Em sua passagem pelo Brasil, o economista Cosmas Musumali, secretário geral do Partido Socialista da Zâmbia, criticou movimentos de esquerda que, ao longo dos anos, pensaram uma revolução sem tratar o tema do racismo: "Não dá para fazer nenhuma luta esperar. Todas as lutas têm que ter espaço para serem feitas aqui e agora. Sabemos que, dentro da luta de classes, as questões sobre raça e gênero têm que ser incorporadas."
Musumali conversou com o Brasil de Fato no início de setembro na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema (SP), onde participou de um seminário sobre o pensamento pan-africano.
O pan-africanismo articulou, na segunda metade do século 20, negros das Américas do Norte e Central e do Caribe, em torno dos direitos dos povos negros e da libertação dos territórios colonizados no continente africano.
De acordo com o economista, o interesse pelos pan-africanistas tem aumentado entre ativistas e teóricos brasileiros. A publicação do livro “Luta de classes em África”, do ganense Kwame Nkrumah, é um exemplo. Nkrumah, que chegou à presidência da Gana em 1960, é um dos principais expoentes do movimento. A obra dele é de 1970, mas somente em 2016 ganhou uma edição brasileira.
Musumali esclarece que o pan-africanismo tem como objetivo a emancipação das populações negras. "A gente tem que entender que o pan-africanismo é ainda uma plataforma necessária para a luta do povo africano e seus descendentes porque, onde quer que estejam, têm que enfrentar situações específicas que outras pessoas não têm", disse.
Com relação à aplicação da teoria no Brasil, ele ressalta a importância que ela tem nesse momento de luta contra o golpe parlamentar que destituiu a ex-presidenta Dilma Rousseff. Para ele, é preciso "ter uma posição formulada em conjunto a respeito do que está acontecendo" porque "os descendentes de africanos no Brasil são as pessoas que mais estão perdendo com as reformas que estão sendo aplicadas".
O militante trabalhou em diversos países africanos e deu aulas na Universidade da Zâmbia e na Phillips University, nos Estados Unidos. No ano passado, foi candidato à vice-presidência da Zâmbia pelo Rainbow Party, partido socialista zambiano. Hoje, ele se dedica à militância política — que ele define como a construção de bases para um futuro justo e humano para a Zâmbia e a África.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: O livro de Kwame Nkrumah “Luta de classes em África”, de 1970, teve sua primeira edição brasileira publicada recentemente. Qual é o interesse em revisitar esse autor hoje?
Cosmas Musumali: O capitalismo se encontra em uma crise e, por muito tempo, nós nos satisfizemos com explicações neoliberais. Então, as ideias de pessoas como Nkrumah ressurgem como mais uma abordagem sobre a luta de classes. Essa crise faz com que muitas pessoas estudem para tentar entender o que está errado com o capitalismo.
Além disso, ficou claro para os países africanos que a independência deles foi formal, mas não econômica. É essa busca por respostas mais humanizadas para o continente africano, que fazem com que ideias de pessoas como Nkrumah se tornem mais interessantes.
Por um longo tempo, Nkrumah foi considerado um pan-africanista que não acreditava muito no socialismo africano. Mas isso não é verdade porque, depois que foi afastado do poder [Nkrumah foi presidente de Gana entre 1960 e, em 1966, sofreu um golpe de Estado], ele estudou e escreveu muito sobre o que é o socialismo. Seu socialismo era baseado na luta de classes. É por isso que hoje ele se tornou mais interessante.
Como podemos definir o pan-africanismo hoje?
O pan-africanismo sempre foi sobre a emancipação dos povos africanos e seus descendentes. Isso não mudou até hoje. Desde 1760, o espírito do pan-africanismo tem existido nos descendentes dos africanos. Nesse período, seus expoentes acreditavam na religião como forma de emancipação.
Em meados de 1890, o movimento se tornou mais próximo das reivindicações dos direitos civis. Mas, desde 1945, o pan-africanismo trata sobre direitos políticos. Em 1960, se assumiu contra o neocolonialismo e a opressão dos povos africanos, onde quer que se encontrem.
