No automóvel que cruzava o sertão nordestino há 10 dias, um jovem se posicionava na janela e bradava com alegria em direção às pequenas casas de pau a pique construídas a beira da estrada de terra: “hoje tem cinema! O cinema chegou”!
A notícia era recebida pelos moradores com uma alegria ímpar que se reverberava em acenos, risadas e crianças correndo atrás da furgoneta na qual estava todo o equipamento necessário para montar uma sala de cinema na praça do pequeno vilarejo, ao ar livre.
Um transeunte desavisado poderia achar que voltou para os anos de 1940, mas não. Estamos em 2017, na era do Netflix e do Youtube, em um sertão desenvolvido após anos de política social, mas onde fomos testemunhas do quando a sétima arte ainda é capaz de unir, emocionar, surpreender e ampliar os horizontes de diferentes gerações que, até então, nunca tinham assistido um filme na telona.
“Minha vida toda foi só de muito trabalho e agora quero fazer as coisas que não pude. Tenho 66 anos e nunca tinha ido ao cinema, nem sabia como seria. Imaginava que eram só personagens contanto uma história, não sabia nem se ia ser diferente de quando passa um filme na TV. Mas achava que seria muito bonito, porque todo mundo gosta. Eu quis ver de perto para contar de certo, como se diz, e adorei. Fiquei emocionada de assistir um filme com tanta gente e de ver que eles também se emocionaram”, conta a artesã Zuila Cassiano da Silva, da comunidade do Cumbe, um distrito de Aracati (CE).
Há 400 quilômetros dali, em Queimadas, um pequeno distrito do município de João Câmara (RN), há dias não se falava em outra coisa a não ser a chegada do cinema, que aportou no local por meio do Cinesolar, um projeto de cinema itinerante movido à energia solar. A furgoneta percorreu sete municípios nordestinos no seu último circuito, durante agosto, montando neles salas de cinema de última geração em locais públicos.
As projeções foram todas gratuitas, o que fez diferença para formar público: com preço médio do ingresso de R$14,10 nas salas comerciais, mais o custo do deslocamento, ir ao cinema ainda é “um hábito cultural acessível principalmente para a classe média”, como ressalta a doutora em comunicação e semiótica, Cyntia Gomes Calhado, que é especialista em cinema. “Estamos falando do lugar do sonho, da política, do maravilhamento com as imagens em movimento. O cinema nasceu como espetáculo popular e, com sua institucionalização, foi se elitizando.”
Dias antes da sessão, a jovem Jaciara de Souza do Nascimento, de 13 anos, já tinha até escolhido o que vestiria: sua roupa nova, que ainda não tinha sido usada. “O passeio da menina é ir à cidade uma vez por ano, na noite de natal”, disse sua vó, a dona de casa Francisca de Souza do Nascimento, sem nem ser percebida em meio a animação e expectativa de Jaciara. “Eu imagino que seja uma tela grande colocada em um quadro”, nos disse empolgada a jovem que sonha em ser professora, enquanto era corrigida pela avó: “é nada disso não, menina! Mais tarde você vai ver”.
“Eu acho que quando a pessoa tem a oportunidade de ir ao cinema ela começa a pensar outras coisas e a conhecer realidades diferentes. Isso é muito importante em um lugar como esse onde as pessoas tem poucas opções de lazer”, conta a estudante de pedagogia Maria Ieda Oliveira Alves, que vive na comunidade de Baixinha dos França (RN), a três horas do cinema mais próximo, em Natal. “Estou feliz de poder levar meu filho para uma sessão, para ele crescer conhecendo uma coisa tão bonita e tão importante para a cultura do mundo”, completou.
Em 2016, o Brasil tinha 3.160 salas de cinema, concentradas nas 309 cidades que naquele ano somavam 100 mil habitantes ou mais, de acordo com o Anuário Estatístico do Cinema Brasileiro, publicado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). Nos municípios com 20 mil habitantes ou menos (que correspondiam a 68,4% do total) somente cinco possuíam sala de cinema no último ano. Assim, apenas 0,2% das 32,2 milhões de pessoas que vivem nos municípios menos populosos do Brasil tem possibilidade de conhecer de perto o cinema.
“Ir a uma sala ver um filme é uma experiência audiovisual pública, diferente de assistir TV em casa ou ver vídeos pela internet ou via serviços on demand como o Netflix”, diz Cyntia. “O cinema traz a possibilidade de você compartilhar com outras pessoas, desconhecidas, experiências narrativas e estéticas. A interação vai desde uma conversa na fila, até ser contagiado com a gargalhada ou o choro de um espectador ao seu lado e mesmo protestar, aplaudir ou debater um filme ao final da sessão. O filme tem uma ressonância no espaço público por ter sido vivenciado de forma coletiva. Em casa a experiência é privada, por isso muito distinta.”
Francisco Neto França, encarregado de serviços gerais da Escola Municipal Prefeito José Américo, em Baixinha dos França (RN), conhece na prática esse sentimento e por isso se orgulha da função que acumula: ele é o responsável pela chave da TV pública da vila, instalada na praça central a pedido da população, que reivindicou também a construção de uma pequena arquibancada de alvenaria, para que todos possam assistir sentados. “É uma alegria só. Assistimos à Copa do Mundo aqui juntos e a muitos outros jogos de futebol. A TV ficava sempre ligada em último capítulo de novela e nos horários de filmes.”
Após um acidente que derrubou o poste de eletricidade que abastecia a televisão, o passatempo dos moradores está suspenso há pelo menos um ano. “Mas hoje tem cinema, que é lindo demais. Há quarenta anos veio um cinema para cá também e exibiu um filme de bang-bang. Quando um dos atores puxou o revolver e disparou, um sujeito da plateia se abaixou gritando, achando que o tiro era de verdade, porque nunca tinha visto nada daquilo. Naquela época ninguém conhecia nada e quem tinha um rádio era rico. Hoje as coisas mudaram muito, mas o cinema continua emocionando e vai emocionar para sempre”.
Edição: Daniela Stefano