Os 100 anos da Revolução Russa, registrados em outubro de 2017, possibilitam reler estudos ou documentos sobre os mais diversos aspectos, muitos dos quais revelam a atualidade de lutas problemas sociais, que motivaram o maior movimento social do século XX.
Quais eram as principais reivindicações da época? Melhoria salarial, redução da jornada semanal de trabalho, garantia de terra aos camponeses, liberdade de expressão, fim da polícia repressiva, igualdade nos direitos trabalhistas das mulheres, dentre inúmeras outras. E, o que marca e tensiona a vida dos brasileiros?
Dentre os aspectos que marcam uma inegável atualidade, destaca-se a luta feminista por respeito, espaço, condições dignas de vida e trabalho. Importante lembrar que os diversos movimentos históricos de emancipação dos trabalhadores, em particular os orientados por bases marxianas, teriam atropelado ou ignorado a presença da mulher.
Para não dispersar o debate, este texto foca os primeiros anos da Revolução, da ocupação do ‘Palácio de Inverno’ até a morte de Lenin, em janeiro de 1924. Destaco alguns detalhes que indicam eventuais equívocos na reprodução de leituras um tanto apressadas ou, talvez, norteadas por versões de um senso comum deveras raso em percepção histórica e reflexiva.
A Revolução Russa não foi obra do acaso e tampouco da mente ousada de meia dúzia de intelectuais, educados por famílias e escolas de elite. As condições de vida e trabalho dos protagonistas do movimento, ou seja, os próprios trabalhadores e trabalhadoras, foram a base social onde se desenvolveu o processo de construção da mudança social.
A luta das mulheres, que já existia há séculos, ainda que não devidamente reconhecida e registrada, ganha luz e importância histórica no 8 de Março de 1917. É o que explica Javier Valenzuela, em recente artigo sobre o assunto**: “Aquele dia frio, mas ensolarado, dezenas de milhares de trabalhadoras das fábricas de Petrogrado saíram dos subúrbios, cruzaram rio Neva e ocuparam a interminável Perspectiva Nevski, reivindicando aumento salarial e o fim da participação russa na Primeira Guerra Mundial”.
A experiência de manifestações anteriores, onde a violência era habito, ampliou a força das mulheres. “Imaginavam que, como era habitual no reinado do ‘bom’ Nicolás II, dezenas de elas seriam mortas ou massacradas no cruzamento”. Mas, foi diferente! “Quando ao fim apareceram os ‘cosacos’, estes se negaram a obedecer às ordens de seus superiores: dispersá-las a todo costo. Assim começou a Revolução Russa, na prática seu primeiro ato, a Revolução de Fevereiro”, explica Javier Valenzuela.
Com a responsabilidade de ocupar fábricas e produções agrícolas, em função da morte de milhares de soldados enviados pelo Czar Nicolás II às frentes de batalha da primeira guerra, as mulheres praticamente não mudaram a disposição de luta por melhores condições de vida e trabalho. E, não por acaso, nos primeiros anos de formação do Exército Vermelho, estima-se que cerca de 70 mil mulheres estavam na linha de frente dos quadros militares.
Dentre as diversas reflexões que dizem respeito à história e contribuições da Revolução Russa aos movimentos sociais, 100 anos depois da conquista, antes de silenciar ou mesmo reproduzir incontáveis mentiras ou inverdades que estão disponíveis na internet e outros espaços, vale uma breve pesquisa sobre o significado do movimento aos trabalhadores russos e do mundo todo.
E, aí, uma boa pista pode ser as biografias de mulheres que estiveram à frente do primeiro governo da Revolução, sob comando de Vladimir Lenin (1917-23). Entre elas Alexandra Kollontái (ministra de Assuntos Sociais), Nadezhda Krúpskaya (vice-ministra no Comissariado de Cultura e Educação, Inessa Armand (diretora de Zhenotdel, órgão do PC, criado para promover os direitos das mulheres na URSS), Natalia Sedova (responsável pelos Museus e Monumentos no comissariado de Educação), Larisa Reisner (jornalista e escritora, também dirigente do Exército Vermelho), dentre outras.
A etapa seguinte da Revolução Russa, a partir do momento em que Joseph Stalin assume o comando do Partido e do Estado, registra viravoltas e retrocessos já conhecidos, ainda que de forma alguma justificados. Mas não se pode ignorar que a contribuição e presença das mulheres também teve momentos de reconhecimento e intervenção ativa na gestão de políticas públicas, ainda que limitadas ou mesmo que se poderia questionar outros aspectos e desdobramentos. Este é um dos olhares possíveis que indicam a atualidade das lutas sociais que motivaram a Revolução de 1917.
Conhecer é uma das melhores formas de entender o passado e o presente!
*Sérgio Gadini é professor de Jornalismo da UEPG, está em Madrid, onde realiza um pós-doutorado. Contato: [email protected]
**TintaLibre, outubro de 2017, “Las mujeres bolcheviques que hicieron la Revolución de 1917”