Entrevista

Para vereador de Curitiba, há um "lobby" na Câmara em defesa das empresas de merenda

Terceirizada desde 1993, a merenda das escolas municipais de Curitiba é monopolizada por duas empresas

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
"O projeto do dia sem carne escancarou a ‘merenda sem debate’”, diz Goura, vereador de Curitiba
"O projeto do dia sem carne escancarou a ‘merenda sem debate’”, diz Goura, vereador de Curitiba - Joka Madruga

Em seu primeiro mandato, o vereador Goura (PDT), 37 anos, eleito a partir de pautas como mobilidade e meio-ambiente, levou à Câmara Municipal de Curitiba o projeto chamado “segunda-feira sem carne”. Frente à resistência de diferentes setores, do funcionalismo à opinião pública, ele passou a verificar a qualidade do fornecimento da merenda da rede municipal de Curitiba. O primeiro diagnóstico foi negativo.

A partir de então, em meio a uma Câmara marcada por medidas antipopulares no primeiro semestre, o vereador ouviu as críticas e pautou a questão do modelo de fornecimento de alimentos. Terceirizado desde 1993, hoje apenas duas empresas têm o monopólio de atendimento de 285 mil refeições. O contrato com a Risotolândia, por exemplo, completa duas décadas e vence em março de 2018.

“Não estou defendendo o prefeito ou as empresas que prestam serviço à prefeitura, como muitos vereadores estão, defendendo interesses privados e do executivo. O papel dos vereadores deveria ser cobrar, fiscalizar”, defende Goura, em entrevista ao Brasil de Fato Paraná, em parceria com o Porém.net e Terra Sem Males.

Brasil de Fato Paraná, Porém.net e Terra Sem Males - Você apresentou o Projeto de Lei “Segunda sem carne”. Após receber críticas devido à carência geral na merenda, você abriu o debate. Como foi isso e como estão as posições sobre o tema?

Goura Nataraj – Antes de tudo, o Projeto da “Segunda-feira sem carne” foi apresentado como um projeto de lei (PL). Como vereador, ainda mais como vereador que não estou na base do prefeito, muitas proposições que eu faço aqui elas de cara já esbarram numa resistência, numa situação de pouca visibilidade até mesmo. E, como legisladores, temos algumas ferramentas à disposição. Posso fazer uma sugestão de ato de gestão ao prefeito, um requerimento simples, um pedido de informação, e posso fazer um Projeto de Lei, que, na minha visão pessoal, nem sempre tem intuito de virar uma lei efetiva, mas de levantar um debate. E foi o que aconteceu, a ideia de “Meat free Monday”, uma segunda sem carne, do dia sem carne, uma campanha mundial que existe há mais de 20 anos, em que se colocam três eixos de discussão: 1) ligado à nossa saúde 2) o impacto do consumo de carne na natureza, o impacto negativo da produção pecuária principalmente na escala industrial em que isso é feito – 80% do bioma amazônico está sendo destruído justamente em ligação direta com a indústria pecuária. E, por fim, o terceiro item é a questão do sofrimento animal, é uma conscientização também sobre a falta de sensibilidade a que os animais são submetidos nesta escala industrial de produção. Diversas cidades do Brasil aderiram à segunda-feira, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, diversas cidades, no mundo inteiro, nos EUA.

A partir de projetos de lei?

Também como projeto de lei. E aqui em Curitiba, em anos anteriores, a prefeitura manifestou apoio ao projeto, e a gente fez o projeto para tentar levantar uma discussão, se eu tivesse feito como requerimento, ou como sugestão ao executivo, eu tenho certeza que ele não teria tido essa visibilidade. Ele, como era esperado, levantou polêmica e eu dividi essa reação em duas frentes: uma primeira do preconceito, ignorância, de que sem carne você prejudica nutrição, que vai ficar fraco, uma visão preconceituosa, que ainda existe, de que sem carne você não vai se nutrir adequadamente. E a outra crítica que surgiu por parte dos servidores.

Os servidores que apontaram más condições de qualidade e carência na merenda.

