Tio Gerhard é como chamo carinhosamente o irmão caçula de Ana Primavesi. Vinte anos mais novo do que a irmã, ele vive na Áustria, no mesmo castelo em que ela nasceu há 97 anos.
O castelo Pichlhofen é uma construção de 1600 com paredes de sessenta centímetros de largura erguidas com pedras enormes. É tão grande que demorei a me acostumar a transitar por ele, ainda sem acreditar que estava ali. Como escrevi no livro, “estar em Pichlhofen era como se eu conhecesse uma história encantada, como se eu tivesse lido um livro que me marcara profundamente, e de repente eu conseguira transpor um portal mágico e entrava em contato com o lugar e as pessoas daquela história.”
De um lado do castelo, fica o jardim. Ali, a mãe deles passava grande parte do tempo, distraída tentando dispor as flores que tanto amava cuidar. O quarto onde Primavesi nasceu dá para esse jardim, ainda hoje muito florido. E macieiras! Muitas árvores antigas, testemunhas de muitas passagens... Do outro lado, vemos a plantação de trigo e batatas, isoladas por um cercado.
Tio Gerhard mostra o tambor onde biodinamiza os preparados em água. Reparo em suas mãos calejadas, machucadas. Ele sorri e entramos no cercado da plantação. Nossa missão era tirar os matos, com as mãos. Sua esposa, tia Inge, estava lá em cima, agachada. Nem nos viu chegar. E então começamos, ele me explicando que plantas arrancar, mas pedindo que as deixasse ali mesmo, sobre o solo. Reparei numa pedrinha branca e a peguei. Olhei melhor e percebi que aquela pedrinha estava presente por toda parte. Eram pedaços de cristal. Uma lagarta amarela listrada de preto muito bonita nos chamou a atenção, e assim como a pegamos, a devolvemos.
Depois do almoço o tio pegou um livro cheio de figuras de lagartas, com as respectivas imagens de quais borboletas se tornariam. A bela lagarta listrada seria uma borboleta marrom comum, sem nenhum atrativo. “Uma lagarta tão bonita para uma borboleta tão sem graça”, ele disse. Rimos. Perguntei sobre os cristais. Ele mostrou como os triturava e os incorporava ao seu líquido biodinâmico, para fortalecer energeticamente a terra. Um trabalho pesado que justificava ainda mais aquelas mãos sofridas do trabalho pesado do campo e que marcaram minha mente para sempre.
Quando voltei para o Brasil, uma parte de meu coração permaneceu na Áustria. Mas era aqui que ela estava, e era por ela que eu buscava. Eu não sabia nada, quase nada, sobre a Ana Primavesi. Sua filha Carin ia me ajudando, contando histórias, mostrando fotos, sempre me convidando a estar em meio a eles. Fui compreendendo, devagar, quem era quem, quem fazia ou tinha feito o que, muitas vezes mais perdida do que nunca naquela casa onde o alemão é língua comum e o passado, muito longínquo. Mas persisti. Com carinho e paciência, essa família me acolheu, e aos poucos, um fio da meada foi se desenhando. Acontecimentos incríveis somaram-se a essa história, como o fato de eu ter descoberto um diário do tempo da guerra que era exatamente a lacuna maior de sua história. Com isso, foi possível completar o livro.
Muitas pessoas me perguntam o que foi que me fez querer escrever essa história, e sempre fico na dúvida sobre o que responder. Porque quando indaguei à família se poderia fazer isso, eu não tinha ideia da vida da Primavesi. Eu simplesmente queria saber dela. Estar com ela. E o livro era essa maneira. Eu queria aprender mais, queria que ela me ensinasse tudo que ela sabia, porque desde a primeira vez que entrei em contato com o que ela ensinava, tudo fez sentido. Assim, não queria escrever porque estava ciente de uma história de vida absolutamente densa e rica, mas sim para ficar perto dela. Nesse processo reverso, as “Histórias de Vida e Agroecologia” se revelaram, tantas, e tão maravilhosas...
Neste dia 3 de outubro, Ana Maria Primavesi completa 97 anos. Resgatando o fio de sua história, me vêm à mente o sorriso de seu irmão caçula vivendo na Áustria, sua energia e alegria de viver, sua mãozinha machucada, mas plena de trabalho digno. Me vêm as histórias vividas em plena Segunda Guerra, a dor da perda dos dois irmãos, o sacrifício que foi se manter firme nos estudos naquele contexto, quando desistir era o caminho mais cômodo. Repasso a vida de dificuldades mas cheia de expectativas de um casal recém-casado, recém-chegado a um país novo (o Brasil), recém-formado em agronomia, e que diante da doçura e acolhimento desse povo, aqui ficou e aqui criou seus filhos.
Retomo a trajetória dessa menininha determinada desde criança, que foi a primeira pessoa num meio científico majoritariamente masculino a defender que o solo tem vida, e é a própria vida que propicia nova vida. Rio com as histórias de baratas, cobras e galinhas, surreais, “ridículas”, como ela dizia. Recordo com carinho profundo todos os momentos que partilhamos, muitos em silêncio. Mas juntas. E agradeço, profundamente, a todos que me ajudaram a juntar os pedaços que contam essa história, que agora, pertence a todos nós.
Edição: Luiz Felipe Albuquerque