Mestra Pedrina de Lourdes Santos, capitã da Guarda de Massambique de Nossa Senhora das Mercês, prepara-se para falar à turma. Acende um cachimbo (“para entrar em contato com a espiritualidade”) e passa a entoar um canto de matriz banto ancestral. É acompanhada por um coro de estudantes da Universidade Federal de minas Gerais (UFMG) de variados cursos – Ciências Sociais, Psicologia, Farmácia, Engenharia, Comunicação etc – matriculados na disciplina “Catar folhas: saberes e viveres do povo de Axé”.
Vinculada ao programa de Formação em Saberes Tradicionais, que desde 2014 oferta cursos que dialogam com os conhecimentos e as tradições indígenas, quilombolas e afro-brasileiras, a disciplina é ministrada por sacerdotisas, pais e mães-de-santo de Belo Horizonte e região.
Além de Pedrina, os estudantes assistem aulas com a mestra Iyanifá Nylsia, iniciada há três décadas na tradição yorubá, mãe Efigênia da Conceição, matriarca no quilombo Manzo, na zona leste da capital mineira, e pai Ricardo de Moura, líder da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, que opera há 50 anos no complexo da Pedreira Prado Lopes, na periferia de BH.
Com o objetivo de abordar “as artes rituais, os estilos de pensamento e os modos de existência das comunidades afro-brasileiras”, a disciplina, além dos encontros em sala, promove visitas dos alunos às festas e rituais em terreiros, comunidades e quilombos onde atuam os mestres.
Numa das aulas de pai Ricardo, por exemplo, atabaques foram levados à sala, que foi também perfumada por ervas e incensos. O mestre falou sobre a cosmogonia da umbanda, tratando da função e significado de cada orixá.
Já na aula de mãe Efigênia – que diz não ter sido alfabetizada, e sim “afrobetizada” no local onde hoje se localiza a comunidade quilombola de Manzo –, falou-se das ervas medicinais e sagradas dentro dos cultos de candomblé. São inúmeras as funcionalidades: o alecrim é antidepressivo; chá de boldo atua contra dor de cabeça e enjoo; para infecção urinária, a erva do cabelo do milho, e por aí vai.
O Reinado de Nossa Senhora do Rosário
Em sua primeira aula, mestra Pedrina falou sobre o Reinado, também conhecido por Congado, ressaltando o caráter de resistência na forma como os negros escravizados ajustaram suas crenças e tradições à simbologia cristã.
Originado nas senzalas, o Reinado trata-se de um sistema de artes e saberes que se associa à devoção à Nossa Senhora do Rosário, ao mesmo tempo em que faz referência aos antigos reinos da África decompostos pelo tráfico de escravos.
Pedrina convidou os alunos para a Festa do Reinado em Oliveira, a 150 km de BH. Um “ritual mágico”, como definiu, que os alunos acompanharam nos dias 2 e 3 de setembro.
Cortejo sai às ruas de Oliveira. Foto: Julia Braga
Documentada em vídeo pelos estudantes, a festa teve início na noite de sábado com a saída do “Boi” da Casa dos Congadeiros – uma alegoria que “drena as más energias” pelas ruas da cidade enquanto é acompanhada por uma multidão de milhares de pessoas.
Daí, passa-se à roda de candombe, que atravessa a madrugada embalada por tambores e atabaques com mais de 200 anos que pertenceram aos ancestrais moradores de Oliveira. A primeira parte da festa – que só termina em definitivo dali a sete dias – não é interrompida pelo sono e acaba no dia seguinte, quando, às 11h, o cortejo de reis, rainhas e congadeiros segue até a Catedral de Oliveira. Na missa, celebra-se Nossa Senhora e a princesa Isabel, mas os ouvidos mais acostumados percebem que os Orixás também estão ali representados.
Formação em saberes tradicionais
César Guimarães, professor da Comunicação e um dos articuladores do programa de formação em saberes tradicionais, explica que os contatos com os mestres começaram em 2012, no Festival de Inverno da UFMG.
“Lá, montamos as Casas da Memória, dedicadas ao Reinado e candomblé, onde conhecemos alguns dos mestres. Passamos a imaginar uma maneira de recebê-los na universidade como professores, já que eles têm mestria reconhecida em seus meios e poderiam sustentar um curso”, conta. Desde então, entre convidados especiais e os que ofereceram cursos regulares, a UFMG recebeu 36 mestras e mestres, que lecionaram 14 cursos.
Para além das disciplinas na graduação, a presença deles tem viabilizado pesquisas de mestrado e doutorado. É o caso da pesquisa de Bárbara Altivo, doutoranda em Comunicação que desenvolve um trabalho de experiência e ativismo junto às crianças que elaboram o Congado infantil em Oliveira.
“A universidade tem se reconfigurado para poder acolher esses mestres, na medida em que eles têm outros tempos, outras formas de ensinar”, diz. “Quando são chamados para dar aulas, precisamos estar abertos ao que eles têm para passar à universidade, não só em termos de conteúdo folclórico ou ilustrativo de teorias alheias, mas sobre a própria relação humana. Ao chegar aqui, eles afetam a própria universidade”, pontua.
Em outra frente, capitã Pedrina, Iyanifá Nylsia, mãe Efigênia e pai Ricardo vêm suprir uma necessidade legal: desde a lei federal no 10.639, de 2003, as escolas de nível fundamental e médio têm de incluir em suas grades o ensino da história e cultura afro-brasileira e, como determina a lei, o foco deve ser não só na repisada escravidão, mas no resgate da contribuição do povo negro nas áreas sociais, econômica e políticas na história do Brasil.
Também por isso, parte dos inscritos na disciplina são professores da rede pública de BH que receberam convites por intermédio da Secretaria de Educação do Estado.
Uma dessas profissionais, Deicilene Cruz aceitou o convite para conhecer melhor as religiões de matriz africana e para “levar, para dentro da escola, o respeito a essas manifestações”. Ela acredita que tais temáticas são pouco trabalhadas e que introduzir os alunos neste universo é um primeiro passo para que eles reconheçam as contribuições de outros povos – que não só os portugueses – para a cultura brasileira.
Catarina Xavier, professora de história, já se interessava antes pelo assunto. No entanto, reconhece que se trata de um tema espinhoso nas salas de aula, já que muitos alunos associam o candomblé e a umbanda a estereótipos negativos. Para muitos, conta, Exu, o Orixá que liga o mundo dos homens ao mundo dos Orixás, seria o demônio em pessoa. “Com o conhecimento adquirido aqui, terei mais argumentos para apresentar aos alunos”, conclui.
Problemas e possíveis retrocessos
À parte de certos avanços legais, contudo, os adeptos da umbanda, candomblé e as comunidades quilombolas seguem convivendo com a repressão policial, jurídica e com o preconceito.
Em julho deste ano, um juiz em Santa Luzia, na região metropolitana de BH, determinou um dia, horário e como devem ser realizados os cultos em um dos terreiros de candomblé da cidade. Em seu despacho, definiu que a casa poderia executar as atividades somente nas quartas-feiras e em um único sábado do mês, utilizando apenas um atabaque. Mãe Efigênia, uma das professoras do Catar Folhas, ressaltou que tal determinação praticamente inviabiliza os cultos na cidade. O caso segue em discussão em instâncias superiores.
Em abril deste ano, o governo Temer mandou suspender as titulações de territórios quilombolas até que o STF decida sobre uma ação apresentada pelo Democratas (DEM) que quer a derrubada de um decreto de 2003, que traz os critérios para a demarcação de terras ocupadas por quilombolas. O julgamento não tem data prevista.
Edição: Joana Tavares