Paraná

Carta da Jornada de Agroecologia aponta retrocessos no campo e na cidade após o golpe

Leitura de documento encerrou atividade realizada no Paraná

|
A troca de mudas e sementes também marcou o encerramento da 16ª Jornada de Agroecologia
A troca de mudas e sementes também marcou o encerramento da 16ª Jornada de Agroecologia - Leandro Taques

A 16ª Jornada de Agroecologia, na Lapa (PR), reafirmou o projeto popular de agricultura, o fortalecimento e articulação de movimentos e organizações do campo e da cidade e o avanço do Plano Popular de Emergências, lançado em maio deste ano pela Frente Brasil Popular, para conter a crise. Esses posicionamentos estão contidos na Carta Política da 16ª Jornada de Agroecologia – documento que resulta dos quatro dias de atividades.

O evento foi encerrado no sábado (23) com a mística de partilha das sementes crioulas que celebrou as guardiãs e guardiões da biodiversidade e com a leitura da carta. O documento defende o modelo agroecológico como projeto popular e soberano para o povo brasileiro. “A agroecologia é caminho possível de desenvolvimento nacional que alimenta os trabalhadores e trabalhadoras da cidade e do campo com comida de verdade e respeita a nossa imensa biodiversidade e cultura”, aponta trecho da carta.

A Carta Política denuncia os retrocessos e o desmonte do Estado brasileiro e a articulação de setores da burguesia, judiciário e grande mídia para consolidação do golpe que derrubou Dilma Rousseff (PT) da presidência da república. O ataque à garantia de direitos previstos na Constituição, o congelamento dos investimentos públicos e o aumento da concentração de renda e exploração dos trabalhadores fazem parte do documento.

Foto: Leandro Taques

A carta repudia medidas do Governo Michel Temer como a Medida Provisória 759/2016, que desmonta marcos da regulação fundiária; o Projeto de Lei 4059/2012, que permite a venda de terras brasileiras a estrangeiros; a redução de orçamento para regularização da terras da reforma agrária e demarcação de terras indígenas e quilombolas; o esfacelamento de programas voltados à agricultura familiar como o PAA (Programa Nacional de Aquisição de Alimentos) e PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), além da falta de execução de do PLANAPO (Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica) e PRONARA (Programa Nacional para Redução de Agrotóxicos).

Propostas que afetam tanto trabalhadores do campo quanto da cidade, como as reformas trabalhista e da previdência também são criticadas pelas entidades e organizações da 16ª Jornada de Agroecologia, bem como o aumento da criminalização dos movimentos sociais, dos crimes no campo e a escalada de violência contra mulheres, negros e população LGBT.

Ao fim da carta, a Jornada de Agroecologia é reafirmada como um importante espaço de troca de experiências e fortalecimento da articulação entre movimentos e organizações do campo e da cidade. O documento também cita o Plano Popular de Emergência como saída para a crise e fala da necessidade das reformas política, agrária, urbana, tributária, judiciária e dos meios de comunicação.

Estima-se que a 16ª Jornada de Agroecologia reuniu cerca mais de 2 mil pessoas de todas as regiões do Brasil e de 12 países. O evento deste ano homenageou o militante Valmir Mota de Oliveira, o Keno, assassinado em 2007 por uma milícia a mando da multinacional Syngentam em Santa Tereza do Oeste (PR). “Foi uma jornada mais robusta, a mais completa, com muito mais ideário, mais prática e intercâmbio entre o campo e a cidade. Ela mostrou como a agroecologia se enraizou enquanto método”, afirma Roberto Baggio, coordenador do MST no Paraná.

Leia na íntegra a Carta Política  da 16ª Jornada de Agroecologia, na Lapa (PR):

 

Carta Política da 16ª Jornada de Agroecologia: Keno Vive!

