A aprovação da Reforma Trabalhista sinaliza, antes de tudo, que o Brasil está passando “por um momento de transição histórico”, diz o sociólogo Ruy Braga à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Segundo ele, com as alterações na legislação trabalhista, que entrará em vigor a partir de novembro, o mercado de trabalho brasileiro tende a se tornar mais terceirizado. “Com a universalização da terceirização, em pouco tempo, calculo em torno de cinco anos, teremos uma modificação estrutural dessa relação na qual a maior parte do mercado de trabalho será terceirizada e a menor parte será diretamente contratada. Além disso, nós temos o expediente do trabalho intermitente, que tende a, simplesmente, eliminar qualquer possibilidade de o trabalhador que está na informalidade ascender à condição dos direitos trabalhistas”, pondera.
Na avaliação de Braga, seria necessário reformar a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, mas no sentido de “aumentar a proteção garantindo mais direitos; garantir que o trabalhador fosse mais assistido; aumentar tudo aquilo que diz respeito, por exemplo, ao fortalecimento da representação sindical. Ou seja, o que não foi propriamente feito. A necessidade é fazer uma reforma às avessas daquela que foi feita e aprovada pelo Congresso”.
Para ele, o argumento do governo federal de que a Reforma Trabalhista poderá garantir o crescimento econômico não se justifica. “Historicamente e internacionalmente não há uma relação causa-efeito entre reformas que enfraquecem a proteção do trabalho e aumento do crescimento econômico”. Ao contrário, explica, “na maioria esmagadora dos casos analisados e estudados — relatórios da OIT mostram isso — a reforma trabalhista está associada ou ligada a taxas pequenas de crescimento econômico, ou seja, há uma desaceleração econômica”.
Ruy Gomes Braga Neto é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic. É autor do livro A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012). Recentemente publicou A rebeldia do precariado (São Paulo: Boitempo, 2017). Uma nova entrevista, específica sobre a obra recém editada, publicaremos uma nova entrevista com o autor.
Confira a entrevista.
Que avaliação o senhor faz da reforma trabalhista? O que justificaria uma reforma trabalhista hoje no Brasil? Que pontos deveriam ser alterados e quais deveriam ser mantidos?
Em primeiro lugar é importante que se diga que o “golpe trabalhista” — como costumo dizer, acompanhando meu amigo Souto Maior, da área da justiça do trabalho — foi, sem dúvida nenhuma, devastador para aquilo que podemos chamar da “ampliação da dinâmica dos direitos”, que tem um marco histórico da promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT em 1943. Todas as alterações que foram aprovadas na CLT têm uma perspectiva empresarial nacional. Portanto, foi, de fato, um golpe contra os direitos do trabalhador. É curioso porque é a primeira vez, na história recente do país, que esse fato acontece. A partir de 1943 nós tivemos — a respeito do ritmo desigual e de não ter ocorrido uma evolução linear — a prevalência e a predominância de uma dinâmica de estruturação do mercado de trabalho de universalização de direitos: em primeiro lugar com a CLT, que anunciava não apenas a proteção trabalhista, mas também a proteção social e, com a Constituição de 1988, o fortalecimento da proteção social por intermédio dos direitos sociais — educação, saúde e assim por diante. Com isso temos uma dinâmica que marca a sociedade brasileira contemporânea, que é uma dinâmica de inclusão e de ampliação dos direitos. Com a reforma trabalhista o que tivemos, pela primeira vez na história brasileira recente desde 1943, é um retrocesso nessa dinâmica. Isso significa, basicamente, que nós passamos, hoje, por um momento de transição histórico.
Tenho tentado explorar essa questão por intermédio do conceito de apropriação por espoliação, ou seja, a estrutura social brasileira está transitando de um tipo de regime de acumulação apoiado, predominantemente, sobre a exploração da força de trabalho para outro tipo de regime de acumulação, que é vertebrado pelas dinâmicas da espoliação social, isto é, a pilhagem de direitos da natureza e do trabalhador. A contrarreforma da CLT expressa um momento muito singular na história do país. Apenas uma medida, como a universalização da terceirização, já tem potencial para alterar a estrutura do mercado de trabalho no Brasil. Se analisarmos, hoje, o mercado de trabalho, veremos que a menor parte é trabalho terceirizado, consequentemente, tendo um acesso bem mais dificultado a benefícios e, em grande medida, a direitos, porque as empresas terceirizadas nem sempre são empresas idôneas, pois abrem e fecham com muita frequência, com uma fonte enorme de fraudes — basta olharmos os processos trabalhistas no país.