Dizemos que o projeto do “Dia sem Carne” escancarou a “merenda sem debate”, no sentido de que trouxe a discussão da merenda e alimentação nas escolas, e daí nisso vimos também três frentes de discussão: primeiro, a respeito dos cardápios em si, começamos a ver com professoras e professores. E porque minha filha mais velha está na rede municipal, no Mirazinha Braga, e começamos a ver os cardápios servidos, e você tem coisas muito díspares, além das escolas de tempo integral, em que você tem de fato um almoço e uma coisa mais robusta, mas um cardápio que se segue, na segunda-feira, às 9 da manhã, a criança tem gelatina com chá e no outro dia tem risoto com molho de carne. Noutro dia, tem um bolo com achocolatado com aroma, e no dia seguinte tem arroz com feijão preto, às nove da manhã. Outra crítica que surgiu foi a respeito do modelo, terceirizado desde 1993, em que duas empresas têm o monopólio de atendimento de 285 mil refeições, e fomos analisar os contratos, o contrato com a Risotolândia vence em março de 2018 e não é um valor pequeno, são R$ 67 milhões de reais para esse serviço. A licitação foi feita com quatro lotes para as escolas municipais e cinco para os CMEis [Centros Municipais de Educação Infantil]. Sozinha, a Risotolândia pegou os quatro das escolas e mais um dos CMEis e a Denjud pegou os outros quatro dos CMEis . Ou seja, você tem toda uma escala industrial deste alimento, são 285 mil refeições por dia, e a gente viu que começou a surgir esta discussão. Então você vê que o cardápio tem problemas, o modelo de atendimento tem problemas, com uma empresa que atende todas as escolas, o alimento é preparado em Araucária de madrugada, distribuído por caminhões pela cidade inteira, então você tem um impacto de trânsito, de poluição. O alimento é servido em copos plásticos. Muitas escolas têm já o talher metálico, mas muitas vezes é um copo plástico de má qualidade. O alimento quente é servido em um material fininho; a criança se machuca, o alimento cai. Temos discutido a possibilidade da remunicipalização do serviço, da reestatização, da desterceirização, como quisermos chamar. Isso é bem interessante, porque você tem uma indústria que há mais de 25 anos que atende a cidade.

O que lembra outros setores controlados por monopólios em Curitiba.

Pode-se fazer um paralelo com a máfia do transporte coletivo, mesmas empresas atendendo a prefeitura, com o lixo, as mesmas empresas, com a locação de automóveis, as mesmas empresas. Eu de forma sóbria acolhi as críticas, e tive reunião com as nutricionistas da rede municipal e com a diretora de logística da Secretaria Municipal de Educação (SME) e, para a minha surpresa, no dia que eu fui a reunião, fomos recebidos pelo gabinete da secretária. A princípio todo mundo ficou preocupado com a “Segunda-feira sem Carne”. Que a gente queria, supostamente, tirar a carne das crianças e precarizar uma situação que já é precária, e eu expus que não: queremos insistir nisso, pretendemos justamente aproveitar este debate mais amplo sobre as três questões, os cardápios servidos, o modelo de atendimento, e o contrato como um todo, entendendo também que, se vamos mudar esse modelo, não será da noite para o dia essa mudança, para o ano que vem, porém se tivermos ao invés de duas, termos dez empresas atendendo, teremos comparativo, uma prestação de serviço melhor.

(Foto: Joka Madruga)

Você foi a campo conhecer a realidade nas escolas. Qual foi o resultado dessas visitas?

Fui provocado pelas redes sociais para ver a situação nas escolas e CMEis. Em uma escola específica, na escola municipal Castro, a professora me pediu para vir à Câmara com os alunos, conversarem sobre este Projeto que estão desenvolvendo lá que é a “patrulha do lanche”. Foi bem interessante porque no quarto ano alunos e professora decidiram começar a fazer uma análise do alimento que está sendo servido. A primeira situação foi a do copo de má qualidade. Então, fizeram pedido à secretaria e começou a vir pelo menos um plástico melhor, conseguiram mudar a situação precária. Estive na escola, conheci a iniciativa, comi junto com as crianças a refeição. Isso aqui, por exemplo [mostra documento], é uma pesquisa que as crianças fizeram. Com a opção sim, não e pouco. Com a pergunta: você gosta do lanche da escola? E a maioria respondeu: pouco. E as crianças estão fazendo essa análise lá na escola delas. Eu fui criticado e a gente conseguiu ver na Câmara Municipal que existe um lobby muito forte de defesa a priori sem discutir e analisar os fatos, numa defesa dessa qualidade ‘fantástica’ das empresas que prestam esse serviço, o que não é inteiramente verdade se saímos a campo para ver. Tem quatro perguntas aqui do questionário das crianças que são muito significativas. Você gosta das frutas, do pudim, da vitamina e leite com aroma e do risoto/arroz servido. São os itens que mais sobram, de acordo com as crianças. Perguntei para elas, qual é o problema com as frutas? Muitas vezes vem verde, não está saborosa, não está atrativa, então há um rejeito disso muito grande. Outra coisa, as crianças comem na hora do recreio ou um pouco antes, rapidamente, porque elas querem brincar.