Nós, mais de 2.000 camponeses e camponesas, pequenos agricultores e agricultoras, jovens, trabalhadores e trabalhadoras, educandos, educadores, mulheres, crianças, idosos e idosas, internacionalistas, militantes, comunicadores e comunicadoras, artistas, povos indígenas, comunidades tradicionais, quilombolas, faxinalenses, ribeirinhos e ribeirinhas, posseiros e posseiras, pesquisadores e pesquisadoras, advogados e advogadas populares e outros defensores e defensoras de direitos humanos de mais de 100 movimentos e organizações sociais e populares, vindos de todas as regiões do Brasil e 12 países, reunidos na 16ª Jornada de Agroecologia na Lapa, Paraná, entre os dias 20 a 23 de setembro de 2017, construímos com nossas mãos a resistência e a esperança.

Denunciamos os desmontes do Estado brasileiro, a concentração da riqueza e a expropriação de nossas terras pelo latifúndio e pelo agronegócio dominado pelos transgênicos e agrotóxicos e suas transnacionais. Anunciamos e defendemos permanentemente um modelo de agricultura agroecológica que traz as bases reais para o projeto popular e soberano do povo brasileiro. A agroecologia é caminho possível de desenvolvimento nacional que alimenta os trabalhadores e trabalhadoras da cidade e do campo com comida de verdade e respeita a nossa imensa biodiversidade e cultura.

Nesta 16ª Jornada, Keno Vive! Assassinado pelas milícias da transnacional Syngenta, em 2007, o companheiro Keno tombou lutando, assim como tantos outros militantes que rememoramos por terem sido lamentavelmente marcados na história brasileira de cercas e sangue. A memória de todos esses companheiros e companheiras mantém viva a chama de nossa luta.

Marca a 16ª Jornada de Agroecologia um ano do golpe, com a mais violenta ofensiva à democracia, aos direitos e à soberania brasileira. A crise capitalista de superprodução, que se estende desde 2008, reorganizou as burguesias internacionais e locais, com ofensivas imperialistas na América Latina. Impõe-se a dominação por meio da guerra, de golpes, de espoliações das reservas naturais estratégicas, dos alimentos e da biodiversidade, para consolidar a divisão internacional do trabalho que pretende acirrar a dependência latino-americana. No Brasil, se articulam a burguesia ruralista e especulativa, setores do judiciário e da grande mídia comercial, para edificar um projeto político-econômico neoliberal que culminou na deposição da presidenta eleita em 2016. Desde então, o governo ilegítimo implantou medidas que reforçam a posição do Brasil como exportador de commodities, com reprimarização da economia nacional. Investe-se na consolidação do modelo agroexportador brasileiro, que exige a importação do pacote tecnológico de maquinários, insumos, sementes, fertilizantes e agrotóxicos das grandes empresas transnacionais.

São incontáveis os retrocessos sociais, com rompimento do pacto da Constituição de 1988, que garantia amplos direitos sociais, especialmente com a Emenda Constitucional 95/2016 que congela os investimentos públicos sociais por 20 anos. Aumentam-se a concentração de renda, a superexploração dos trabalhadores e trabalhadoras, a exploração dos bens comuns do povo, a retirada de direitos, a violência e a criminalização aos movimentos sociais, o aprofundamento da privatização e mercantilização da saúde, da educação, da terra, da comunicação e até da natureza, com medidas que aqui denunciamos e registramos, tais como:

  • A aprovação da Medida Provisória de nº 759/2016 que desmonta os marcos de regularização fundiária rural e urbana, reforça a grilagem e a especulação imobiliária;
  • O Projeto de Lei de nº 4059/2012, que possibilita a venda de terras brasileiras a estrangeiros;
  • A drástica redução de orçamento para a titulação de territórios quilombolas, do reconhecimento do território de povos e comunidades tradicionais e da desapropriação de terras para reforma agrária. O governo reduziu em 2017 quase 64% dos recursos de 2016 (de R$ 551,8 milhões para R$ 201,7 milhões);
  • O esfacelamento das políticas nacionais voltadas à produção familiar orgânica ou agroecológica como o Programa Nacional de Aquisição de Alimentos (PAA), o PAA sementes e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), além da inexecução do II Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO) e do Programa Nacional para Redução de Agrotóxicos (PRONARA). Neste ano foi destinado o menor volume orçamentário desde 2005 aos programas e políticas públicas em agroecologia;
  • A reforma da previdência, que atinge mais severamente os trabalhadores e trabalhadoras rurais, com a reforma trabalhista e a ameaça de um Projeto de Lei que praticamente legaliza o trabalho análogo ao escravo no campo (PL 6.442/2016);
  • O fechamento de escolas do campo e a imposição da escola do pensamento único e sem partido, além de projetos que visam acabar com a educação para a igualdade de gênero;
  • A legalização do desmatamento e da financeirização da natureza e da biodiversidade brasileira com as alterações normativas previstas para flexibilização da utilização privada de Unidades de Conservação (MPs 756 e 758) e do Licenciamento Ambiental (PL 3729/2004); O anúncio da extinção da RENCA (Reserva Nacional do Cobre e Associados) na Amazônia, com o objetivo de atrair investimentos privados de mineração, causando graves impactos ambientais e à população local;
  • A liberação da utilização de agrotóxicos cancerígenos já vetados em outros países com o afrouxamento do registro destes agroquímicos perante à ANVISA, via Medida Provisória, além da possível aprovação do PL do veneno (PL 3200/2015) e autorização da pulverização aérea nas cidades (Lei 13.301/2016);
  • As ameaças de projetos de lei da bancada ruralista como o avanço no Senado do PLC 34/2015 que visa o fim da rotulagem dos transgênicos; do PL 827/2015, que muda a lei de Cultivares para limitar os direitos dos agricultores e agricultoras a produzir suas próprias sementes; e o PL 1117/2015 chamado de “TERMINATOR”, que pretende liberar a comercialização de sementes estéreis;
  • A crescente criminalização das lideranças dos movimentos sociais, cuja instauração da CPI do INCRA/FUNAI foi o exemplo máximo da tentativa mais uma vez de amedrontar e frear os defensores que lutam pela terra no país;
  • O desaparecimento formal e material de instituições que promoviam a igualdade de gênero, raça e diversidade sexual. Nesse sentido, assistimos ao aumento contínuo das vítimas por violência contra as mulheres, negros e LGBT, com o intuito de minar, pelo medo e pela morte, um Brasil diverso e igualitário;
  • O recrudescimento do Estado brasileiro nas políticas públicas e de representatividade das mulheres, negros e negras, que formam a maior parte da classe trabalhadora neste país. A diminuição dos espaços de poder ocupados, da distribuição de renda e moradia acirram a divisão sexual e social do trabalho e a violência;
  • A violência também se escancara no contexto de elevação brutal do número de assassinatos no campo. No ano de 2017 já se contabilizam 65 mortes. Em 2016 foi diagnosticado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) o dobro de casos de assassinatos de trabalhadores rurais em relação à média dos últimos 10 anos – de 2005 a 2015. Com um agravante: aumento das chacinas como as de Colniza-MT e Pau D´arco-PA. Também registrou-se o maior número de conflitos no campo dos últimos 32 anos, numa média de quase três registros por dia no país.
  • Já no sistema de justiça, especialmente no Judiciário, o mais antidemocrático dos poderes e que teve papel central na arquitetura do golpe de Estado em 2016, avança a criminalização de lideranças e movimentos sociais e chancela a retirada brutal de direitos. Neste período destacam-se a operação Agrofantasma e Castra que criminalizaram organizações, agricultores e militantes da agroecologia;

Reforçamos que tais medidas impactam igualmente a população da cidade, especialmente com as contrarreformas trabalhista (Lei 13.467/2017), previdenciária (PEC 287/2016) e política (PEC 282/2016), além do avanço do processo de privatização da educação e da saúde e a desvinculação dos investimentos nessas áreas.