Com a universalização da terceirização, em pouco tempo, calculo em torno de cinco anos, teremos uma modificação estrutural dessa relação na qual a maior parte do mercado de trabalho será terceirizada e a menor parte será diretamente contratada. Além disso, nós temos o expediente do trabalho intermitente, que tende a, simplesmente, eliminar qualquer possibilidade de o trabalhador que está na informalidade ascender à condição dos direitos trabalhistas.
Isso é muito frequente no setor de serviços, principalmente, porque é possível envolver uma pessoa em uma jornada, em um aumento de pico, e depois ela será dispensada e só se pagará por aquilo que ela efetivamente trabalhou. Com essas duas medidas já temos o horizonte que nos aguarda no futuro em termos de estrutura do mercado de trabalho. É uma mudança estrutural que aponta para uma economia de espoliação que tem esses pilares: a terceirização e trabalho intermitente.
É necessário reformar a CLT? Sim. Seria necessário fazer tudo aquilo que o golpe trabalhista não fez: aumentar a proteção garantindo mais direitos; garantir que o trabalhador fosse mais assistido; aumentar tudo aquilo que diz respeito, por exemplo, ao fortalecimento da representação sindical. Ou seja, o que não foi propriamente feito. A necessidade é fazer uma reforma às avessas daquela que foi feita e aprovada pelo Congresso. Um exemplo típico de uma reforma autêntica da CLT é a introdução de uma cláusula que dificultasse a demissão imotivada, porque o mercado de trabalho é ultraflexível e as empresas contratam e demitem sem nenhuma barreira. Isso demonstra que há um grau máximo de exploração dos processos de trabalho, um nível de degradação da força de trabalho muito elevado, um aumento crescente dos acidentes de trabalho e do adoecimento; tudo isso ligado à alta rotatividade.
O Estado justifica a Reforma como uma necessidade econômica. Pode-se estabelecer uma relação de causa e efeito entre a reforma e o crescimento econômico?
Não, historicamente e internacionalmente não há uma relação causa-efeito entre reformas que enfraquecem a proteção do trabalho e aumento do crescimento econômico. Qualquer pessoa que disser que existe uma relação de causa e efeito entre uma reforma trabalhista e o aumento de crescimento estará mentindo.
Na maioria esmagadora dos casos analisados e estudados — relatórios da OIT mostram isso — a reforma trabalhista está associada ou ligada a taxas pequenas de crescimento econômico, ou seja, há uma desaceleração econômica. O que é perfeitamente compreensível pelo fato de que reformas trabalhistas tendem a comprimir a renda e, estando a renda comprimida, se perde um dos motores da acumulação, que é o consumo. Em alguns casos, que são minoritários, existe uma relação entre as reformas trabalhistas, que eliminam direitos, e algum crescimento econômico, mas esses exemplos — o mais notório é o do México — estão muito mais ligados ao investimento externo do que à dinâmica interna da sociedade mexicana ou do mercado de trabalho no México. O que se tem de certo nesse debate é que reformas de austeridade, em especial aquelas que atingem a proteção do trabalho, são reformas que preparam um momento de crescimento muito lento da economia, e não uma retomada do crescimento econômico.
Isto é o que podemos ter certeza que acontecerá no Brasil, na minha opinião, no próximo período: teremos uma retomada muito lenta, que tem a ver mais com dinâmicas endógenas à estrutura capitalista, do que propriamente com a retomada. E, por outro lado, é líquido e certo que haverá aumento da desigualdade. Teremos crescimento lento com aumento da desigualdade entre as classes sociais; é isso que posso dizer com grau elevado de certeza.
Qual sua avaliação de como foi feita a discussão sobre a Reforma Trabalhista no país? Ela foi muito polarizada? Que pontos essenciais não foram discutidos?
Não se fez discussão e nem debate. Na verdade, a Câmara votou em regime de urgência um projeto de um deputado do PSDB do Nordeste que, basicamente, atacava 130 artigos da CLT, desmontando a CLT. Não houve debate; trata-se de um golpe trabalhista, que é uma imposição de força. A população ainda não se deu conta disso e do que acontecerá no futuro. Ou seja, os empregos, inclusive os empregos de classe média, vão simplesmente desaparecer.
Quais são principais mudanças na legislação e no mundo do trabalho geradas pela Reforma Trabalhista, que passa a vigorar a partir de novembro?
Terceirização, trabalho intermitente, uma dificuldade enorme de organização sindical, ou seja, não se fez nada em termos de representação sindical, ao contrário, se dificulta essa representação sindical e podemos esperar um declínio das formas de negociação coletiva, uma imposição no processo de negociação, normalmente do poder da empresa sobre os trabalhadores.
Como o senhor avalia a ação direta de inconstitucionalidade enviada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ao Supremo, questionando a Reforma Trabalhista e alegando que ela fere os direitos fundamentais do trabalhador pobre?
