Com perplexidade o mundo vem assistindo a uma profunda transformação na geopolítica da América Latina nos últimos anos. Se a virada do século XX para o século XXI consolidou a democracia como regime estruturante na maior parte das nações e a ascendência de governos populares alinhados a pautas sociais e nacionalistas, o cenário atual apresenta, como reação ao desenvolvimento, a inclusão social e ao empoderamento geopolítico de certos países obtidos no período, uma onda de retrocesso pensada, no continente, a partir do exterior, pelo mercado financeiro e potências hegemônicas, e posto em prática através dos tradicionais aliados regionais, isto é, aristocratas da mídia, do judiciário, do parlamento e das classes políticas descomprometidas com o povo e a soberania dos próprios países.
Com efeito, mudanças significativas de reveses ideológicos aconteceram nos últimos anos, sucessivamente no Paraguai, Argentina, Brasil, dentre outras nações latino-americanas, podendo-se estender, agora, à Venezuela, objeto de significativa crise econômica, apesar de sua posição privilegiada no ranking internacional de produtores de petróleo, substancialmente por ter que responder a bloqueio comercial liderado pelos EUA. Não fosse a brava resistência democrática de seu povo, que, legítima e soberanamente, percebendo a fissura social causada pelos fortes danos decorrentes do boicote a que vinha sendo invariavelmente submetido, através da convocação de um legítimo processo constituinte, logrou pacificar novamente o país, estando finalmente a ponto de contornar, de vez, a situação de risco que a instabilidade vinha impondo à nação.
Como esforço de reunificação social, a Assembleia Constituinte formalmente instalada em 30 de julho de 2017, convocou para 15 de outubro corrente, antecipação de eleições de governadoras e governadores de 23 estados, que estavam previstas para 10 de dezembro. Portanto, desde 11 de outubro, deu-se início à abertura da fase final deste processo eleitoral cujo desenlace será a escolha de mandatárias e mandatários regionais. Será a 23ª consulta pública eleitoral em 18 anos de governo, desde que o chavismo chegou ao poder em 1998. Acompanham a lisura do processo mais de 70 observadores de distintas nações dos mais diferentes continentes.
Sobre o sistema eleitoral venezuelano cabe ressaltar certos aspectos relevantes, que fazem compreender porque é possível uma nação tornar factível executar uma operação tão complexa como realizar 23 eleições em 18 anos. Em primeiro lugar, o Poder Eleitoral venezuelano não integra o Poder Judiciário. Na Venezuela, ele é um Poder próprio, independente, controlado política e administrativamente pelo Conselho Nacional Eleitoral (que atualmente sequer é presidido por um jurista), complementado pela jurisdição especializada de uma justiça eleitoral ligada ao judiciário, ao qual se somam quatro Poderes, o Executivo, o Legislativo e o Poder Cidadão, que inclui em sua estrutura a Defensoria Pública, o Ministério Público e a Controladoria.
O fato do Poder Eleitoral ser um Poder independente, com administração, orçamento, pensamento estratégico, tecnologia de conhecimento próprios, descortina série de consequências. Repercute, por exemplo, num cuidado permanente com a efetivação de uma cultura de cidadania no universo populacional. Não por acaso, durante o processo de escolha de delegados constituintes, em julho passado, quando o país esteve literalmente sob ameaça de uma guerra civil, com ataque aéreo a instalações governamentais, ameaças milicianas divulgadas em imprensa e mídias sociais, barricadas montadas nas ruas, boicote aberto da oposição à convocatória constituinte, a participação às urnas aproximou-se dos 45%, percentagem considerada satisfatória até mesmo no Brasil, com diferença de que no Brasil o voto é obrigatório; na Venezuela, não. Em vários momentos, durante essas 22 eleições passadas na Venezuela, a ida às urnas superou os 80% da população eleitoralmente capaz de votar.
Fato igualmente importante é que no país caribenho a eleição é 100% realizada eletronicamente, com contabilização de resultado, consequentemente, meteórica. Entretanto, diferente do Brasil, por exemplo, que também adota a urna eletrônica, a identificação dos eleitores é realizada 100% pela forma biométrica, com confirmação via demonstração de documento físico. Além disso, há impressão do voto manifestado na tela e consequente depósito na urna. Ou seja, possibilidade zero de manipulação do eleitor, de seu voto, e da respectiva apuração. E mais, há auditagem normal automática em cerca de 50% das urnas, podendo-se faze-la em 100% das urnas, sempre que solicitado. Na Venezuela, durante o período Chávez, aconteceram 20 disputas eleitorais. Ele venceu em 19 pleitos e perdeu apenas um. Não questionou a eleição parlamentar em que sua coalizão partidária saiu derrotada por menos de 2% de votos, mas em todos os demais 19 pleitos a oposição formalizou questionamentos. Em boa parte, pediu auditoria nas urnas. 100% das urnas foram apuradas e nenhum erro substancial foi encontrado. Ótimo, vitória da democracia.
O que o mundo precisa saber é que o modelo eleitoral venezuelano é o melhor que existe. Na condição de observador Internacional, asseguro que jamais vi algo igual. Neste domingo (15), visitarei muitas sessões, mas, desde já, é possível perceber nas ruas, pelo sorriso no rosto das pessoas, que a sensação é de alívio. Alívio por estar superando, através da democracia, mais um difícil desafio que a história lhes impôs. Parabéns às forças políticas da Venezuela, parabéns ao Conselho Nacional Eleitoral, e, sobretudo, vivas, muitas vivas ao povo venezuelano, por acreditar na democracia como meio de alcançar a paz e o equilíbrio político.
*Professor Doutor de Direito Internacional Público/UNIFOR e acompanhante Internacional do CNE
Edição: Monyse Ravenna