Essa é até outra crítica.

Aumentar o tempo de socialização, do lúdico, da brincadeira, que tem papel educativo muito grande. E outra questão é o papel educativo da alimentação. A criança todo o dia comendo no copo plástico, comendo com pressa, comendo alimento do qual ela não participa, isso cria nesses anos de formação um impacto grande, na própria constituição de um hábito alimentar saudável.

Nas redes sociais, apareceu na crítica de servidores o fato de que o cardápio já é inconstante e já há falta de alimentos como a carne.

Eu acho o cardápio desequilibrado, como eu disse. A rede atende toda uma situação de toda a desigualdade que Curitiba tem. Ela atende escolas no Batel, no Alto da XV, e no Tatuquara, no Sítio Cercado. Claro que é diferente a realidade de uma criança que mora no Osternack de uma criança que estuda numa escola municipal no Batel. Isso tem que ser levado em consideração também. Óbvio, o Mestre Pop levantou essa crítica: você quer tirar a carne e muita criança só tem carne na escola.

Esse foi o principal argumento que surgiu.

Acho que faz parte esse desequilíbrio na rede, mas tem que ter esse olhar mais próprio, todos estão sujeito a acertos e erros. Mas uma proposta de reestatizar você tem professoras da rede falando sobre como seria importante. Ideal seria voltar a ter merendeiras na escola. Seria um panorama ideal a ser perseguido. O conselho de nutricionistas disse que Campinas reestatizou o modelo em dez anos. Estamos em contato com gente da prefeitura de lá. Assim, todo modelo vai ter problemas, erros e acertos, pontos positivos e negativos. Vamos tentar levar adiante a proposta de criação de comissão especial da Câmara sobre alimentação escolar, com um tempo vigente de seis meses para estudar a sério a questão da merenda.

As empresas te deram algum retorno sobre essas denúncias?

Não, diretamente, não.

E qual é a posição dos conselhos e órgãos da área sobre isso?

Estive em três reuniões bem significativas. Uma foi essa com a secretária, como eu disse. No mesmo dia, estive no Conselho Regional de Nutricionistas, também preocupado que eu pudesse impor uma situação. E a terceira reunião foi no Conselho de Alimentação Escolar, reunião muito legal. O CAE reúne representantes da prefeitura, representantes do Conselho Regional de Nutricionistas, representantes de pais e mães, e também do sindicato municipal de professores. E a mesma coisa: muitos estavam armados esperando postura intransigente minha, falei que queremos aprofundar discussão do cardápio, e vermos que estamos todos do mesmo lado. Temos um número de apenas quatro nutricionistas na rede, na secretaria municipal de educação, para dar contra de quase 400 equipamentos quando o Conselho coloca que precisaria ter 56. Ou seja, estamos muito aquém do número adequado.

Qual tem sido a reação dos demais vereadores?

O vereador Sabino Picolo (DEM) disse que a Risotolândia têm nutricionistas. O interesse do nutricionista da empresa é um, mas o interesse da prefeitura é outro. Então, discuto a proposta de uma regionalização, podia começar a ter uma empresa por regional, pelo menos, junto à ideia de uma cozinha modelo em cada uma das dez regionais da cidade.

Você reagiu às críticas com a abertura do debate, sendo que a maioria dos vereadores têm sido refratários. Em épocas de ajuste fiscal à força, é necessário outro método de diálogo no Legislativo?

Nesse primeiro semestre, tivemos o pacotaço. Eu me posicionei ao lado dos servidores desde o início. O PDT infelizmente não teve uma posição unida, em relação a isso, mas a maioria dos cinco vereadores se posicionou no final a favor dos servidores. Como vereador, eu tenho que ter a humildade de saber o que estou fazendo aqui. Quais são os interesses que estou defendendo aqui. Não estou defendendo o prefeito ou as empresas que prestam serviço à prefeitura, como muitos vereadores estão, defendendo interesses privados e do executivo. O papel dos vereadores deveria ser cobrar, fiscalizar. Não tinha como ser diferente, no sentido de o projeto apresentado não ter condições de ser aplicado, eu assumi a crítica, incorporei a crítica, e persegui os sentidos que a crítica está apontando, que é uma postura do mandato.

Edição: Ednubia Ghisi