O conteúdo pode ter mudado, mas o objetivo básico, que é a emancipação, nunca mudou. No futuro, o pan-africanismo também tratará sobre emancipação, além de outras dimensões mais amplas, como política racial, meio ambiente, gênero e a luta contra as estruturas patriarcais.
A gente tem que entender que o pan-africanismo é uma plataforma ainda necessária hoje para a luta do povo africano e seus descendentes porque, onde quer que estejam, eles têm que enfrentar situações específicas que outras pessoas não têm.
Vale lembrar que a exploração e a desigualdade não são exclusivas aos africanos e descendentes, então, trabalhar junto com outros povos é importante. Lutar, por exemplo, pelo feminismo, contra o sexismo ou pelos direitos dos povos indígenas se torna um dever para o pan-africanismo.
Qual foi a contribuição do pensamento marxista para o pan-africanismo?
Desde o início, os marxistas se envolveram com o pan-africanismo. A partir daí, foi possível pensar que a luta de classes não nega o racismo, mas o apresenta como parte dela.
Ao longo do tempo, marxistas também cometeram erros. Alguns deles negligenciaram o racismo. A ideia de alguns marxistas era fazer a revolução primeiro para depois tratar do racismo, uma argumentação muito simplista e barata.
Não dá para fazer nenhuma luta esperar, todas as lutas têm que ter espaço para serem feitas aqui e agora. Sabemos que, dentro da luta de classes, as questões sobre raça e gênero têm que ser incorporadas. É muito difícil separar o marxismo do pan-africanismo. Se forem separados, o marxismo vira mecânico e o pan-africanismo fica reduzido.
No último ano, após o golpe de Estado no Brasil, partidos políticos e movimentos sociais têm procurado criar uma unidade no país. Como o pensamento pan-africanista pode nos ajudar nesse processo?
Meu entendimento é que as tendências fascistas estão sempre agindo no campo cultural e econômico. Mas não têm hegemonia. Trabalhar juntos contra um governo como esse que vocês têm hoje no Brasil é urgente. A gente não pode ter o luxo de ficar fragmentado.
Os pan-africanistas no Brasil devem ter uma posição formulada em conjunto a respeito do que está acontecendo. Os descendentes de africanos no Brasil são as pessoas que mais estão perdendo com as reformas que estão sendo aplicadas, então, é preciso lutar ainda mais e trabalhar ao lado de outras forças da esquerda.
O pan-africanismo não somente é importante no Brasil, mas também no mundo inteiro. Então, os que estão fora do país têm o dever de ficar juntos com os daqui. Do mesmo jeito que a gente falou que a vida dos negros importam nos EUA [referência ao movimento Black Lives Matter] há alguns anos, teríamos que estar falando hoje: ‘não destruam as vidas no Brasil e também o Estado de bem-estar que existia aqui’. Essa teria que ser a demanda de todos os africanos, independente de onde estiverem.
Alguns dados projetam que a população africana vai crescer muito nos próximos anos, enquanto a europeia vai diminuir. Qual o impacto disso para o mundo?
Esse crescimento cria uma cara diferente para o mundo. Em 100 anos vamos ver mais peles e rostos africanos. Serão a maioria, mas ainda sem poder econômico e político. Temos que ter em conta que o crescimento da população vai ser liderado pela África — o continente mais pobre do mundo. Então, os impactos têm que planejados para que a maior parte da população do mundo não continue marginalizada como é hoje.
A boa notícia é que essa população jovem negra terá mais acesso à educação e vai viajar muito. O avanço das tecnologias fará com que fiquem em contato mais facilmente. A maior questão é: quais valores essa população vai carregar no mundo? A ideia é que carreguem valores de igualdade, honestidade e solidariedade. Valores que vão ajudar a mudar a sociedade do futuro. Se a gente pensa em pan-africanismo, nós teremos que trabalhar em cima desses valores para construir um mundo melhor. Coincidentemente, esses são os mesmos valores socialistas.
Edição: Vanessa Martina Silva