Considero uma atitude positiva, no entanto percebo que não tem a menor chance de prosperar. O Supremo junto com o Congresso e o Executivo — todos os três Poderes — estão irmanados no golpe trabalhista; eles desejam que o golpe prospere. Não à toa, temos um notório jurista presidindo o Tribunal Superior do Trabalho, que é contra o direito do trabalho e fará de tudo para desmontar a Justiça do Trabalho no país. É uma iniciativa positiva, no entanto não deve prosperar sem, evidentemente, um amplo processo de mobilização da sociedade brasileira, que não se encontra, até o momento, no horizonte.
Dados do IBGE informam que a taxa de desemprego atinge 13% da população ativa, mas para os jovens de 18 a 24 anos ela chega a 27,3%. Quais são as causas disso? O que seria uma política adequada para melhorar os empregos e os salários?
Existem várias explicações para o desemprego juvenil ser mais elevado que o desemprego nacional. A primeira delas é que em momentos de crise as empresas priorizam demitir os trabalhadores jovens porque os jovens geram menos custos rescisórios, e isso é levado em consideração pelas empresas. E, no momento de retomada, as empresas tendem a não contratar trabalhadores jovens por conta dos custos de treinamentos, então, elas preferem acionar trabalhadores já experientes que estão no mercado de trabalho. Não é uma característica brasileira, mas sim uma característica mundial e é muito comum que a taxa de desemprego entre jovens seja superior à taxa de desemprego média nacional.
Do ponto de vista da demanda, é possível desenvolver várias políticas de qualificação e treinamento dos jovens, mas isso não resolverá o problema; é preciso estimular as empresas a contratarem. Não tem muita discussão de como fazer isso: as empresas têm que investir, o país tem que crescer e, ao crescer, incorporar essa demanda de trabalho juvenil. Não existe uma solução ou uma política que os governos possam definir que vá resolver o problema do desemprego entre os jovens; é irreal. O país precisa crescer para absorver esses jovens. Claro que, do ponto de vista da demanda por trabalho, é possível desenvolver programas de qualificação permanente, manter o jovem na escola, investir na educação — o jovem que fica na escola e na universidade por mais tempo tende a não entrar no desemprego, porque não procura emprego. Tudo isso pode ser desenvolvido como política pública, mas para que a taxa de desemprego decline é preciso investimento, mas as empresas não estão investindo, porque elas preferem deixar o dinheiro no banco, rendendo.
O que seria um modelo de Reforma Trabalhista adequado a uma proposta de esquerda e como a esquerda deveria pensar as questões ligadas ao mundo do trabalho nos dias de hoje?
Existem alguns exemplos interessantes para pensarmos isso do ponto de vista internacional. Inclusive, no meu novo livro, analiso o exemplo português em que um governo foi formado e sua base focou prioritariamente na proteção do trabalho, no fim das políticas de ataque ao trabalho e, por outro lado, no reforço da defesa da previdência pública e dos direitos sociais: especialmente investimento em saúde e educação.
A geringonça portuguesa é um modelo interessante para pensarmos alternativas, porque existem alternativas a esse modelo de desmanche neoliberal de desproteção do trabalho e direitos sociais e essas alternativas têm demonstrado sua viabilidade. O caso português é um exemplo disso: o desemprego em Portugal nunca foi tão baixo; hoje a economia portuguesa tem 8% de desemprego, o que é considerado bastante baixo em termos históricos e, por outro lado, o país cresce a quase 3% ao ano, o que também, levando em consideração a trajetória portuguesa, é um crescimento notável.
Diria que existem alternativas, e elas passam pela reversão das políticas neoliberais e por uma aposta na solidariedade, na proteção, nos direitos sociais e na estruturação do direito do trabalho, ou seja, o oposto do que temos hoje no Brasil.
O senhor analisa o caso português logo após a crise de 2008, quando Portugal enfrentou uma crise econômica?
Sim, analiso a crise a partir de 2008 até 2015, quando se forma a geringonça portuguesa. A crise econômica ensejou a adoção de medidas de austeridade impostas pela União Europeia, mas que foram celebradas pelo governo de direita português daquele momento, que foram basicamente medidas de ataque, como temos hoje no Brasil, aos direitos trabalhistas e sociais, com cortes de gastos do governo, aprofundamento de políticas de privatização etc.
Eles passaram por isso entre 2010 e 2011, quando aderiram às medidas do memorando da Troika e isso só foi revertido com a chegada ao poder de um novo governo, comprometido com as políticas de esquerda de defesa do direito social. Portugal, de alguma maneira, oferece para o Brasil um exemplo do que ocorreu, está ocorrendo e ocorrerá com a sociedade brasileira caso não tenhamos uma reversão do quadro de adoção dessas políticas neoliberais no país.
Edição: IHU On-Line