Análises

Para entender a China, o país que pretende ser a nova liderança global

Entre continuidade e ruptura, chineses falam de uma “nova era” no 19º Congresso do Partido Comunista Chinês

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Xi Jiping, reeleito como presidente na condução da política chinesa
Xi Jiping, reeleito como presidente na condução da política chinesa - WikimediaCommons

O evento que é visto como central da vida política da China, o Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, em sua 19º edição, foi realizado entre os dias 18 e 24 de outubro com mais de dois mil delegados. Tido como o maior partido do mundo, com 89 milhões de membros, as linhas definidas por esta organização despertam interesse e dúvidas em todo o mundo.

No Ocidente, boa parte dos noticiários se focaram na informação de que um milhão de corruptos já foram punidos desde 2012, ano em que o presidente Xi Jinping – agora reeleito para um novo mandato de cinco anos – assumiu o cargo. Muito além desse fenômeno, agora o Partido Comunista Chinês fala em uma “nova era comunista”.  

Para debater e entender o tema, o Brasil de Fato entrevistou especialistas sobre a história de formação deste partido e o impacto das resoluções de seu último congresso.

Entre os caminhos para consolidação da economia chinesa, uma das novidades trazidas no atual congresso foi a chamada "Nova Rota da Seda", que se apresenta como um ambicioso plano de construção de infraestrutura para ligar a China a mais de 60 países.

No longo prazo, a China passou a se reconhecer como uma potência e uma liderança global, posição que tinha relutância em assumir, por meio da integração internacional financeira, econômica e de infraestrutura, sob os parâmetros de “paz e desenvolvimento”, “sem uso da força”. 

“É uma espécie de grande globalização sob liderança da China. Eles dizem que vão promover um futuro de progresso compartilhado por toda a humanidade. É uma explicitação mais concreta em uma etapa que finalmente passaram a admitir, da China que se prepara para ser líder. Até recentemente, eles diziam 'não somos potência, somos um país em desenvolvimento'”, analisa José Reinaldo Carvalho, pós-graduado em Relações Internacionais, secretário da mesma área do PCdoB e editor do site Resistência.

O especialista também lembra que as decisões políticas no país são de extrema relevância, dado o peso da China no cenário internacional. “O Congresso do Partido Comunista Chinês foi um grande acontecimento político, não só para a China e para os comunistas, mas também em escala mundial, pela projeção que hoje a China tem”, diz.

Mas quais foram as outras novidades? Antes, é preciso entender o atual contexto da sociedade chinesa. 

Abertura

Após a morte de Mao Tsé-Tung, principal líder da Revolução Chinesa de 1949, os dirigentes comunistas se depararam com um cenário árduo na década de 70: uma grande população em termos numéricos em um país economicamente atrasado, que não havia passado pelo desenvolvimento do capitalismo avançado antes do processo revolucionário. Deng Xiaoping, sucessor de Mao, propõe e implementa a ideia de “Reforma e Abertura”.

“A primeira fase de construção do socialismo, de 1949 a 1978, é a fase do lançamento das bases econômicas do socialismo. Ao fazê-lo, a China aplicava o modelo soviético, acelerando muito a estatização e coletivização dos meios de produção, o que não possibilitou o desenvolvimento das forças produtivas, porque era um país muito atrasado do ponto de vista econômico-social”, explica Carvalho.

“Deng Xiaoping, em 1978, dois anos após a morte de Mao, chega à conclusão de que a China precisava, para desenvolver as forças produtivas, de 'Reforma e Abertura', que consistia em uma menor presença relativa do setor estatal, propiciando a existência, ao lado da economia estatal, de outros tipos de propriedade. E passaram a admitir também o uso de elementos da economia de mercado”, resgata.

A abertura em relação ao capital estrangeiro, parte da proposta de Xiaoping, veio acompanhada da regulação estatal: “[A China] estabeleceu uma lei através da qual o capital estrangeiro vinha, mas deixava na China capitais produtivos e tecnologia, não era simplesmente um capital para saquear e remeter lucros”.

Nas quatro décadas em que vigora tal modelo, os efeitos econômicos são visíveis: a China ocupa hoje o segundo posto no ranking de Produto Interno Bruto no mundo. Uma década após o início da abertura, o modelo soviético citado por Carvalho entraria em colapso no leste europeu. “Eles colocam que o desenvolvimento das forças produtivas é prioridade atual desta etapa da construção do socialismo, que eles denominam, etapa primária”. 

Quem explica a opção tomada pelos chineses é Rodrigo Ferreira, consultor em Relações Internacionais e residente na China há 13 anos.

“Deng Xiaoping era coerente. A direita coloca o argumento de que ele era um liberal, transformou o país em um país capitalista e por isso este se desenvolveu. Ele era muito coerente com as linhas do partido e, ao mesmo tempo, muito pragmático. No final dos anos 70, a China estava desabastecida de combustíveis por conta do segundo choque do petróleo. A abertura foi uma necessidade para explorar o petróleo no sul da China”, aponta. 

Ferreira explica também como opera a ideia, formulada pelo Partido Comunista, de “socialismo com peculiaridades chinesas”:

“Possibilidade de adoção de práticas liberais para desenvolver as forças produtivas do país desde que, nisso é socialista, as classes menos favorecidas não desçam. É inconcebível na China políticas de austeridade que coloquem nas costas do trabalhador o peso de uma crise. A premissa é que pode subir à vontade desde que ninguém desça. A maior contradição era resolver a questão do atraso, ou seja, entre as necessidades crescentes do povo e o atraso do país”.

