Youssef está amarrado ao juiz Sérgio Moro desde o caso Banestado, quando o doleiro foi beneficiado por uma delação premiada numa época em que ainda não havia nem lei sobre isso. Foi preso em 2014, pela Lava Jato, e condenado a quase 122 anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Mas foi beneficiado mais uma vez pela delação premiada e conseguiu uma redução da pena para três anos em regime fechado. Já cumpriu a pena e agora Youssef planeja recomeçar sua vida empresarial.