Saúde

Empresas têm interesse na alimentação escolar, diz diretora da área no governo Haddad

Erika Espindola Fischer criticou "ração humana" de Doria e defendeu compra de alimentos da agricultura familiar

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Mães se mobilizam em São Paulo contra "ração humana" de Doria
Mães se mobilizam em São Paulo contra "ração humana" de Doria - Maia Gonçalves Fortes

A ex-diretora do Departamento de Alimentação Escolar de São Paulo durante o governo de Fernando Haddad, Erika Espindola Fischer, tem se pronunciado publicamente contra a proposta de implementação da farinata na merenda escolar, anunciada pelo prefeito João Doria na última semana. Chamada de "ração humana" por opositores, a farinata vem levantando diversos questionamentos e causando uma série de polêmicas.

Pelo menos três manifestações contra a proposta de Doria já foram realizadas, e uma investigação do Ministério Público foi aberta para analisar a proposta. Além disso, vem surgindo uma série de denúncias contra a empresa responsável pela produção da farinata, a Plataforma Sinergia. Em entrevista à Radioagência Brasil de Fato, Fischer afirmou que há muito interesse de corporações por trás da alimentação escolar. "São Paulo fornece mais de 2 milhões de refeições por dia, você imagina o que tem de empresa por trás disso?", questionou.

Ela destacou ainda que no governo Haddad a compra de alimentos orgânicos da agricultura familiar foi muito bem sucedida, algo que não tem acontecido na gestão Doria. "Dá trabalho enfrentar os tubarões, mas enfrentamos por acreditar. Temos a convicção de que a agricultura familiar só tem méritos", opinou.

Confira a entrevista completa:

Qual a sua opinião sobre o prefeito João Doria ter anunciado a implementação da farinata na alimentação escolar sem que a informação tenha passado pela Secretaria da Educação?

O Programa de Alimentação Escolar é regido por diretrizes emanadas por Brasília, pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar. Então, isso impede que qualquer prefeito ou gestor fique viajando à vontade nas ideias. Eu sabia que isso não seria prosperar. Primeiro, é muito difícil julgar a farinata porque o problema dela já começa na composição nutricional, a gente não sabe o que tem dentro. Você tem que saber o que tem dentro e fazer um laudo químico.

Então é muito estranho você já começar a repercutir que vai distribuir algo, que além de a gente não saber do que é feita, muito menos se sabe ainda do registro dela e das características, para saber se ela tem segurança alimentar. Isso é o primeiro e primordial dos aspectos frágeis dessa história toda. Agora, na questão da alimentação escolar em si, é ainda pior, porque as regras que regem o Programa de Alimentação Escolar são mais rígidas do que as que regem a alimentação como um todo em um comércio varejista. É o Estado se responsabilizando pela nutrição das crianças, aí tem uma cadeia enorme de elos para garantir que isso aconteça com segurança, porque senão tem uma responsabilização abrangente para todos.

Somado a isso, tem a questão da formulação dos cardápios. Cada criança é considerada conforme a idade e o tempo que permanece na escola, o desenho do cardápio se baseia nesses dois vetores. Em uma creche, o lugar mais sensível porque a criança é menor, você vai ter pelo menos 5 perfis nutricionais. Então na creche, onde ele falou que vai colocar isso aí, é o pior dos mundos para colocar, porque é lá que os alimentos são rigidamente controlados.

Existe a necessidade de um complemento nutricional na alimentação escolar? Essa ideia não parte da suposição que a alimentação escolar atual não garante os nutrientes necessários?

O pressuposto está errado, a não ser que a alimentação tenha mudado. Até onde eu sei ela ta sofrendo reduções, mas, se de fato, o perfil das refeições se manter como era durante os últimos anos, a alimentação da escola é plenamente suficiente para dar conta dos nutrientes que a criança precisa enquanto está na escola. Em média, isso cobre cerca de 70% da necessidade da criança no dia. Na creche, por exemplo, ela fica sete horas lá e tem cinco momentos de refeição.

Na cidade de São Paulo se zela muito pela alimentação das crianças. Mas até se você for pela característica de um complemento alimentar, você não pode dar indiscriminadamente complementos. Eu não sou nutricionista, sou administradora pública, mas até onde eu sei, você não sai dando complemento alimentar, porque ele se caracteriza mais como um fármaco do que como um alimento.

Em suma, por qualquer ângulo que você olhe, a tal da farinata parece não ter nenhuma vinculação com a realidade de São Paulo e nem com a necessidade das crianças. O que eu sinto que tem é uma cortina de fumaça em torno de um tema muito mais estratégico, e sobre o qual a prefeitura não está fazendo nada, que é a compra da agricultura familiar e da comida orgânica.

Como você avalia essa mudança entre a gestão Haddad e a do Doria, tendo como foco o fim da compra de alimentos da agricultura familiar?

Eu acho uma lástima, não tenho o que dizer, foi muito trabalhoso fazer o que fizemos. A alimentação escolar tem muito interesse. São Paulo fornece mais de 2 milhões de refeições por dia, você imagina o que tem de empresa por trás disso, de contratos, de interesses arraigados de grandes setores, grandes corporações? Todas as grandes marcas de comida que você já ouviu falar têm interesse.

Quando a gente resolveu enfrentar isso, enfrentamos por acreditar. Temos convicção de que a agricultura familiar só tem méritos, ela desencadeia uma série de processos afirmativos de desenvolvimento sustentável, de fixação das famílias no campo, de melhoria da qualidade das alimentações para as crianças, porque a agricultura familiar é muito alinhada como uma agricultura mais tradicional, menos usuária de agrotóxicos. Você introduz alimentos que não são do interesse da grande indústria e possibilita a ampliação do cardápio. Só tem mérito, mas dá trabalho enfrentar os tubarões.

Queira ou não a atual gestão tem que fazer [garantir que 30% da alimentação escolar seja proveniente da agricultura familiar], senão vai sofrer as consequências depois, porque existe uma determinação legal, a Lei 11.947/2009. Nós demos prosseguimento a isso de uma maneira muito intensa e bem sucedida. Mas esse aspecto gerou uma confiança para que fosse sancionada também uma lei complementar, que reforçasse essa característica do privilégio ao orgânico. 

Então, o próprio governo Haddad acabou sancionando uma lei, que há tempos a sociedade civil que milita pela alimentação adequada queria fazer valer, que é a Lei 16.140, que privilegia o alimento orgânico. Esse ano não vimos mais nada, estão as duas leis sem resposta, pelo menos até agora.  

A dona da Plataforma Sinergia, empresa responsável pela farinata, já trabalhou em empresas como a transnacional do agronegócio Monsanto. Além disso, a Sinergia é acusada de ter falsificado o apoio da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O que você pensa sobre isso?

É sintomático. A gente tem que desconfiar. É claro que a vida pregressa da dona da empresa é um indicador arriscado, mas não é o central. Outra coisa deplorável é colocar no hall de apoiadores, instituições que não têm nada a ver com o teu negócio, acho isso desonesto e dá processo de dano moral.

A farinata foi proposta para matar a fome, mas ela está dentro de uma política da fome. O que é muito grave nessa história é que São Paulo tem um plano de segurança alimentar, ele está atropelando esse plano, que tem força de lei.

Edição: Mauro Ramos