Apesar deste quadro de retrocessos gerais na conjuntura agrária e urbana brasileira, nós, guardiãs e guardiões da  agrobiodiversidade e construtores da agroecologia, reafirmamos que a Jornada permanece como um importante espaço de contínua troca de experiências e de (re)construção do saber/fazer/sentir camponês. Diante da impossibilidade de diálogo e negociação com o Governo Federal e do alinhamento de pautas entre os três poderes, reafirmamos ainda a urgência em fortalecer a articulação dos movimentos e organizações sociais do campo e da cidade.

Afirmamos o Plano Popular de Emergência, com a necessidade de reconstrução da democracia e acesso às políticas públicas na saúde, trabalho, educação, cultura, moradia, combate à violência e desigualdade, seguridade social, lazer, crédito e esporte. Para isso uma reforma política democrática de nosso sistema político é fundamental, além da realização de grandes reformas de base essenciais em nosso país: agrária, urbana, tributária, de democratização da mídia, dos meios de comunicação, do judiciário e do sistema de justiça.

Lutamos pela desapropriação dos latifúndios, das áreas em dívida irregular com a União e bancos públicos, das propriedades rurais cujos controladores estejam condenados por trabalho escravo, corrupção e desmatamento criminoso; pela implantação de um programa nacional para a produção, industrialização e comercialização de alimentos saudáveis; pela reestruturção do PAA e PNAE; pela linha de crédito do BNDES para a implantação de agroindústrias cooperativadas de assentados e agricultores familiares; pela implementação da Política Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos (PNARA) e do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO), com a taxação de IPI e ICMS sobre todos os agrotóxicos; pela titulação de todas as terras de comunidades quilombolas, demarcação de todas as áreas indígenas e pelo reconhecimento das identidades e dos territórios de comunidades tradicionais; pela recriação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); pelo reestabelecimento da Ouvidoria Agrária Nacional; pela transformação da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) em uma empresa estatal voltada à compra de alimentos da agricultura familiar e à adoção de programas públicos para distribuição de bens agrícolas; além da revogação da Emenda Constitucional 95 que congelou os investimentos sociais do Estado Brasileiro.

Nos somamos e fortalecemos as resistências populares na América Latina, em especial na Venezuela, que sofre ataques contínuos do imperialismo ao projeto bolivariano. Em nosso país, pautamos a unidade popular e do campo progressista da sociedade, em especial as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, já que sem democracia e sem direitos não há agroecologia e soberania.

Semeamos permanentemente novos valores, novos homens e mulheres e um novo projeto de sociedade e agricultura com protagonismo dos trabalhadores e trabalhadores e igualdade racial e de gênero e sexual. Sem feminismo também não há agroecologia.

A Agroecologia é prática, ciência, movimento, sendo a única saída democrática possível para um projeto popular soberano e para a superação da crise e da posição dependente brasileira. É condição para efetivação dos Direitos Humanos ambientais, culturais, econômicos e sociais, em especial ao da terra e território, à alimentação saudável, ao livre uso da agro e sociobiodiversidade e dos conhecimentos tradicionais a elas associados e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável.

Keno tombou, mas enraizou. Sua semente germinou, brotou e permanece dando frutos. Keno está vivo entre nós, cuja história inspira força para a construção da sociedade que queremos.

Rumo à 17ª Jornada de Agroecologia!


Terra livre sem transgênicos e agrotóxicos!
Construindo um projeto Popular e Soberano para a Agricultura.
Cuidando da Terra, Cultivando Biodiversidade e Colhendo Soberania Alimentar.

Lapa, Paraná, Brasil, 23 de setembro de 2017.
Plenária da 16ª Jornada de Agroecologia.

Edição: Redação