Continuidade ou ruptura?

Após Deng Xiaoping, dois dirigentes antecederam sucessivamente o atual presidente: Jiang Zemim e Ju Hintao. José Reinaldo Carvalho reforça os aspectos de continuidade entre todos eles. 

“O que existe na China hoje é uma etapa nova de um mesmo processo revolucionário. Nesse sentido há elementos de continuidade. A China de hoje não seria possível se não fossem dois fatores históricos: a Revolução Chinesa, vitoriosa em 1949, e a direção política e ideológica do Partido Comunista. A China seria uma colônia [sem esses dois elementos]”, defende.

“O Partido que dirige a China é o mesmo que dirigiu a revolução, e se orienta, pelo marxismo-leninismo e pelo pensamento de Mao Tsé-Tung, aos quais o partido agrega a contribuição peculiar que cada sucessor dele deu ao processo de construção do socialismo”. 

Rodrigo Ferreira, de outra perspectiva, analisa os deslocamentos no interior do Partido Comunista Chinês. Segundo ele, Jiang Zemim aprofundou o processo de abertura, o que gerou novas tensões no interior da sociedade local. “[Ele] Ampliou o processo de abertura e deixou que nascesse essa elite, o poder econômico. Existiu nos anos 90 um ascenso do poder econômico descolado do poder político tradicional”, coloca. 

O consultor defende ainda que o processo de gênese de uma elite econômica causou alterações no interior do próprio Partido Comunista, diferenciando-o internamente em posições distintas. A elite criada pela abertura passou a ser chamada de “Partido de Xangai”. Os filhos da primeira geração de revolucionários, de “Príncipes”. Os novos militantes oriundos da base, integrantes do setor de jovens do Partido, organizados na “Liga da Juventude”.

Com o fim do mandato de Zemim, o Partido de Xangai e os Príncipes chegaram a um equilíbrio de forças interno, que marcou a gestão de Hu Jintao. No 18º Congresso, que precedeu a este último e foi realizado há cinco anos, a Liga da Juventude e os Príncipes, cujas concepções são próximas, isolaram os representantes da elite econômica. Este foi o momento em que se inicia a presidência de Xi Jinping.  

“O que eles perceberam, ao final do processo de abertura, quando a disparidade começou a crescer, gerar inclusive conflitos sociais no campo, é que se tornaria insustentável. Se você estimulasse a criação de um poder econômico que antagonizasse o poder político, acabaria colocando o próprio partido em xeque”, defende Ferreira.

Novidades

O 19º Congresso ratificou Xi Jiping como condutor do socialismo chinês. Não só com sua reeleição, mas também no plano ideológico. Seu nome e sua visão política foram inscritos no Estatuto do Partido. Os pensamentos de seus antecessores também foram consagrados, apenas os nomes de Mao e Xiaoping também foram mencionados, no caso do último, após sua morte. 

“Desde Mao, é a primeira vez que incluem o autor e a teoria de uma pessoa em vida”, resume Ferreira, que afirma que, no plano simbólico, a medida consagra “o retorno ao alinhamento ideológico, que a longo prazo, é o que consegue manter o partido no poder”. 

“Se comparar com o 18º Congresso, o 19º é uma continuidade. É uma ruptura com o descaminho gerado pelo processo de abertura econômica, que foi criando disparidades sociais. É uma correção a esse desvio, mas é uma continuidade do primeiro mandato”, complementa. 

“Isso é uma novidade, no simbolismo da China, quando uma teoria é elevada ao grau de pensamento guia, isso significa a consolidação dessa corrente política”, explica José Reinaldo Carvalho, que afirma que as resoluções do Congresso também surtiram grande impacto ao definirem de forma clara datas para duas metas comemorando os dois centenários, aponta o especialista. 

“O primeiro, o centenário do Partido, em 2021, daqui a quatro anos: a meta é acabar com a pobreza absoluta na China. Em uma população de 1,3 bilhão de habitantes, eles já reduziram a pobreza a 40 milhões na China. O que eles chamam de construir uma sociedade modestamente próspera”, indica. 

Como complemento, o Partido Chinês indicou que a “primeira etapa de construção do socialismo”, cujo objetivo era a superação do caráter atrasado do país, também tem data para acabar. 

“Eles preveem que a etapa primária se encerrará no centenário da revolução, ou seja, em 2049, quando eles dizem que vão concretizar o sonho chinês de ter uma sociedade socialista próspera, culta, civilizada, desenvolvida e com Estado Democrático de Direito – eles reconhecem que ainda há problemas nesse terreno”, afirma José Reinaldo.

Rodrigo Ferreira, ressalvando o fato de que o partido de Xhangai não deixou de existir, entende as resoluções como um indicativo de que as preocupações da China passarão a ser a resolução das contradições promovidas pela abertura, que marcariam a percepção de uma “nova época”: “Agora, segundo o pensamento de Xi Jinping – o socialismo com características chinesas na nova era –, a questão do atraso já está resolvida. Aí, a contradição é outra. O propósito do Partido Comunista Chinês é resolver as demandas crescentes da sociedade e, ao mesmo tempo, as disparidades sociais”.

Edição: Vivian Neves Fernandes