Tal como a brava população de Canudos, o povo brasileiro resiste ao seu modo.
E lá se vão 120 anos de Canudos. De 1893 a 1897 resistiam no sertão baiano, num lugar batizado de Belo Monte, cerca de 35 mil pessoas que tinham em comum uma vida de muito sofrimento, miséria e dificuldades, como uma série de ex-escravos que estavam literalmente nas ruas e sem perspectiva alguma de vida e em Belo Monte puderam encontrar alguma esperança.
São exatos 120 anos. Mais precisamente, em outubro de 1897 ocorre o Massacre de Canudos. Uma das maiores chacinas da história deste país, na qual as forças da recém proclamada República do Brasil assassinaram cerca de 20 mil pessoas com requintes de crueldade, como a degolação de centenas de crianças, mulheres e idosos.
E graças ao trabalho do escritor e jornalista Euclides da Cunha pudemos ter acesso a muito deste capítulo da história do país. “O Sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Quem não conhece esta importante frase e que possui tanto significado em nossa realidade? Se antes escutava e entendia como uma bonita frase literária, vivendo no sertão passei a ter convicção do quão real e representativa ela é. A força está no rosto e na ação deste bravo povo.
Mas, voltando ao assunto da coluna desta semana, Euclides da Cunha, com sua obra Os Sertões, nos legou bastante informações e análises envolvendo todo o episódio de Canudos, da resistência ao massacre. E no meio de tanto material, ele já identificava e apontava uma das raízes daquele conflito: a existência de dois Brasis. De um lado, um Brasil explorado por uma política que privilegiava as zonas econômicas exportadoras, com brasileiros pobres, sem bens imóveis e que viviam sendo explorados em grandes latifúndios. Um Brasil, enfim, formado por uma suposta gentalha, como escreveu o geógrafo Manuel Correia de Andrade. Do outro lado, um Brasil explorador, elite deste país que se achava culta e poderosa, proprietária não só das terras como do próprio Estado, como também já assinalou o mesmo autor.
Apesar de escrito há mais de 100 anos, uma pergunta persiste: estamos livres dos dois Brasis? Não muito distante, nosso querido e saudoso escritor Ariano Suassuna, retomando Machado de Assis, falou também sobre dois Brasis, mas de outra forma. Falou do Brasil oficial, um Brasil comandado por uma elite que não tem qualquer aproximação com a realidade do seu povo e de seu país. Que já quis ser portuguesa, depois francesa e agora estadunidense, como dizia o próprio Ariano. Uma elite que, apesar de não conhecer a realidade do país, sempre o dirigiu e o comandou a partir de seus interesses. E do outro lado, um Brasil real. Um Brasil que precisa trabalhar todo dia para poder se alimentar, para poder viver. Um Brasil que melhorou de vida há alguns anos com mais acesso à educação, saúde, habitação, mas que está voltando a sofrer os impactos da crise desde a consolidação do golpe que derrubou a presidenta Dilma.
O Brasil das elites é o que voltou a se apropriar do nosso país com a derrubada de Dilma e trabalha cotidianamente para a manutenção do privilégio de poucos em detrimento do sofrimento de dezenas de milhões de brasileiros reais, do Brasil Real. E incrivelmente as táticas parecem semelhantes. Tal como naquela época, quando tentou-se desconstruir a imagem e liderança de Antônio Conselheiro, classificando-o como lunático e enganador, hoje o método segue com a tentativa de desconstruir a imagem de lideranças populares.
O que o Brasil oficial talvez não leve em conta é que o Brasil real existe. E está sofrendo na pele todos os ataques. Tal como a brava população de Canudos, o povo Brasileiro resiste ao seu modo. E assim como Canudos, não serão um, dois ou três ataques que servirão para nos derrubar. Que estes 120 anos de Canudos nos sirvam de inspiração. A luta é árdua e muitas vezes parece mostrar uma vitória distante. Mas como tenho dito reiteradamente nestas colunas, resistiremos. E o Brasil real triunfará.
Edição: Monyse Ravenna